DEMOCRACIA E DIFERENÇA Gilberto Gil & Antônio Risério Rousseau, um dos grandes clássicos da literatura e pensamento democráticos, diz no Contrato Social que se tomarmos a expressão democracia em sentido rigoroso, vamos verificar que “jamais existiu, jamais existirá” uma democracia verdadeira. Não é possível substituir o Estado pela Sociedade, nem fazer do povo uma Assembléia […]
via DEMOCRACIA E DIFERENÇA – Por Gilberto Gil & Antônio Risério — A CASA DE VIDRO
DEMOCRACIA E DIFERENÇA
Gilberto Gil & Antônio Risério
Rousseau, um dos grandes clássicos da literatura e pensamento democráticos, diz no Contrato Social que se tomarmos a expressão democracia em sentido rigoroso, vamos verificar que “jamais existiu, jamais existirá” uma democracia verdadeira. Não é possível substituir o Estado pela Sociedade, nem fazer do povo uma Assembléia Permanente – e permanentemente ocupada com decisões coletivas relativas aos interesses e negócios públicos.
A democracia verdadeira, para Rousseau, só é possível num estado pequeno – muitas vezes menor do que a Bahia ou a Califórnia -, onde seja fácil reunir o povo, onde os costumes sejam simples e onde haja “bastante igualdade entre as classes e as fortunas”. Não é bem isso que vemos à nossa volta. E pensamos que o filósofo suíço está certo.
Não é por outro motivo que insistimos no óbvio, isto é, no fato de que só podemos viver em democracias reais. De que nos movemos e nos movimentamos, com todas as nossas pulsões e compulsões, no horizonte do possível – e nunca em circunstâncias ideais. A grande virtude do regime democrático, desta perspectiva, é que a democracia é um regime perfectível. Um regime in progress. Uma obra aberta.
O Brasil é um lugar onde o regime democrático, em suas fulgurações fugazes, mais sugere, antes do que qualquer outra coisa, uma ave de arribação – ou uma bênção muitas vezes negada. (…) As nossas elites dirigentes sempre se lembraram, nos seus discursos fantasiosos – mas sempre se esqueceram, em sua conduta efetiva – do fato de que a sociedade brasileira pode ser tudo, menos monocromática. E a verdade é que a democracia jamais se realizará, no Brasil, caso o processo construtivo passe ao largo de nossa questão sócio-racial e de nossa multiplicidade cultural.
O Brasil é um curto-circuito antropológico: uma aventura de etnias e culturas em rotação, em conflito e em mestiçagem permanente, dos tempos coloniais aos tempos televisuais, quando nos dispomos a investir do Oiapoque ao Chuí… Somos um país de muitas cores, nuanças e matizes. Não podemos falar em democracia brasileira sem uma consciência radical (no sentido etimológico da expressão) destas diversidades…
E ocorre que a “democracia racial” é o nosso mais belo sonho. É o sonho central da mitologia social brasileira. Ninguém pode pôr em dúvida o seu amplo e profundo alcance na sociedade que se formou entre a Amazônia e o Rio Grande do Sul. Temos, evidentemente, que desmascarar a construção ideológica elitista de um mito paralisante e neutralizador dos conflitos. Mas o que nós queremos, enquanto descendentes de escravos, não é simplesmente negar o mito – e sim realizá-lo. Sabemos que mitos passados movem moinhos.
É necessário, para a sobrevivência e afirmação do Brasil, que o mito se encarne na história, assim como na história se encarnaram a metalurgia e a malandragem. Este é o sentido de democracia que nos interessa. A história das Américas – articulada em complexa tessitura de astecas, europeus, tupinambás e nagôs – é a história de uma heterogeneidade. E esta heterogeneidade – este fascinante e meândrico conjunto multicultural de civilização – deve rebrilhar no horizonte democrático. Pois a democracia é a possibilidade – o projeto de que as diferenças, todas as diferenças, se realizem em sua plenitude.
Mas é preciso definir, em termos brasileiros, o significado dessas diferenças. Afinal, somos todos iguais perante a natureza – perante as irrevogáveis leis da vida e da morte -, mas não somos todos iguais perante a cultura. E aqui é que temos que chegar a uma espécie de optimum democrático que consiste, básica e essencialmente, em abolir as desigualdades sociais – e em sublinhar as diferenças de cultura.
(…) A discussão da diferença não nos mobiliza em função da construção deste ou daquele astucioso ardil ideológico, mas no sentido nítido da realização democrática de nosso povo. (…) O autoritarismo é o último refúgio do etnocentrismo. A personalidade autoritária é aquela que quer abolir as diferenças. E abolir as diferenças é a ilusão trágica do etnocentrismo. E denunciamos a canoa furada. A viagem democrática, nunca será demais repetir, é aquela que aposta na redução, e mesmo na supressão, das diferenças sócio-econômicas – e aquela que aposta no negritar das diferenças de cultura.
GIL/RISÉRIO. In: O Poético e o Político, Ed. Paz e Terra, pg 34 a 39)