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Celso Lungaretti, memórias de um militante

17 de Agosto de 2024, 18:25 , por Correio do Brasil - | No one following this article yet.
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Ao acordar em maio de 1987 na enfermaria do Hospital das Clínicas (SP) com quatro fraturas na perna direita, sem sequer lembrar-me de como chegara àquela situação (havia sido atropelado por uma moto com passageiro), tive plena consciência de que estar vivo era um acaso e de que se podia morrer de um momento para outro, às vezes sem sequer perceber. Desde então preocupei-me bem mais com o legado que deixaria para os pósteros, pois não tinha certeza de quanto tempo me restava para produzi-lo, nem de se teria condições para registrar uma mensagem derradeira.

Por Celso Lungarretti

Memórias do jovem Lungaretti, que decidiu lutar contra a ditadura militar de 1964-1985.Talvez haja sido mais eficiente em forjar meu legado do que em escrever uma espécie de autobiografia precoce, lembrando o livro de Yevgeny Yevtushenko que tanto me impressionou quando eu ainda era um aprendiz de revolucionário. Pois é disto que se tratava: dar ainda vivo uma interpretação final da minha trajetória no bom combate.

Direto convidadoImagem meramente ilustrativa

O certo é que agora, no finzinho de junho, hospitalizado por causa de uma doença infecciosa muito resistente, tive um piripaque que, durante uma hora, me deixou com a impressão de que chegara ao fim da linha.

O ataque passou e agora, novamente dono do meu ser e do meu destino, resolvi não postergar mais a tarefa de redigir um balanço da minha jornada, na esperança de que sirva da inspiração para os que virão depois, já que é remota a perspectiva de ver ainda em vida germinarem as sementes revolucionárias que plantei. Colegas no primário, depois fomos companheiros de militância

Bem mais provável é a prevalência, em futuro imediato, dos mostrengos engendrados pelos palhaços do apocalipse, semeadores de urtigas.

Ela começa exatamente nas férias escolares entre 1967 e 1968, quando, depois de umas poucas semanas de imersão, junto com outros recrutas, nas obras dos papas do marxismo (bem no estilo da mostrada em A Chinesa, do Godard), decidi dedicar a minha vida à revolução.

Colegas no primário, depois fomos companheiros de militância 

Mal acabara de completar 18 anos, portanto poderia apenas estar lançando palavras ao vento. Mas, no meu íntimo, já encarava-a como uma decisão para toda a vida. E foi: lá se vai mais de meio século e continuo tão fiel quanto possível àquela longínqua opção revolucionária.

Rico em aprendizado, o ano de 1968 daquele grupo de oito secundaristas da zona leste paulistana não diferiu do de tantos outros companheiros que iam às ruas confrontar a ditadura militar. Aceitamos todas as missões e nos desincumbimos delas com o arrojo próprio da idade.

A coisa começou a mudar de figura com o AI-5, que marcou a transição da ditadura militar para o terrorismo de estado pleno, tornando a militância revolucionária quase kamikaze. Não ignorávamos os riscos que correríamos com a radicalização repressiva e, mesmo assim, os oito líderes da Frente Estudantil Secundarista na zona leste paulistana optamos por seguir adiante.

Aí sim se estabeleceu uma diferenciação, pois muito maior foi o número dos passeateiros que se omitiram quando a radicalização ditatorial deu um salto qualitativo com a assinatura do AI-5, preferindo não encarar o combate nas trevas.

Nosso grupo de jovens (o mais novo com 18 anos e o mais velho com 21) preferiu os perigos bem maiores que passaram a existir para quem estava na linha de frente do que a autopreservação pusilânime. As mortes de dois dos nossos, Eremias Delizoicov e Gerson Theodoro de Oliveira, foram um dos preços que pagamos por nosso destemor. A captura e as torturas que quatro de nós sofremos, outro.

Mal acabávamos de ser admitidos na Vanguarda Popular Revolucionária, em abril de 1969, fui surpreendido com a inusitada designação para criar um setor de Inteligência em São Paulo, alçado de imediato ao segundo escalão da VPR. Acima, só estava o Comando Nacional.

O Gerson morreu baleado na rua

Visto por alguns veteranos como um estranho no ninho, pois não possuía os méritos que eles haviam acumulado em duras batalhas nas fases anteriores (muitos deles vinham na luta desde a vitoriosa resistência à tentativa golpista de 1961), era, quanto muito, tratado com uma camaradagem condescendente.

Ninguém esperava grande coisa de mim, mas, como a investidura não me subira à cabeça e eu mostrava muito empenho em acertar, estava sendo razoavelmente bem aceito.

Era, ao que eu saiba, o mais jovem comandante de uma organização revolucionária brasileira nos anos de chumbo, mas isto não me iludia: percebia claramente que a minha participação vistosa no congresso de abril/1969 da VPR não justificava tal condição.

Ademais, tinha sido designado para um trabalho pioneiro (não havia comandante de Inteligência nas demais organizações) e sem peso real na correlação interna de forças da VPR, já que eu não comandava militantes, apenas coordenava simpatizantes e aliados.

Os acasos, no entanto, me projetaram muito acima do que eu pudesse imaginar ou, mesmo, quisesse. Começando por ter alugado um apartamento em parceria com outro comandante estadual, José Raimundo da Costa, pelos prosaicos motivos de que a grana estava curta para ambos e meu nome real poderia ser usado no contrato de locação, pois ainda não caíra.

A convivência com o Moisés, remanescente das mobilizações da marujada contra a direita golpista no pré-1964. me permitiu tomar rapidamente conhecimento da história da VPR e de suas lutas internas.

Ele tinha na ponta da língua cada detalhe e eu sede de conhecer o passado da organização. Também me interessavam muito os acontecimentos do período em que a esquerda deixara a épica vitória de 1961 se transformar na derrota sem luta de 1964.

Graças ao Moisés, fiquei conhecendo a encarniçada disputa de poder interno, ao longo de 1968, entre as chamadas tendências militarista e massista, a primeira priorizando as ações armadas contra a ditadura e a segunda insistindo na manutenção de vínculos orgânicos com os movimentos de massa.

O acerto de contas acabou ocorrendo no início de 1969, paralelamente à pior crise de segurança até então enfrentada pela VPR, com quedas de alguns de seus quadros mais importantes. Houve, em seguida, aquele congresso em Mongaguá para colocar a casa em ordem e foi quando Carlos Lamarca se tornou o líder explícito da organização.

O Moisés seria executado na Casa da Morte de Petrópolis.

Mas os comandantes estaduais de São Paulo passamos a ter vários motivos de insatisfação com o(s) comandante(s) nacional(is) aos quais estávamos submetidos. Até que o Moisés e eu chegamos à conclusão de que eles, na prática, agiam para sabotar a luta principal e inchar a organização nas cidades, ressuscitando a derrotada tendência massista.

O Comando Nacional passou a ter quatro integrantes dedicados à preparação do lançamento da guerrilha rural e um à ligação com os comandos estaduais; a fusão com o Colina manteve o mesmo desenho, com quatro comandantes incumbidos da luta principal e dois de fazerem o meio de campo com as cidades.

Começamos a divagar sobre a possibilidade de, aproveitando a realização do congresso nacional convocado pela VAR-Palmares para legitimar a fusão VPR-Colina, colocarmos em xeque a própria fusão, pregando a retomada da identidade de VPR. Parecia-nos que fora o ingresso dos militantes de origem Colina que impulsionara o novo fortalecimento da ala massista.

Mas, é quase certo que ambos desistiríamos de dar um passo tão maior que nossas pernas se uma munição inesperada não tivesse caído em nossas mãos. Ela já era conhecida na organização, mas não estava sendo levada a sério.
Ao perceber que circulava internamente, mas sem ser levado a sério, um documento que propunha a melhor resposta aos impasses da esquerda armada naquele momento, eu não vacilei, endossando-o de imediato, incondicionalmente.

A coisa então mudou de figura, pois se tratava do endosso estridente de um comandante estadual, mesmo que fosse provavelmente o de menor prestígio dentre todos. As chamadas Teses do Jamil já não podiam ser ignoradas e mantidas desdenhosamente à parte do debate das propostas estratégicas a serem abordadas no Congresso de Teresópolis, tanto que néo-massistas correram a lançar documentos refutando-as.

Eu colocara em movimento a roda do destino de uma forma inimaginável, ainda mais por isto estar partindo de quem tinha tão pouca influência, prestígio e poder dentro da organização. E, claro, atraí para mim desgraças jamais sonhadas.

Celso Lungaretti, jornalista, escritor, militante contra a ditadura militar, criador do blog Náufrago da Utopia.

Direto da Redação é um fórum de debates publicado no jornal Correio do Brasil pelo jornalista Rui Martins.


Fonte: https://www.correiodobrasil.com.br/celso-lungaretti-memorias-de-um-militante/

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