Carlos Motta
Conheci um sujeito, não era propriamente meu amigo, mas estudei com ele alguns anos, nos antigos ginásio e colegial.
Um cara normal, brincalhão até em demasia, que não se destacava em nenhuma matéria da escola, mas que chamava a atenção por algo, que nós, seus colegas, meio que admirávamos, meio que gozávamos dele por causa daquilo: tinha a mania, acho que o termo certo é esse mesmo, mania, de vender coisas.
Explico melhor, não só vender, como comprar.
Funcionava assim: ele sabia que um de nós tinha, por exemplo, uma vitrola - para quem não sabe, era assim que a gente chamava, naquele tempo, o toca-discos - quebrada, fazia uma oferta ridícula por ela - às vezes até ganhava algum desses trastes - e não sabíamos como, consertava a bicha e a vendia por um preço que, para a gente, era extraordinário.
Ficávamos sabendo dos seus negócios porque ele não fazia nenhuma questão de escondê-los.
Ao contrário, vivia se gabando deles.
Acabado o colegial, perdi de vista esse meu colega vendedor de coisas.
Encontrei com ele, depois, apenas duas vezes.
A primeira foi num restaurante.
Ele me viu, foi até à minha mesa, nos cumprimentamos, e apontou a sua família, que almoçava perto de uma janela, esposa e dois filhos, pré-adolescentes.
Perguntei o que estava fazendo da vida e vi, então, seus olhos brilharem:
- Continuo comprando e vendendo, só que agora coisas maiores, carros, terrenos, até imóveis. Naquele esquema, você se lembra, de dar uma reformada, uma consertada, e ter um bom lucro.
E continuou, por alguns minutos, a falar das vantagens do seu negócio.
- Na maior parte das vezes não pago imposto, não tenho firma, e assim o lucro é maior ainda.
Encerrada a conversa, se despediu.
Fui reencontrá-lo poucos anos depois.
Voltava para casa e tive de fazer um desvio por umas ruas perto de onde trabalhava por causa de umas obras.
E acabei passando justo em frente onde esse meu colega de escola morava com seus pais no tempo em que estudávamos juntos.
Curioso, olhei para a casa, e como ainda era dia, estava claro, pude ler uma placa, tamanho daquelas de "vende-se", só que nessa a mensagem era mais ampla - "Família vende tudo", dizia ela.
Não aguentei.
Estacionei o carro, e fui dar uma olhada mais de perto.
Mal cheguei em frente da casa, vi o meu antigo colega sentado numa cadeira, no fundo da garagem.
Fui até ele, apertamos as mãos, e, sem sequer perguntar, ele foi logo contando a história:
- Veja só o que é a vida, meu amigo. Estava bem até outro dia, mas tive um azar daqueles. Comprei um carro de uma senhora, velhinha, que precisava do dinheiro. Estava inteirinho, uma beleza. Fiz uma oferta, paguei bem pouco, ela precisava do dinheiro... Disse "esse eu não vendo, vai ficar para mim". Pois bem, num belo dia, estava viajando com a família toda, e numa curva, o carro saiu de lado, brequei, e nada. Acabei capotando, o carro amassou todo, foi perda total, e nós quatro, eu, minha mulher e meus dois filhos, saímos feridos. Eles tiveram só alguns cortes, algumas contusões, um braço e outro quebrados, mas eu... Me lasquei, tive uma fratura complicada numa perna, fiz duas cirurgias. Conclusão: gastei um bocado com tudo isso, e ainda não estou bom, a perna dói, não consigo andar direito, uso até uma bengala.
- Mas você não tinha plano de saúde? - perguntei.
- Tinha nada, sempre fui daqueles que ganhavam dinheiro e gastavam tudo ou quase tudo. Trabalhava tanto, fazia tantos rolos, que acabava esquecendo dessas coisas. O dinheiro entrava e saía...
Ele contou ainda que seus pais haviam morrido e ele tinha herdado aquela casa. E que, depois de tentar tudo, havia chegado à conclusão de que não havia outro jeito a não ser vendê-la, com tudo o que estava nela, para poder tocar a vida.
Fui embora triste, confesso.
Nunca mais vi esse meu antigo colega de escola.
De vez em quando bate uma vontade de saber como ele está, se ele ainda compra e vende coisas, como ele tem se virado nesta baita crise que o país vive.
Afinal, os seus negócios nem de longe podem concorrer com os dos espertos negociantes que hoje ocupam o Palácio do Planalto.