ELLEN SIEGEL
No 30º aniversário do massacre de Sabra e Chatila, uma enfermeira de origem judaica, que prestava ajuda humanitária em um hospital em Beirute, rememora seu primeiro encontro com soldados israelenses. Hoje ela lhes pede alguns momentos de reflexão durante o dia do Ano Novo judaico. Ellen, desde sua primeira visita aos palestinos em 1972, apóia os movimentos israelenses contra a ocupação e pela paz. Ela testemunhou perante a Comissão Kahan, estabelecida para investigar o massacre. Seguem trechos principais de seu artigo
Fonte: Hora do Povo
Fonte: Hora do Povo
Aos soldados israelenses que estavam em Sabra e Chatila,
Hoje é o 30º aniversário do massacre nos campos de refugiados de Sabra e Chatila, em Beirute. Em 1982, o primeiro dia de Rosh Hashaná (Ano Novo) coincidiu com as últimas horas do horrível evento. Este ano, o primeiro dia do Ano Novo judaico, 16 de setembro se dá 30 anos depois das primeiras horas dos assassinatos.
Eu os encontrei em 1982. Estava trabalhando como enfermeira em um hospital em Sabra. Cheguei após a invasão israelense no Líbano, pouco depois de Israel haver negado a permissão de entrada de alimentos, água e medicamentos vitais ao local. Eu estava lá em uma ação humanitária. Moralmente, eu não podia ficar indiferente e silenciar enquanto a destruição da aldeia e a matança de seu povo estavam ocorrendo.
Na sequência do assassinato do recém eleito presidente do Líbano em meados de setembro o inferno estava à solta. Eu ouvia os aviões israelenses quebrando a barreira do som sobre os campos, ouvia o som contínuo do fogo da artilharia pesada e procurava não ficar perto de janelas que se estilhaçavam. Por quase 48 horas, de 16 a 18 de setembro, tentei salvar as vidas dos que eram trazidas para o hospital. Muitos apresentavam ferimentos severos de quem levara tiros a queima-roupa. Eu cuidava de centenas de refugiados aterrorizados buscando abrigo seguro no hospital. Eu tentava entender os gritos das mulheres, à noite eu subia ao alto do hospital enquanto as bombas de iluminação explodiam no ar. Os flashes iluminavam áreas no campo; o som da metralha de armas automáticas seguia a cada explosão de luz.
O primeiro dia de 5743 foi marcado pela chegada dos falangistas – vocês que estavam lá lembram-se da chegada da milícia extremista – à frente do hospital. Eles disseram aos trabalhadores para se reunirem. Eles nos fizeram caminhar pela rua principal do campo de refugiados: passamos pelos cadáveres, por uma escavadeira com inscrição em hebraico, que se ocupava em revolver o solo para cobrir uma extensa área onde antes estavam de pé dezenas de casas. Muitos integrantes da milícia passavam falando em walkie-talkies. Em um dado ponto, os soldados nos enfileiraram diante de um muro já varrido por balas e apontaram seus rifles contra nós. Depois de vários minutos, baixaram suas armas e nos retiraram do campo.
Eles nos dirigiram a um prédio da ONU abandonado. No pátio vimos uniformes de soldados israelenses, marmitas do exército e edições recentes do jornal israelense Yedioth Ahronoth (Últimas Notícias). Depois de nos interrogarem, nos levaram agora a um outro local, onde estava um posto do exército israelense. Estava localizado em um prédio de cinco andares de onde se via os restos dos campos destruídos; vimos soldados olhando na direção deles com binóculos. Foi assim que nos encontramos pela primeira vez.
Alguns de vocês usavam kipot (solidéus) e tallitot (xales de reza) e liam livros sagrados. Era a metade da manhã; parece que vocês rezavam o Amidá (cântico especial para esta data que os judeus rezam de pé nas sinagogas) que consiste em vários trechos, um sobre a paz, um sobre a bondade, a gentileza e outro, a compaixão. Um de vocês ofereceu a uma enfermeira um pedaço de bolo de mel cuidadosamente embalado – provavelmente feito pela sua mãe para que pudesse trazer durante esse período de serviço militar. Tradicionalmente, começamos o ano novo comendo algo doce – usualmente um bolo de mel – simbolizando nossas esperança por um ano doce. Nunca esqueci este gesto. Mas, ao pensar sobre o que ocorreu, sinto a dor de haver presenciado a celebração do Ano Novo Judaico enquanto milhares de inocentes eram enterrados em valas comuns a poucos metros abaixo. Um de vocês disse, "hoje é meu Natal". Eu sabia o que queria dizer com isso. Para nós este dia dá início a dez dias de introspecção e arrependimento. É quando o Livro da Vida é aberto e o destino de cada um, no ano que se inicia, é selado.
Neste setembro, volto a Beirute, como tenho feito todos os anos – para lembrar, para celebrar, para visitar as valas comuns, para me reunir com os sobreviventes, para ficar perto daqueles que perderam seus entes queridos e trocar testemunhos.
Eu tento adivinhar o que aconteceu a cada um de vocês durante estas últimas três décadas. Eu sei que Emil Grunzweig, que se tornara ativista do Paz Agora, foi assassinado em fevereiro de 1983, durante uma demonstração – uma das maiores da história de Israel – exigindo que o primeiro-ministro Begin adotasse as recomendações da Comissão Kahan que havia investigado o massacre. Sei que o tenente Avi Grabovsky decidiu testemunhar diante da Comissão. Que Ari Folman fez um filme: Valsa com Bashir.
E quanto ao restante de vocês? Muitos têm crianças, talvez netos. Vocês vivem em casas confortáveis, sentem segurança e tranqüilidade em suas casas e bairros? Vocês se alimentam bem? Receberam uma educação adequada, tem um salário que permite uma vida decente, acesso a saúde, viagens? Vocês sentem prazer em viver? O que transmitem para sua próxima geração?
Ao soldado que ofereceu um bolo de mel, ao que me disse que era Natal e aos demais um Feliz Ano de 5773 – Um bom Ano Novo.
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