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Uma seleção da seleção rodriguiniana

4 de Julho de 2014, 12:37 , por Desconhecido - 0sem comentários ainda | No one following this article yet.
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Nos anos recentes, nunca se escreveu tanto sobre a seleção. Fazia tempo que ela não era tão falada, tão debatida, tão criticada. O brasileiro de todas as idades, de todas as religiões, de todas as cores, redescobriu a seleção como uma parte de sua identidade. 
A imprensa, então, se entregou quase inteiramente a ela. Alguns jornalistas tentam, nesta hora de tantas paixões, tratar a seleção apenas como a representante do Brasil no evento mais importante do planeta. Outros se entregam à magia de sua camisa repleta de glórias e há até quem, indisfarçavelmente, torça contra a sua vitória, confundindo a paixão pelo futebol e pelo país com a ideologia político-partidária.
Todo esse oceano de sentimentos despertados pela seleção em sua longa história teve um cronista ímpar, o jornalista e escritor Nelson Rodrigues.
Foi ele quem melhor retratou o que é a seleção, o que ela representa para os brasileiros, por meio de crônicas insuperáveis em estilo, inteligência e bom humor.
Os trechos abaixo, uma seleção da seleção rodriguiana, dão uma pálida ideia de quem foi o Nelson Rodrigues cronista. 
E de seu amor incondicional ao "escrete".


Complexo de vira-latas

(...) A pura, a santa verdade, é a seguinte: - qualquer jogador brasileiro, quando se desamarra de suas inibições e se põe em estado de graça é algo de único em matéria de fantasia, de improvisação, de invenção. Em suma: - temos dons em excesso. E só uma coisa nos atrapalha e, por vezes, invalida as nossas qualidades. Quero aludir ao que eu poderia chamar de "complexo de vira-latas". Estou a imaginar o espanto do leitor: - "O quem a ver isso?" Eu explico.
Por "complexo de vira-latas" entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol. Dizer que nós nos julgamos "os maiores" é uma cínica inverdade. 
Manchete Esportiva, 31/5/1958

É chato ser brasileiro!

Dizem que o Brasil tem analfabetos demais. E, no entanto, vejam vocês: - a vitória final, na Copa da Suécia, operou o milagre. Se analfabetos existiam, sumiram-se na vertigem do triunfo. A partir do momento em que o rei Gustavo da Suécia veio apertar as mãos dos Pelés, dos Didis, todo mundo aqui sofreu uma alfabetização súbita. Sujeitos que não sabiam se gato se escreve com "x" iam ler a vitória no jornal. Sucedeu essa coisa sublime: - analfabetos natos e hereditários devoravam vespertinos, matutinos, revistas e liam tudo com uma ativa, uma devoradora curiosidade, que ia do "lance a lance" da partida até os anúncios de missa. Amigos, nunca se leu e, digo mais, nunca se releu tanto no Brasil.
(...) E a quem devemos tanto? Ao meu personagem da semana. Ninguém aqui admitia que fôssemos os "maiores" em futebol. Rilhando os dentes de humildade, o brasileiro já não se considerava o melhor nem de cuspe à distância (...).
Manchete Esportiva, 12/7/1958

O Eichmann do apito

Amigos, vencemos o Chile. E, neste momento, eu não vou quebrar lanças em prol do estilo, como queria Bilac. E pelo contrário. Numa hora de farto pileque cívico, eu quero ter o mau gosto de um orador de gafieira. Quero falar em bandeiras "drapejando". E vamos e venhamos: - foi uma vitória colossal, uma salvagem vitória. Estava tudo contra nós, rigorosamente tudo. Até os Andes tinham enfiado uma máscara até as orelhas.
Na minha crônica anterior, antes do jogo, eu falava na solidão do escrete. Jamais um time de futebol ficara tão só. Mas eu escrevi que o brasileiro é ainda maior quando solitário.
(...) Mas aí é que está. O Brasil estava só, mas tinha Garrincha. Feliz do povo que pode esfregar um Garrincha na cara do mundo! E o Mané, com suas pernas tortas e fulgurantes, com seu olho rútilo e também torto, pôs os Andes de gatinhas, ou de cócoras, sei lá.
(...) Amigos, como é mais linda a vitória roubada. O juiz gatuno deu ao nosso feito uma dimensão mais comovida e mais deslumbrante. Não faz mal o frango ou, por outra, o peru que Gilmar engoliu. O nosso goleiro come seus frangos, seus perus, mas não se deprime, não se desagrada. Não foi apenas a vitória do escrete. Foi sobretudo a vitória do homem genial do Brasil.
O Globo, 14/6/1962 

Beijos imaculados
Amigos, falemos ainda e sempre do bi. Normalmente, cada um de nós é um solitário e um incomunicável. O sujeito vive roendo a própria solidão como uma rapadura. E, súbito, o escrete vem e arremessa o brasileiro do seu silêncio e de sua misantropia. Este povo taciturno, caladão, tornou-se um extrovertido ululante. Nas esquinas, nas casas, nos botecos, erguíamos o nosso grito como uma lança agudíssima (...).
O Globo, 23/6/1962

Matar ou morrer
Amigos, se me perguntarem qual é o maior defeito do futebol brasileiro, eu direi: - a delicadez, e reforço: - a extrema delicadeza. De fato, não há na Terra um craque que tenha a polidez do nosso. O brasileiro é um tímido, um contido, um cerimonioso. Foi assim em 58, foi assim em 62. Nas duas Copas, os adversários já entravam de navalha na liga.
(...) E não há dúvida de que, por uma tendência natural e por se tratar de um tri, vão caçar os brasileiros a pauladas. Outrora, o brasileiro babava de inveja e deslumbramento só de ouvir falar no inglês. Mas a verdade é bem diferente. Hoje sabemos que o único inglês da vida real é o brasileiro. Sim, qualquer favelado nosso, desdentado e negro, é um monstro de boas maneiras.
O Globo, 30/5/1966

Um escrete de feras
(...) Imaginem vocês que, ontem, recebo um interurbano de São Paulo. Era um leitor paulista, indignado. Com um horror indescritível, vira locutores bandeirantes torcendo contra o escrete nacional. No fim, berravam: - "Vitória imerecida! Vitória imerecida!" Não eram paulistas, não eram brasileiros, não eram nada: - eram súbitos índios peruanos (...).
O Globo, 14/4/1969

À sombra dos crioulões em flor
(...) Eis o que eu queria observar: fez bem o escrete brasileiro em tirar sua bela vingança. Os ingleses é que, sem pernas, fisicamente gastos, teria de fazer cera. Basta lembrar que, para coroamento do olé, quase saiu o terceiro gol, lindo, lindo, do crioulo. Se Pelé tivesse estourado as redes inglesas, havíamos de guardar seu gol numa caixinha de veludo. Nunca se viu, em tempo nenhum, tão formidável explosão lírica e maligna. A seleção campeã do mundo foi posta na roda (...).
O Globo, 17/6/1969

Guerra suja, tão suja
Quando escrevo sobre as hienas, sobre os abutres, sobre os chacais do futebol brasileiro - todo mundo acha que estou fazendo uma metáfora. E ninguém desconfia que são as hienas, os chacais, os abutres os autores da catástrofe. Já rolou a cabeça de João Saldanha. Não se pense, porém, que a tragédia foi improvisada de um dia para outro.
(...) Ah, foi uma guerra suja de tantos contra um só. Guerra digna do nosso vômito.
O Globo, 19/3/1970

O belo milagre das vaias
(...) Seremos campeões de 70, conquistaremos para sempre o caneco, ,porque somos melhores. Mas isso seria pouco. Além de melhores, levamos para o México as vaias ainda não cicatrizadas. De vez em quando, eu relembro o que acontecia com o "Tigre da Abolição". Nos comícios, José do Patrocínio começava gelado de pusilanimidade. Era preciso que os amigos, no meio da multidão, o chamassem de "negro", "negro", "negro" e "negro". E a humilhação racial o potencializava. Dizia então coisas como aquela: - "Sou negro, sim! Deus deu-me sangue de Otelo para ter ciúmes da minha pátria!" (...)
O Globo, 1/5/1970

Dragões de espora e penacho
Amigos, foi a mais bela vitória do futebol mundial em todos os tempos. Desta vez, não há desculpa, não há dúvida, não há sofisma. Desde o Paraíso, jamais houve um futebol como o nosso. Vocês se lembram que os nossos "entendidos" diziam dos craques europeus. Ao passo que nós éramos quase uns pernas-de-pau, quase uns cabeças-de-bagre. Se Napoleão tivesse sofrido as vaias que flagelaram o escrete, não ganharia nem batalhas de soldadinhos de chumbo.
(...) Amigos, glória eterna aos tricampeões mundiais. Graças a esse escrete, o brasileiro não tem mais vergonha de ser patriota. Somos 90 milhões de brasileiros, de esporas e penacho, como os Dragões de Pedro Américo.
O Globo, 22/6/1970

A pátria em chuteiras
Amigos, a vitória de anteontem justifica uma meditação sobre o escrete. Pergunto: - para nós, o que é o escrete? Digamos: - é a pátria em calções e chuteiras, a dar rútilas botinadas, em todas as direções. O escrete representa os nossos defeitos e as nossas virtudes (...)
O Globo, 2/6/1976
Fonte: http://cronicasdomotta.blogspot.com/2014/07/uma-selecao-da-selecao-rodriguiniana.html

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