Não é para se ter medo da bomba coreana, uma gota d´água num oceano de milhares de ogivas americanas.
Por Tarcisio Lage, de Hilversum, Holanda:

Por volta de 1977 Herman Kahn, um dos criadores da Hand Corporation e autor de On Thermonuclear War (Sobre a Guerra Termonuclear), participou de uma conferência em Berna sobre o que seria a comida no ano 2000.Com seus mais de 120 quilos e uma língua parecendo uma metralhadora, ele abateu ecologistas de todos os quadrantes.
Eu trabalhava no Serviço Brasileiro da Rádio Suíça Internacional e fui entrevistá-lo, juntamente com um colega do Serviço Inglês. Meu interesse, confesso, não estava centrado no que iríamos comer em menos de 25 anos.
Na época fazia parte de um grupo de brasileiros espalhados por toda a Europa e com ligações a outros continentes empenhado em denunciar os desmandos da ditadura no Brasil. O regime militar, em 1976, acabara de assinar o acordo nuclear com a Alemanha Federal para a construção das três usinas em Angla dos Reis. Então, para resumir, quando fui entrevistar Herman Kahn num hotel de Berna, meu cardápio era a bomba, sua maior especialidade.
Fiquei surpreso quando Herman Kahn fez a previsão que, no tempo em que estivéssemos comendo pastilhas concentradas no longínquo ano 2000, haveria pelo menos umas 20 potências nucleares no Planeta e, enfatizava ele, isso seria bom para estabilidade mundial, para o equilíbrio de forças.
A surpresa era tão maior porque Kahn, um conselheiro estratégico do governo estadunidense, criticava o Tratado de Não Proliferação das Armas Nucleares, imposto garganta abaixo do mundo inteiro em 1970
pelo Clube da Bomba. Clube da Bomba, vamos dizer assim, é o nome carinhoso que já se dava (e ainda se dá) ao Conselho de Segurança da ONU e seus cinco representantes permanentes. Na época: Estados Unidos, União Soviética, China, Grã-Bretanha e França.
Hoje, sabemos, a URSS foi substituída pela Rússia que ficou com a parte do leão do arsenal nuclear soviético. Quatro anos mais tarde, em 1974, fazendo vista grossa aos anseios exclusivistas do Clube da Bomba, Índia e Paquistão explodiram seus Little Boys, mas não foram aceitos no clube. Para quem talvez não saiba, Little Boy foi o presente que Truman despejou sobre Hiroxima em agosto de 1945, num Japão
destroçado e pronto a se entregar.
Enfim, não por serem teimosos e desobedientes, mas por que não dispunham de misseis e submarinos para levar seus petardos a qualquer parte do Planeta, Índia e Paquistão não foram aceitos no Clube. Mesmo assim continuaram desenvolvendo seus petardos nucleares, ao mesmo tempo que rosnavam e rosnam ainda um contra o outro. Ou uma contra o outro e vice-versa. Se palavras detonassem bombas, Nova Deli e Islamabad não existiriam mais. Aliás, é para isso que serve a posse de armas nucleares, para arreganhar a boca e mostrar os dentes de plutônio.
Herman Kahn já sabia que as armas nucleares, desde sua concepção, foram desenvolvidas apenas para intimidar, a chamada detante que manteve o equilíbrio durante o período da guerra fria. Dizem que o Dr. Strangelove de Kubrick foi inspirado em Herman Kahn.
Ficção à parte, foi Kennedy, obcecado com a ideia de “nem mais um passo adiante”, quem quase ateou o fogo nuclear no Planeta, ao barrar a instalação de foguetes em Cuba, ainda que os EUA tivessem seus mísseis na Turquia nas barbas dos russos. Nós podemos. Eles não. Nem mais um passo adiante.
Com a Coreia do Norte, juntando-se Israel que possui segundo alguns cálculos uns 200 artefatos nucleares estocados, temos no mínimo nove países com suas bombas, número bem menor do que o previsto por Herman Kahn. O Irã ainda está na fase tem não tem.
Tem?A pergunta que quer sair desde o início deste artigo é se agora, com o anúncio espetacular da Coreia do Norte de ter feito um teste com uma bomba de hidrogênio, o mundo está mais em perigo e se torna possível uma guerra termonuclear. Talvez aqui valha empregar uma expressão maldita nas redações: muito antes pelo contrário.
Não se conhece nação suicida na História. Há resistências heroicas, povos destemidos lutando contra invasões até o último resistente, mas não uma nação (vá lá, um governo) lançando-se numa empreitada suicida de antemão. Leônidas no desfiladeiro das Termópilas respondendo ao observador que lhe dizia ser as flechas dos persas tantas que iriam encobrir o sol? Melhor, combateremos à sombra, teria respondido o espartano.
Millôr Fernandes interpretou brilhantemente tamanho heroísmo: Ah, o desfiladeiro não tinha saída.
Fala-se também de boca cheia contra a possível bomba iraniana. Qualquer que seja o governo em Teerã ele não será tão louco para mandar uma bomba sobre Tel Aviv, sabendo que, se não for destroçado por artefato idêntico lançado de Israel, será dizimado por uma frente única do Clube da Bomba.
No filme Laurence da Arábia o império britânico recusa fornecer artilharia pesada aos árabes, então aliados contra o império Turco. A artilharia pesada era (quase) a bomba atômica da época e os donos do mundo (como agora) não queriam colocá-la nas mãos de subordinados.
É uma velha história. O monopólio das armas que fazem a diferença nas mãos de quem dita as cartas. Os EUA têm 5.525 ogivas nucleares prontas para o uso, capazes de destruir o Planeta centenas de vezes e gastam, anualmente, U$ 6,4 bilhões para manter seus armazéns da morte em dia.
Não é de dar medo o traque coreano, pois mesmo o menino mimado Kim Jong-sun sabe não ter forças nem para atravessar a zona desmilitarizada e conquistar o resto do país. Medo se deve ter é da potência capaz de ir contra seus parceiros do Clube da Bomba e invadir um país soberano, o Iraque. Os que têm fé podem até rezar. Livrai-nos de um Doutor Strangelove, amém.
PS: O Kim Jong-sun pode até sonhar com o personagem. Mas se existir um de verdade, a probabilidade esmagadora é que seja do país da Disneylândia, local bem frequentado pelo atual líder coreano quando ele era criança.
Tarcísio Lage, jornalista, escritor, começou na Última Hora de Belo Horizonte no início dos anos 60. Com o golpe de 1964 teve de deixar a cidade e o curso de Economia na UFMG. Até 1969, quando foi condenado pela Injustiça Militar, trabalhou em várias redações do Rio e São Paulo. Participou da tentativa de renovação da revista O Cruzeiro e da reabertura da Folha de São Paulo, em 1968. Exilado no Chile no final de 1969, trabalhou, em seguida, em três emissoras internacionais: BBC de Londres, Rádio Suiça, em Berna, e Rádio Nederland, em Hilversum, na Holanda, onde vive atualmente. As Tranças do Poder é seu último livro.
Direto da Redação é um fórum, editado pelo jornalista e escritor Rui Martins.