Muito tempo atrás, quando começava no jornalismo e seguia o repórter fotográfico Vladimir José Gropelo nas suas andanças em busca de notícias policiais na então pacata Jundiaí dos anos 1970, acabei escrevendo uma matéria que parecia saída de um romance.
Vou resumi-la: a polícia havia prendido o chefe de uma quadrilha que andava barbarizando a região, tendo assaltado vários comerciantes e matado um deles. Acontece que o sujeito, que, se não me engano se chamava Enoque, tinha vida dupla, pois era um respeitável pai de família, vendia a conceituada Enciclopédia Britânica, e estava prestes a receber o título de "Cidadão Jundiaiense" na Câmara Municipal.
O indivíduo foi julgado, condenado e ficou preso alguns anos. Por coincidência, sua família morava na mesma rua em que vivi por mais de 20 anos. Em liberdade, voltou para lá, para a mulher e os filhos, e até eu me mudar, ao que consta, viveu como um cidadão normal.
Pois bem, o Enoque não era exatamente aquilo que as pessoas achavam que ele era. Enganou todo mundo durante um longo tempo, até se dar mal, repetindo uma história nem um pouco incomum neste mundo: gente que finge ser algo que não é.
Hoje em dia, segundo o noticiário, acontece, com o ex-presidente Lula, algo oposto ao que se passou com o Enoque 40 anos atrás.
Acho que na história do Brasil não existe alguém cuja vida foi tão investigada quanto o fundador do Partido dos Trabalhadores, por motivos óbvios.
Lula, carinhosamente chamado por alguns de Molusco, Nove Dedos e Apedeuta, já foi acusado de ser bilionário, ter mansão no Morumbi, contas secretas em bancos no exterior, ter sido alcaguete na ditadura - e até de ter violentado um companheiro de cela.
Todas essas acusações se mostraram mentirosas, simples boatos, parte da guerra suja de informação de que ele é vítima.
Lula, queiram ou não seus inimigos, é um fenômeno, uma pessoa daquelas que aparecem muito raramente neste mundo.
A trajetória de sua vida consiste na maior prova de que ele é especial.
O seu sucesso, as mudanças que realizou no país em tão pouco tempo, porém, o levaram a ser, como se diz, um cara marcado para morrer, no sentido figurado e até no literal, pela oligarquia brasileira, essa que conduziu a nação ao título de campeã mundial de desigualdade social.
E, assim, a cada dia, tenta-se mostrar que Lula não é aquilo que aparenta ser, não passa de mais um Enoque da vida - um espertalhão, um enganador, um impostor, apenas mais um malandro igual a tantos outros.
Por trás dessa campanha está o medo de que Lula volte a presidir o Brasil - ele e os "petralhas" - e radicalize as mudanças que iniciou.
É um medo tão profundo que chegam a inventar histórias tão infantis quanto essa última, que atribui ao ex-presidente da República o crime de ajudar uma empresa a obter contratos internacionais.
Lula é ex-presidente, ou seja, não exerce nenhum cargo público.
Por que, então, não pode dar palestras, cobrar por elas, prestar qualquer tipo de serviço, até mesmo fazer lobby por alguma empresa?
Se isso for crime, que milhões de brasileiros sejam presos, então, porque é exatamente isso o que fazem.
Ninguém é obrigado a gostar de Lula, a concordar com suas ideias, a defender o seu governo, sequer a respeitar as dezenas de homenagens que foram feitas a ele por entidades do mundo todo.
Mas tentar assassinar a sua reputação, transformá-lo num Enoque qualquer, isso é de uma sordidez tão grande que serve apenas para mostrar o quanto seus inimigos são pequenos, truculentos, sem moral ou escrúpulos.
Motta
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