Por Redação – do Rio de Janeiro
A Justiça, em alguns casos, tem pressa. E, na passagem de comando da Beneficência Portuguesa (BP) — hospital secular no Rio de Janeiro — ao Grupo D’Or, um dos maiores proprietários de hospitais particulares do país, a agilidade com que a 3ª Vara Federal de Execução Fiscal tem tocado adiante o processo faz todo sentido. Trata-se de um negócio bilionário, que corre o risco de ser interrompido se encontrar pela frente obstáculos razoáveis, como a permanência dos atuais arrendatários da instituição por mais um ano como prevê a Lei do Inquilinato, citada em recurso judicial por seus advogados, e o questionamento quanto ao preço pago em leilão, de R$ 60 milhões, por um patrimônio avaliado em R$ 300 milhões.

A decisão da juíza federal Fernanda Duarte Lopes Lucas da Silva, de passar o controle da Beneficência Portuguesa à empresa da família Moll, nos próximos dias, embora possa ainda ser questionada em tribunais mais altos, “não faz sentido”, protesta o presidente da instituição, Orlando Roberto Matias Dias.
— É como pedir a um inquilino que deixe o imóvel em litígio e, se ganhar a causa em instâncias superiores, volte a ocupar o espaço — acrescentou Dias.
Pacientes correm
rico de morte com
a sentença judicial
contra internações
Mas a sentença da magistrada, na realidade, tem gerado conflitos mais imediatos, com consequências diretas à vida ou à morte de pacientes. Entre os pontos polêmicos da sentença está a proibição para que o hospital da Beneficência Portuguesa receba novas internações e funcione em modo reduzido, com o atendimento apenas aos atuais pacientes. Caso a decisão da juíza fosse cumprida à risca, o morador do bairro da Glória Francisco Roberto, de 46 anos, teria morrido no último dia 6.
Logo após um pelotão de fiscais, oficiais de Justiça e advogados retalhar os espaços centenários da BP entre áreas de posse do Grupo D’Or e setores vitais ao funcionamento do hospital, Roberto entrou a pé pela portaria, no final da manhã. Desmaiou e foi atendido pela equipe de plantão. Sofrera um enfarte, ali mesmo. Encaminhado à Unidade de Tratamento Intensivo e graças à teimosia dos médicos em colocar a vida do paciente acima da decisão legal, Roberto sobreviveu.
— Não faz sentido que o hospital, enquanto durar essa disputa na Justiça, seja proibido de atender às pessoas. A Beneficência tem 2,5 mil associados que, na maioria dos casos, dispõem apenas deste hospital. São quase todos idosos que, justamente agora, mais precisam do atendimento médico negado pela Justiça — argumenta Orlando Dias.
Negócio bilionário
Quando o médico Jorge Moll Filho conseguiu um empréstimo do maior proprietário de empresas de ônibus do Rio de Janeiro, Jacob Barata, para comprar ações do hospital Barra D’Or e, em seguida, transformar o Hotel Copa D’Or na unidade de saúde com o mesmo nome, alguns anos depois, ainda não se tornara sócio do Banco BTG Pactual que, após a prisão de seu presidente, o ex-banqueiro André Esteves, pensa em se desfazer do negócio. Após a associação, há cinco anos, comprou 11 hospitais, o que lançou a família Moll entre os maiores players do mundo no segmento. No início deste ano, os novos empresários fecharam a participação de dois grupos internacionais para o setor hospitalar, liberados pela Lei 13.097, que permite a venda de ações a estrangeiros nas empresas de saúde privada.
Foi preciso ser muito ágil para colocar a Beneficência Portuguesa — e seu terreno de 13 mil m², a cinco minutos do Centro do Rio e do Aeroporto Santos Dumont — entre as jóias do império abastecido com R$ 5 bilhões do fundo soberano do governo de Cingapura (GIC) e do gestor norte-americano de fundos de private equity Carlyle, atraídos pela desenvoltura de um faturamento previsto para este ano em R$ 3,5 bilhões. Em tempo recorde, o leilão foi realizado e a família Moll, por R$ 60 milhões, comprou a peça que faltava, no Rio de Janeiro, para completar o quadro necessário ao desenvolvimento dos projetos negociados com os sócios internacionais. Mas não contava com a determinação da diretoria da Beneficência Portuguesa de rever, em detalhes, cada passo do processo.
A Rede D’Or não respondeu se provém a versão de mercado quanto à venda de participação em ativos do grupo, no exterior, com o imóvel da BP anexado por mais de R$ 1 bilhão, após ser arrematado por R$ 60 milhões. Também não disse de que maneira as ações em juízo poderão impedir o fechamento dos acordos com os sócios internacionais, avaliados em mais de R$ 5 bilhões, e em quanto tempo os novos parceiros pretendem integralizar os recursos acordados. A Rede D’Or também optou pelo silêncio quanto ao que será feito dos mais de 2,5 mil associados da BP, hoje dependentes dos serviços de saúde que tendem a ser interrompidos.
Em nota, a empresa da família Moll respondeu apenas que “reiterando o compromisso de seguir investindo em saúde no Brasil, a Rede D´Or São Luiz, maior operadora de hospitais privados do país, adquiriu em leilão público o imóvel que abrigava o complexo hospitalar da Beneficência Portuguesa do Rio de Janeiro. Com a recente imissão na posse, será feita uma avaliação da situação geral do hospital para estabelecer um plano de investimentos a fim de retomar as atividades no local, resgatando para a Cidade este outrora importante centro de assistência à saúde”.
— Esta é uma ação que está longe de terminar. Não podemos entregar o patrimônio de gerações inteiras sem que todos estejam seguros quanto à transparência do processo, na Justiça. Nossos advogados ingressaram com um questionamento à sentença da 3ª Vara Federal junto ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por impedir que o hospital interne novos pacientes, e vamos apelar às cortes superiores contra o preço apurado em leilão. Parece impensável que o patrimônio de uma instituição como a Beneficência Portuguesa, avaliado em mais de R$ 300 milhões, seja repassado a compradores privados por um quinto desse valor — acrescenta Dias.
Segundo o acordo negociado entre o GIC e o Carlyle por mais de oito meses até o fechamento, em abril deste ano, os valores negociados consideram como líquida e certa a aquisição da Beneficência Portuguesa. Os trâmites legais, como do Agravo de Instrumento interposto pela instituição, porém, apontam em outra direção. Os prazos, em operações com elevados volumes de recursos investidos, tendem a ser decisivos para a transferência dos fundos para a família Moll, como os R$ 1,5 bilhão aportados pelo Carlyle Group, que gere as fortunas das famílias Bush e bin Laden, entre outras, sob a presidência emérita de Frank Carlucci, ex-vice-diretor da Agência Central de Inteligência dos EUA (CIA, na sigla em inglês).
“Citamos a Lei do Inquilinato, que não foi observada na sentença da 3ª Vara Federal, neste Agravo de Instrumento com o qual ingressamos em juízo. Por tratarmos de uma unidade hospitalar, não é plausível que os associados da Beneficência Portuguesa tenham seus direitos suspensos até que o processo seja integralmente concluído. Como se pode observar, há pontos ainda em aberto que precisam ser definidos, sem os quais a posse do hospital e a dos espaços ocupados por todos os demais inquilinos da instituição não poderá ser transferida aos compradores”, afirmaram, em nota, os advogados da BP.
Processo confuso
A BP foi levada à hasta pública pela reunião de três ações de execução, duas delas ajuizados pela Fazenda Municipal e outra pela Caixa Econômica Federal (CEF). A reunião das três ações ocorreu porque o artigo 28 da Lei de Execução Fiscal permite a reunião de duas ou mais ações para a unicidade da garantia da execução. Seria uma “economia processual”, como assegura a juíza, caso não gerasse ainda mais confusão no processo.
Devido à reunião das execuções fiscais, segundo os advogados da BP, a instituição promoveu os Embargos de Arrematação em apenas uma das ações, embora acreditassem ser válida para as demais ações, reunidas em uma só pela juíza. Esta, no entanto, considerou que não houve defesa para as outras duas ações restantes “e simplesmente desconsiderou a defesa da BP, pela qual requereu a nulidade do leilão”, afirmam os advogados, em nota.
Leilão teve a
presença da juíza
acompanhada de
escolta policial
Os embargos interpostos consideraram o preço vil: “O Imóvel foi avaliado pela Justiça do Trabalho em R$ 300 milhões e arrematado por R$ 60 milhões”, reclama a diretoria da Beneficência. Os advogados também apontaram “a Inexistência de depositário fiel do bem – para se efetivar a penhora é necessário que o credor seja intimado e que haja quem dele fique por fiel depositário”. Ainda no embargo à sentença, anexaram “a quitação de parte da dívida que executada pelo Fazenda Nacional, posto, que grande parte da dívida foi paga em acordos e condenações da Justiça Trabalhista”. A defesa da BP também reclamou “da falta de intimação dos entes da administração pública”:
“Como se trata de bem tombado, a municipalidade poderia ter interesse no imóvel, todavia não este não foi intimado do leilão”, acrescenta a nota.
Os advogados exigiram, ainda, a nulidade do leilão “por ato da juíza”:
“Além do Leiloeiro não saber dados importantes sobre o imóvel, a juíza Fernanda Lucas da Silva compareceu ao leilão, com escolta policial, e proibiu que se levantasse qualquer questão sobre sobre o imóvel”, afirmam os advogados.
Ação contra juíza
Em sua sentença, a magistrada entendeu que a BP deveria ter ajuizado os Embargos de Arrematação, “desconsiderando que havia, ela própria reunida as ações, ainda que a BP tenha reunido os processos e requerido a citação de todas as partes”, alegam os advogados da instituição, para os quais “o entendimento da juíza não tem procedência jurisprudencial” e cerceou o direito de defesa da Beneficência ao expedir mandado de imissão de posse à empresa PMJ ligada a Rede D’or.
Em razão destes fatos, com o objetivo de questionar as irregularidades apontadas, a BP recorreu ao próprio TRF, há três meses. O juízo, por sua vez, “retarda o julgamento do recurso de agravo de instrumento”. Tais fatos levaram a BP a abrir uma reclamação contra a juíza na Corregedoria do TRF.
“O cerceamento de defesa perpetrado pela juíza também alcança terceiros, no caso, as empresas que exercem a posse direta do imóvel da PB. A magistrada não decide sobre o direito de terceiros que se encontram em uma situação indefinida, “e sem meios de se defender, porquanto não são partes diretas no processo”, afirma a defesa.
Ainda segundo os advogados, “a Jurisprudência do TRF é clara que havendo terceiros exercendo a posse direita do imóvel a questão deve ser resolvida em sede de ação própria, por meio do qual é dada a chance destes terceiros se defenderem seus direitos em razão dos contratos que mantêm com a PB”. No caso de terceiros, A juíza sequer permite que estes venham a processar suas demandas, posto que as indefere de pronto, como fez com a ação de Embargos de Terceiros ajuizada por uma das empresas em funcionamento na sede da BP.
Na tentativa de encerrar a discussão, a juíza afirma que o recurso dos advogados “não mais possui utilidade, eis que já foi expedida Carta de Arrematação em execução fiscal diversa, a qual também se encontrava levando à leilão o imóvel objeto dos presentes embargos”.