Por Maria Fernanda Arruda – do Rio de Janeiro:
Ao assumir o Governo da República, Lula contou que estava recebendo uma “herança maldita”. Mais não disse e pouco lhe perguntaram. Óbvio, estava se referindo ao espólio deixado por Fernando Henrique Cardoso, um quadro desanimador, tendo a miséria e a pobreza como pano de fundo e a liquidação da economia nacional em primeiro plano.
Na verdade, e até sem tempo para meditar demais sobre isso, o novo Presidente recebia uma herança maior, acumulada de séculos, processo que chegou com as naves de Alvares Cabral, marco do início da colonização de exploração: exploração de um povo, de suas riquezas e de suas terras. Aprendemos isso pela rama nos bancos de escola: Martim Afonso de Souza e padre Anchieta, as capitanias hereditárias, os bandeirantes e as terras, todas as terras, que eram subtraídas aos seus donos e passadas à Coroa Comercial de Navegação dos reis portugueses.

Faltou sempre uma compreensão abrangente: Brasil, colônia agrícola, aplicada à monocultura da cana de açúcar e depois do café, estendendo-se por amplos latifúndios, trabalhados pela mão-de-obra escrava, negros trazidos de África nos navios dos mercadores de carne humana, em seguida financiadores dos engenhos, do plantio da cana e da comercialização do açúcar; homens embranquecidos e enobrecidos no comércio de alto coturno, praticado pelas ruelas de Salvador e depois nas ruas que se conservam no Rio de Janeiro antigo, finalmente enobrecidos pelo baronato cafeeiro.
Não se perca de vista que o “Estado Negociante” lançou suas sementes durante os 50 anos em 5, obra de JK, administrando o País com as chamadas “comissões mistas”, compostas por burocratas do Estado e por empresários e executivos de empresas (o GEIA implantou a indústria automobilística no Brasil, sob comando do almirante Lúcio Meira e a participação de gente da iniciativa privada). Paralelamente, obras como Brasília ensejavam outros negócios, esses mais informais, envolvendo comissões pagas e recebidas, com o surgimento das grandes empreiteiras. Durante os 20 anos de Ditadura, o Estado, em proporções inéditas, e ao propor a construção do “Brasil Grande”, dinamizou em muito a vida e ações que fizeram dele o “Estado Negociante” por excelência. Esse foi o Estado Corrupto por excelência, o parceiro da iniciativa privada nas grandes negociatas de Ali-Babá e seus muitos ladrões.
Nos oito anos de FHC o trabalho de Hércules foi acelerado e quase que concluído; restou muito pouco a ser privatizado e entregue ao capital internacional. Realizando enfim a sua vocação, a burguesia brasileira ajustou-se a esse mundo novo, acomodando-se na condição de sócia menor e rentista militante. Politicamente, teve necessidade de vestir-se em novas formas e cores, novas fantasias. E recebeu novas atribuições.
Como se põem as elites brasileiras nesse mundo globalizado, vivendo da modernidade periférica? Ricos e muito ricos, que se identificaram com a União Democrática Nacional (UDN) e depois com a ditadura, acomodam-se nos confortos propiciados pelo PSDB e fazem de FHC o seu ponto de referência. Conservam as ideias de velhas oligarquias, como a dos Caiado em Goiás; fazem profissões de fé liberais, dignas de Armando de Salles Oliveira, Milton Campos, Afonso Arinos; revestem o seu mandonismo nas fardas e galardões de generais. São banqueiros, grandes rentistas, empresários ligados ao capital internacional, os ruralistas da agroindústria, os donos de jornais e canais de televisão, homens de grandes negócios.
Culturalmente, as elites brasileiras, limitadas pelas possibilidades de uma antiga colônia que não lutou pela independência, nunca se atreveram na tarefa de construção de uma cultura própria, empenhando-se em copiar os padrões que podiam importar, o que permitia se distinguirem do povo nativo, mestiço, ignorante, indisciplinado e preguiçoso. A “modernidade” trouxe para elas o conforto de poder deixar de lado o simples plágio, a cópia custosa, mas sempre copiada, a que inferioriza. A partir de então, essas elites integram-se no mundo da modernidade, já como cidadãos de primeira classe, os que podem manipular os poderes da fortuna, sem que precisem ser identificados por uma nacionalidade menor, mas que passam a ser aceitos como cidadãos do mundo. Somos todos sócios.

Essas elites precisam manter as rédeas do poder político, mas sem a necessidade de participação pessoal na vida dos partidos e das instituições. Cada vez mais os políticos são profissionais que se agrupam e atuam, não em função de programas partidários, mas de interesses econômicos seus e de grupos que representam, desvinculados de compromissos com seus eleitores. Essa desnaturação do mandato passou a ser aceita com naturalidade e mal no damos conta de que o jogo que se faz no Congresso Nacional é o jogo de interesses muito específicos de grupos, as “bancadas”. As elites acabam por formar em instância mais alta uma cooperativa, reunindo empresários, banqueiros, jornalistas, intelectuais, que definem diretrizes em defesa do que lhes interessa .
O sucesso da política assistencialista do Lula, tão severamente rejeitada pelos sociólogos do CEBRAP, deu-lhe o reconhecimento mundial e a rejeição enojada das elites brasileiras. Essa política mostrou os limites muito pequenos da casa grande, permitindo a milhões de historicamente excluídos ocuparem os espaços que pertencem a eles, não à casa grande, o que aos olhos dessas mesmas elites se aparenta como invasão e desrespeito à propriedade privada. Mas, de quem é mesmo o pedaço?
A incapacidade para aceitar uma sociedade democrática, onde não se reconheçam os privilégios de casta, obriga às elites retirar a máscara e mostrar a sua cara horrível. Os seus crimes, com a exploração clandestina de trabalho aviltado, a destruição da natureza e poluição do meio-ambiente, a sonegação de impostos, a delapidação do patrimônio público, o uso e abuso da propriedade, jamais tendo entendido o que seja o interesse público.
Sentindo-se ameaça pelo “lulismo”, as elites passam a exercitar às claras os seus preconceitos, vomitam as suas maldades, desejam os negros pobres fuzilados pelos seus policiais, os filhos postos em penitenciárias. Aceitam de bom grado a possibilidade de uma “solução final”, vinda da imposição de consumo de alimentos envenenados, ainda que proposta de uma Ministra do governo Dilma.
Hoje, temos diante de nós essas elites, que ordenam aos seus deputados votarem leis de moralismo aberrante e de utilitarismo antiético. E que contam com a solidariedade de uma classe média bestificada pelos meios de comunicação, a vagar aparentemente sem rumo, mas trilhando por veredas que conduzem à violência que estigmatiza o seu fascismo.
Então, oh! Lula, não é chegado o momento de enfim implodir a casa grande?
Maria Fernanda Arruda é escritora, midiativista e colunista do Correio do Brasil, sempre às sextas-feiras.