O Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) acaba de soltar um release bem interessante, que mostra que a saúde pública no Brasil poderia estar muito melhor do que está se os donos das operadoras de planos de saúde tivessem um mínimo de consciência social e não visassem apenas o lucro em seu negócio.
Vamos a ele:
Dados divulgados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), mostra que dos R$ 1,6 bilhão cobrados das operadoras pela ANS para ressarcimento ao SUS, apenas 37% (cerca de 621 milhões) foram pagos. Enquanto isso, 19% (mais de R$ 331 milhões) foram parcelados e 44% (mais de R$ 742 milhões) não foram nem pagos nem cobrados. Isto é, 63% das dívidas ainda não foram quitadas pelas operadoras.
O ressarcimento ao SUS é devido de acordo com o artigo 32 da chamada Lei de Planos de Saúde (Lei nº 9.656/1998), que estabelece que as operadoras devem ressarcir os serviços de saúde prestados aos seus clientes por instituições integrantes do Sistema Único de Saúde (SUS). Em outras palavras, os valores dos atendimentos feitos pelo SUS aos consumidores das operadoras devem ser reembolsados pelas empresas aos cofres públicos. À ANS cabe calcular e cobrar esses valores, que devem ser direcionados ao Fundo Nacional de Saúde.
“As pessoas contratam planos de saúde justamente por buscar uma alternativa ao atendimento do SUS. Quando a operadora recebe do consumidor e não presta o serviço contratado, ela acaba, na prática, vendendo uma vaga no sistema público. Ao não pagar essa dívida, a operadora onera ainda mais o sistema público e, ainda por cima, tem um lucro indevido”, afirma Joana Cruz, advogada do Idec responsável pelo estudo.
O trabalho também aponta que das 1.510 operadoras cobradas pela ANS, 76% ainda devem valores ao SUS. Apenas 24% das operadoras estão integralmente adimplentes, porcentual este menor que o das operadoras que não pagaram nem parcelaram nem um centavo sequer de suas dívidas (26%, somando mais de R$ 300 milhões).
Para o Idec, os dados obtidos junto à ANS demonstram claramente que é necessário alterar a forma como a cobrança é feita, tomando-se medidas mais eficazes e duras contra as operadoras que devem aos cofres públicos.
“O ressarcimento ao SUS é importante não só como mecanismo para compelir operadoras a cumprirem suas obrigações legais de cobertura procedimentos para os consumidores de seus serviços, mas também como política pública necessária para garantir o financiamento e funcionamento da saúde pública, a fim de ‘desafogar’ o SUS”, explica Joana. Ressalte-se que a saúde suplementar deveria oferecer ao consumidor procedimentos além dos oferecidos pelo SUS. Entretanto, a realidade é outra: planos oferecem menos que o SUS e quando os consumidores que deveriam ter acesso a esses já limitados procedimentos têm negativas e procuram a rede pública, esta sequer é ressarcida devidamente pelos planos.
Como foi feito o estudo
Os dados sobre o ressarcimento são referentes à dezembro de 2014 e foram divulgados pelo site da ANS em janeiro, mas em arquivo em formato fechado, o que impedia a filtragem e análise das informações, ao contrário do que determina a Lei de Acesso à Informação. Assim, o Idec somente teve acesso aos dados abertos via pedido de acesso à informação pelo Sistema Eletrônico do Serviço de Informações ao Cidadão do governo federal. Apenas assim foi possível chegar a esses valores e a outras considerações quanto à inadimplência das operadoras. “Ao divulgar os dados em formato fechado, a ANS viola o artigo 8º da Lei de Acesso à Informação, que determina que órgãos públicos devem divulgar em seus sites, independentemente de solicitação, informações de interesse coletivo ou geral, possibilitando a gravação de relatórios eletrônicos em formato aberto, tais como planilhas e texto, de modo a facilitar a análise das informações”, destaca Joana Cruz.
Sobre o ressarcimento
Segundo a ANS, os dados divulgados referem-se a todo o histórico de ressarcimento ao SUS, que começou a ser contado em setembro de 1998 – ou seja, há mais de 16 anos.
Para cobrar o ressarcimento, a ANS considera apenas os procedimentos de cobertura obrigatória previstos pelo rol da própria agência – no caso dos planos de saúde novos – e os estipulados contratualmente – no caso dos planos antigos, firmados antes de 1999. A posição do Idec, no entanto, é de que essa lista mínima de procedimentos deveria ser ampliada em ambos os casos. Isso, aliás, é o que determina a própria Lei de Planos de Saúde, em seu artigo 10. Tal artigo prevê que todos os tratamentos que não sejam de finalidade estética, ilícitos, medicamentos importados não nacionalizados, próteses, órteses e acessórios não ligados ao ato cirúrgico devem ser cobertos pelas operadoras dentro das segmentações contratadas. Caso a lista de procedimentos da ANS estivesse em conformidade com o que prevê a legislação, a dívida de R$ 742 milhões poderia ser ainda maior.
Mas o grande mistério por trás da questão é entender porque alguém que se dispôs a pagar por um plano de saúde privado abriria mão dos serviços que contratou e recorreria ao SUS. A hipótese mais provável é que os usuários se dirigem aos hospitais públicos porque tiveram o atendimento ou tratamento recusados ou dificultado pelas operadoras, o que é conhecido como “negativa de cobertura”.