O Brasil vem mudando muito, para melhor, nos últimos anos, em todas as áreas, embora uma pequena parcela da população teime em achar que a vida aqui era melhor nos tempos da privataria e do apagão, ou mais antigamente, quando a ordem era fazer crescer o bolo para depois reparti-lo entre os famélicos.
Essas mudanças são constatadas por todas as pesquisas sérias feitas pelas mais diversas entidades que se dedicam ao estudo social e econômico do país.
Uma das mais abrangentes é a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, a PNAD, sob a responsabilidade do IBGE.
Os resultados da edição de 2014 da PNAD mereceram estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o Ipea, o mais respeitado "think tank" brasileiro, que lançou hoje uma Nota Técnica especialmente dedicada ao levantamento do IBGE.
Há números impressionantes no estudo.
Um deles aponta que de 2004 até 2014 houve uma redução de 63% na taxa de extrema pobreza do país.
Outro mostra que a cobertura previdenciária saltou de 63,4% em 2004 para 72,9% em 2014.
Na educação, o Brasil atingiu em 2014 a média de dez anos de estudos da população entre 18 a 29 anos - em 2004 essa média era de 8,4 anos.
No mercado de trabalho, o PNDA 2014 indica que os rendimentos crescem continuamente desde 2004, e a informalidade (39,93% em 2014) e o desemprego (6,9% em 2014) estão muito abaixo do observado no início da série histórica.
Os resultados da PNAD referente a 2015, este ano maldito, só serão conhecidos em 2016.
Mas certamente mostrarão um ponto fora da curva de otimismo e crescimento que marca o Brasil da última década, graças, principalmente, à guerra sem trégua que a oligarquia empreende contra o governo trabalhista, sob o qual o Brasil tem mudado tanto.
E é sob esse ângulo que a análise do Brasil de hoje deve ser feita: o seu desenvolvimento econômico e social parece não interessar ao estrato superior da sociedade, esse que detém o capital, e que vê na melhoria das condições da população uma ameaça ao seu projeto de poder.
A seguir, trecho da apresentação da Nota Técnica do Ipea, com as suas conclusões mais relevantes:
O primeiro tema analisado, assinado por Rafael Osorio, mostra uma redução na taxa de pobreza extrema no último ano, sob todas as linhas de corte usualmente utilizadas. Pela linha de R$ 77,00, observou-se 2,48% da população em extrema pobreza, um índice 63% menor que em 2004. Entre 2013 e 2014, a taxa de pobreza extrema caiu 29,8%, uma redução importante cujas causas estão associadas, segundo o autor, à permanência do aumento da renda e redução das desigualdades. Complementárias às causas enumeradas por Osorio, podem-se observar o incremento dos valores médios despendidos no programa Bolsa Família, a difusão de direitos como o Benefício de Prestação Continuada e o aumento da cobertura previdenciária, e a melhoria metodológica de captação das rendas extremamente baixas, promovida pelo IBGE nessa edição da pesquisa. Retomando o argumento proposto, essa trajetória de redução da pobreza extrema foi combinada com a redução da desigualdade da renda captada pela PNAD, expressa no índice de Gini de 0,515 (redução de 9,7% desde 2004) e com um persistente aumento da renda domiciliar per capita real de R$ 549,83 em 2004 para R$ 861,23 em 2014.
Não foi somente a renda que avançou nos últimos anos, mas a estrutura familiar também está em franco processo de transformação. Ana Amélia Camarano e Daniele Fernandes analisam que os arranjos familiares estão mais diversificados. Os domicílios tradicionais ocupados por um casal e filhos diminuíram 10 p.p. em dez anos, de 54,8% para 44,8%, cedendo espaço para os domicílios habitados por homens e mulheres sozinhos, casais sem filhos e lares chefiados exclusivamente pela mulher (monoparentais). Ademais,
os novos arranjos familiares têm feito crescer a proporção de domicílios cujos parceiros não têm perspectiva de criar filhos, de 12,4% em 2004 para 20,2% em 2014. A pobreza também se reduziu independentemente do tipo de arranjo familiar, principalmente nos domicílios ocupados por mães com filhos, casal com filhos e pai com filhos.
Parte fundamental das mudanças sociais, os avanços na educação brasileira seguem uma trajetória ininterrupta, ainda que a velocidade desse avanço esteja abaixo do necessário para o Brasil cumprir suas metas estabelecidas pelo Plano Nacional de Educação (PNE). Paulo Corbucci, Herton Araújo, Ana Codes e Camilo Bassi constatam que o Brasil atingiu em 2014 a média nacional de 10 anos de estudos da população entre 18 a 29 anos, em 2004 essa média era de 8,4 anos. Em termos regionais, sociais e raciais, no entanto, as disparidades permanecem: em 2014, o Nordeste tinha 9,2 anos de estudo, e o Norte 9,3; os 25% mais pobres do Brasil possuem apenas 8,2 anos de estudo em média, o mesmo nível da população rural brasileira; e a média das mulheres (9,8) e homens (9,0) negros continua abaixo da média, ainda que estas diferenças tenham-se reduzido significativamente nos últimos dez anos. Isso implica um grande desafio de políticas públicas, pois a Meta 8 do PNE estabelece para 2024 12 anos de estudo “para as populações do campo, da região de menor escolaridade no País e dos 25% mais pobres, e igualar a escolaridade média entre negros e não negros”.
Outra questão abordada pelos autores na área de educação é o combate ao analfabetismo. Observa-se uma lentidão estrutural na taxa de alfabetização da população brasileira de 15 anos ou mais, que subiu de 88,6% em 2004 para 91,7% em 2014. Essa lenta progressão dá-se fundamentalmente pela existência de um elevado contingente de adultos e idosos analfabetos. Os programas de alfabetização voltados para esse público não têm conseguido atingi-lo. Esse dado estrutural dificulta o alcance das metas do PNE
relacionadas ao tema. Dois pontos, no entanto, são observados como bastante positivos: a redução das desigualdades inter-regionais do analfabetismo e a quase erradicação das desigualdades raciais do analfabetismo na população de 15 a 17 anos, tanto entre mulheres brancas e negras quanto entre homens brancos e negros.
No tema do mercado de trabalho, a abordagem de Lauro Ramos sobre PNAD 2014 revela as maiores preocupações conjunturais sobre o principal motor de expansão dos direitos sociais e da redução das desigualdades. De um lado, os rendimentos do trabalho crescem continuamente desde 2004, a informalidade (39,93% em 2014) e o desemprego (6,9% em 2014) estão muito abaixo do observado no início da série. O problema é o comportamento dessas variáveis entre 2013 e 2014, prenunciando uma parte importante do cenário crítico de 2015. Mais o desemprego e menos a informalidade reagiram negativamente no período, enquanto o crescimento do rendimento médio real, que fora superior a 7% em 2006 e próximo de 6% ainda em 2012, ficou abaixo de 1% em 2014 pela primeira vez no intervalo considerado. Isso mostra sinais de estresse no mercado de trabalho anteriores à crise que se iniciaria ao final de 2014 e por todo o ano corrente.
A estruturação do trabalho brasileiro trouxe uma importante conquista, que é a expansão da cobertura previdenciária. Leonardo Rangel avalia este fenômeno sob a ótica da expansão de direitos dos indivíduos contra as contingências que o afetariam no mundo do trabalho (gravidez, doenças e acidentes) e como um sistema que permite ao indivíduo a sua reprodução social na velhice. Considerando todas as categorias de beneficiários contributivos e não contributivos, a cobertura previdenciária saltou de 63,4% em 2004 para 72,9% em 2014 em toda a população ocupada de 16 a 64 anos. O aumento dessa cobertura foi contínuo entre 2004 e 2013, e estável no último ano, e é explicado pela expansão do número de contribuintes do Regime Geral da Previdência Social (RGPS). No RGPS, no entanto, permanecem grandes desigualdades entre as posições na ocupação: os empregados e empregadores possuem quase o dobro da cobertura previdenciária dos trabalhadores domésticos e por conta própria, ainda que todas as ocupações tenham aumentado seus índices de cobertura no período. Observando somente a população idosa (65 anos ou mais), a cobertura previdenciária contributiva e não contributiva tem mantido patamares razoavelmente elevados – 89,9% em 2004 para 91,3% em 2014 – e a população de beneficiários saltou de 11 milhões no primeiro ano para 17,2 milhões no último.
Ainda na questão do mercado de trabalho, a PNAD 2014 aponta, segundo Natalia Fontoura, Antonio Teixeira Lima Jr. e Carolina Cherfem, grandes desigualdades de gênero e raça entre os brasileiros, cujas mudanças são mais perceptíveis no longo prazo. Em 2014, o Brasil possuía 2,4 milhões de mulheres negras desocupadas contra 1,2 milhão de homens brancos desempregados e, apesar de as distâncias terem diminuído desde 2004, os homens brancos ainda percebem rendimentos 60% superiores aos das mulheres negras. Ademais, o aumento do desemprego impactou mais profundamente o grupo de mulheres e homens negros que o de brancos: o primeiro grupo representou 60,3% de todo o aumento de desemprego gerado entre 2013 e 2014. Este grupo é mais precarizado e vulnerável ao desemprego. Sua informalidade atual é superior à taxa da informalidade de brancos de dez anos atrás.
Dentre as ocupações femininas, o trabalho doméstico é acompanhado de perto pelo Ipea, por envolver a parcela mais vulnerável destas mulheres trabalhadoras, especialmente mulheres negras, cuja taxa de incidência no emprego doméstico supera a de todos os demais grupos raciais e de gênero (17,6% das mulheres negras ocupadas, de 16 anos ou mais, são empregadas domésticas). O emprego doméstico é, também, um dos temas mais transversais na questão social brasileira, cuja compreensão demanda análise das perspectivas de gênero, raça e classe, simultaneamente. Devem ser reconhecidos os avanços legislativos recentes com a aprovação da PEC das Domésticas (EC 72/13) e da Lei Complementar 150/15, cujos efeitos ainda estão para ser observados. A estrutura de proteção social do emprego doméstico tem melhorado sistematicamente ao longo dos últimos dez anos, no entanto, permanece mais precária do que a média dos outros empregos. Entre as mulheres negras, o grau de informalidade caiu de 75,9% em 2004 para 66,5% em 2014. Em média, hoje somente quatro em cada 10 trabalhadoras domésticas estavam protegidas no ano corrente, cujos rendimentos médios (R$ 683,00) são inferiores ao salário mínimo. Cresceu a proporção de trabalhadoras que prestam serviços em mais de um domicílio, de 21,4% há dez anos para 31,1% atualmente, mostrando um aumento da composição das trabalhadoras diaristas ante as de emprego fixo. Há grande expectativa na melhoria deste quadro nos próximos anos, em razão dos efeitos da mudança no marco regulatório da categoria e do próprio envelhecimento populacional das trabalhadoras domésticas, fruto da baixa atratividade do setor.
Outro bloco de análise atento às questões do mercado de trabalho trata da evolução do emprego agrícola nos últimos dez anos. Alexandre Arbex e Marcelo Galiza reconhecem que todas as categorias do emprego agrícola obtiveram aumentos de renda real bastante significativos nos últimos dez anos, de 40,9% para a base mais precarizada, que são os trabalhadores temporários, a 67,8% para o topo da classe dos trabalhadores permanentes, com ganhos importantes na redução da informalidade do trabalho, de 68,1%
em 2005 para 56,8% em 2014. A velocidade destas mudanças, no entanto, não foi suficiente para reduzir as desigualdades estruturais que residem no campo, tanto em relação às diferenças internas entre trabalhadores temporários e permanentes, quanto na histórica desigualdade entre campo e cidade. Internamente, a formalização e estruturação do trabalho estiveram mais ligadas à agricultura patronal que à agricultura familiar, aquelas conectadas ao fenômeno do avanço do agronegócio e da mecanização do campo. O desaquecimento do mercado internacional de commodities desde 2012 recolocou desafios ao equacionamento dos dois caminhos para o desenvolvimento do campo, um centrado no agronegócio voltado à exportação e o outro na agricultura familiar para o consumo de alimentos do mercado interno.
Ainda sobre a questão agrária, os mesmos autores propuseram uma breve análise sobre a questão do trabalho infantil no campo. Após reduções sistemáticas na população de crianças e adolescentes (5 a 14 anos) ocupados no mercado de trabalho de quase 2 milhões em 2004 para 839,6 mil em 2013, a PNAD de 2014 apontou um pequeno, mas inédito, aumento nesta população para 897 mil. Deste contingente, 53,3% residem nas áreas rurais, sendo que a população total de pessoas nessa faixa etária que vivem no campo é de apenas 18%. Apesar dessa desproporção, o trabalho infantil no campo está também fortemente associado às atividades produtivas da própria unidade familiar, cuja especificidade deve ser analisada considerando a importância da relação com a terra, o território e a comunidade, sem que, no entanto, esta especificidade afete o pleno desenvolvimento das crianças e adolescentes.
Nessa perspectiva, é importante notar que o trabalho infantil está majoritariamente distribuído na faixa de 10 a 14 anos (89,3% do total). No grupo rural de pessoas nessa idade, 43,6% foram classificados como trabalhador não-remunerado na unidade familiar, 37% na produção para autoconsumo e 8,7% como conta própria. São muito menos relevantes o contingente de empregados agrícolas em idade inferior a 14 anos (21,5 mil em 2014) e exercendo atividades não-agrícolas mesmo residindo no campo (52,6 mil). Apesar do pequeno aumento no trabalho infantil rural de 2013 para 2014, o saldo dos últimos dez anos é muito positivo: a queda do trabalho infantil no campo (57%) foi muito superior ao decréscimo populacional da mesma faixa etária nos mesmos dez anos (16%). Na população atual de trabalho infantil, nota-se que não há impacto sobre a frequência escolar, mas preocupa os alunos que trabalham e estudam, pois eles tendem a estar mais defasados em relação aos alunos que somente estudam.
Em suma, podem-se observar grandes transformações sociais no Brasil nos últimos dez anos, posto que a velocidade destas poderia sempre ser maior, especialmente nos grandes temas da desigualdade. Naquilo que a PNAD propõe-se a captar, observa-se que as mudanças atingiram questões estruturais da sociedade, a forma como as famílias se formam, o acesso à educação, à proteção social, à cobertura previdenciária e ao mundo do trabalho urbano e rural. Os dados para o ano de 2015 ainda estão por ser divulgados. Em meados de 2016 será possível uma análise mais precisa da capacidade da estrutura social brasileira em suportar crises. Por ora, pode-se afirmar que essas conquistas resistiram às mudanças conjunturais iniciadas em 2014, mostrando que o avanço social possui um tempo próprio de consolidação e que se pode atravessar crises econômicas com uma relativa (mas limitada) tranquilidade permitida pela estruturação de um Estado de Bem-Estar Social,
Motta
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