Editorial do Informes da Abong - Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais
Com as derrotas eleitorais, uma grande parte da esquerda - tanto partidária, quanto dos movimentos sociais - passou a produzir suas análises da realidade brasileira. Tarefa bastante difícil, dada a complexidade do quadro político, social e econômico de nosso país. A Abong há muito compreende que a realidade brasileira é muito complexa e sua divisão de classes sociais não pode ser explicada de forma binária, muito menos estão corretas leituras maniqueístas que a dividem de forma simplista entre bons/boas e maus/más.
A riqueza da sociedade brasileira é justamente esta diversidade, pluralidade, múltiplas identidades que se somam e se completam. As eleições são um destes momentos que melhor expressa essa complexidade, visto que um mesmo eleitorado pode, numa eleição, votar massivamente em um projeto de esquerda e, na eleição seguinte, alçar ao poder um projeto oposto. A única forma de conviver com esta complexidade é manter-se sempre bem próximo da base social, numa dinâmica de diálogo e escuta permanentes.
No processo de redemocratização brasileira ocorrido nos anos 80 e 90, o campo democrático e popular estava profundamente enraizado na base da sociedade brasileira. Este vínculo representou não só identidade política, mas legitimidade na representação de um projeto de sociedade. Com as vitórias eleitorais, no entanto, ao invés de aprofundar esta dinâmica de democratização da política, os/as representantes deste campo foram, paulatinamente, afastando-se dos processos participativos e, com isso, perdendo a aderência política com a base social. Hoje, salvo por relações históricas, há uma perda da capacidade e de representação real das novas agendas e processos de lutas em curso no País. Pior, quem ocupa este espaço, são ideologias ligadas ao pensamento conservador que usam a religiosidade popular como mote ideológico.
Mas as crises não são o fim da história. Elas representam um momento e podem ser a base para a reconstrução da trajetória popular iniciada há décadas atrás. Há um legado de conquistas sociais a ser defendido e novas agendas e lutas a serem travadas.
O importante é que este recomeço não abra espaço para os mesmos erros, em especial, o da centralização da política nos partidos. Os movimentos sociais que atuam em várias frentes de lutas e dialogam com os mais diferentes segmentos e setores vêm construindo a ideia de frentes amplas de lutas que podem, em algum momento, assumir funções de disputar o poder, assim como ocorre no Uruguai e no Chile. Um processo que possa rearticular esta pujante dinâmica de movimentos e organizações que, após estes treze anos de governos Lula e Dilma, demonstraram que têm sim capacidade de executar um projeto popular para o Brasil.
Neste sentido, as novas experiências que nasceram com a Frente Brasil Popular e a Frente Povo Sem Medo são um ótimo começo, embora estes processos possam ser mais horizontais, dinâmicos e democráticos. Há uma nova cultura política que nasce da crítica ao encastelamento de algumas direções. Lembramos aqui a inovação de processos mais horizontais, autogestionários e que possuem maior capacidade de aglutinação e de gerar a unidade na diversidade e pluralidade. Experiências de novos movimentos sociais que decidem de forma direta, com baixa estrutura de representação, não apostando em comandos nacionais, regionais, estaduais e municipais, pelo contrário, cada espaço possui autonomia para executar suas decisões. Com todos os seus limites, crises e problemas, há também os processos de construção dos Fóruns Sociais que, pelo menos em Porto Alegre, têm sido bastante inovadores enquanto dinâmica política, respeito às diferenças, diálogo com os partidos políticos democráticos e construção de agendas comuns de lutas.
A constituição desta frente ampla deve ter como centro a busca de uma unidade mínima para enfrentar o conservadorismo e a ofensiva da direita. Neste sentido, indo ao encontro da construção de uma nova cultura política, radicalmente democrática, a proposta da realização de um amplo processo de prévias nos parece bem interessante. Nem tanto pelo resultado que poderá produzir, mas fundamentalmente pelo processo e pelo simbolismo que isso representa. A decisão de quem irá representar o amplo e plural campo democrático e popular deve passar para além das direções partidárias.
Isso porque a ideia, independente de onde venha, da criação de uma ampla aliança nacional do campo democrático e popular voltada a discutir, primeiro um programa mínimo que produza a unidade e, segundo, uma dinâmica de projeto de poder, parece apropriada e necessária. Mas não deve, a priori, partir da definição de nomes antes da construção da própria unidade. Uma eventual candidatura unitária que represente o campo democrático e popular requer um pacto sobre programa e, principalmente, sobre as estratégias de transição do atual modelo econômico, social, ambiental e político para um outro socialmente justo e ambientalmente sustentável.
Apesar das derrotas eleitorais ou talvez por causa delas, várias organizações e movimentos sociais estão mobilizados para realizar, em Porto Alegre, um Fórum Social das Resistências, de 17 a 21 de janeiro de 2017, em contraposição ao Fórum Econômico Mundial, como espaço para um diálogo de todos os povos em luta e resistência, no Brasil, na América Latina e no mundo. Pretende-se realizar um evento totalmente autogestionário, inclusive do ponto de vista financeiro, ou seja, um evento sem recursos públicos, apenas com a cessão dos espaços públicos. Este poderá ser um momento privilegiado para debater estes temas - tanto da frente ampla, do balanço dos erros e acertos, do alinhamento de quais temas devem compor um possível programa mínimo, quanto da discussão sobre a pertinência de um processo nacional de prévias. Esta questão poderia ser discutida, inclusive, em diálogo com representantes da Frente Ampla Uruguaia que, como sabemos, tem larga experiência nestes processos.
A crise das derrotas eleitorais, por óbvio, atinge mais fundo aqueles segmentos que há anos vêm priorizando a militância institucional em detrimento das frentes de lutas dos movimentos sociais. Por isso, há setores mais desesperançados que outros. Muitas e muitos de nós, apesar das vitórias eleitorais, não saímos das trincheiras de lutas de 2003 até os dias de hoje. Mas, para além deste significado, o avanço do projeto neoliberal no mundo e no Brasil impacta diretamente todas as nossas agendas e lutas. Por isso, embora a derrota possa ser resultado de erros deste ou daquele campo político, as consequências nos atingem à todas e todos. Dito isso, só nos resta o caminho da unidade. E a unidade somente será eficaz e duradoura se partir do respeito às nossas diferenças, à diversidade de nossas atrizes e atores e estiver alicerçada numa metodologia radicalmente democrática. Sabemos da urgência deste novo ciclo histórico e estamos todas e todos dispostos a trilhar estes novos caminhos. Para isso, sigamos em diálogo e na luta!