Hoje, a rua que protegeu o vitral durante tantos anos, abriga agora, multidões de meninos sem casa, que dormem no chão, debaixo da chuva sem nenhuma luz cor de rosa.
Por Maria Lúcia Dahl, do Rio de Janeiro:
Durante 24 anos ele permaneceu no chão. Um vitral francês, de transparência impecável.
Achei-o na rua, quando passeava em Botafogo com meu ex-marido.
Pensei em levá-lo pra casa, atraída pela sua cor. Mas não sei por que motivo, tive medo. Foi meu marido quem decidiu carregá-lo, finalmente. Mas colocou-o no jardim.
Deve ter sido uma porta outrora, cujo motivo principal permaneceu intacto em flores e relevos formando guirlandas coloridas.
Mas continuou se quebrando no meu jardim sem que tomássemos providencias.
Muitos anos depois resolvi colocá-lo na medida exata da janela. Mas mesmo depois de cortado ele ainda continuou no chão, e embora tivesse evoluído do jardim pra sala, ficou encostado na parede, o que lhe impedia a possibilidade de transparência, ao contrário dos da minha infância, que ocupavam posições estratégicas na sala de jantar, onde, uma vez, minha irmã viu uma mulher , de chapéu, contando os pratos brasonados.
Mamãe desceu depressa as escadarias, de pegnoir, perguntando, intrigada,onde estava a mulher.
-Ali. Respondeu,inocentemente minha irmã apontando em direção ao nada. Desde então, a sala se manteve fechada na esperança de impedir fantasmas femininos de contar os pratos.
Mas sua luz cor de rosa continuou a se espalhar por entre as frestas da madeira torneada por um misto de medo e fascinação.
Mais tarde aprendi que a luz cor de rosa corresponde ao amor, o que veio a explicar a atração irresistível pelo vitral e uma angustiante associação de amor com medo que me perseguiu ao longo da vida como fantasmas de chapéu. E enquanto não me tornei consciente dela, o vitral continuou esperando, no chão.
Então consegui um marceneiro que lhe colocasse uma moldura. Até que um dia , de repente, acordei disposta a colocá-lo na janela, custasse o que custasse, o tempo de procurar um especialista em vitrais nas antigas páginas amarelas, mais o preço alto da restauração acompanhada de um sotaque calabrês:
-Che pecato, signorina! Como é que se deixa uma peça dessas no chão? É preciso uma sólida moldura de ferro que o proteja, sgnorina.
Dessa vez foi minha empregada quem sugeriu a providência, cansada de me ouvir pedir que tomasse os cuidados que eu mesma não tinha. Que chamasse seu irmão ferreiro, e num segundo, o problema estaria resolvido.
O ferreiro assustou-se com a fragilidade do vitral. Mas eu já não tinha mais medo e pude lhe passar confiança.
Depois fez restrições a bandeira da janela.
-É muito exposta. E se alguém lhe jogar uma pedra?
-Não há mais perigo, moço. As pedras já se foram todas atiradas antes.
Agora suas rosas em relevo na janela atraem um beija-flor que bate as asas, confuso entre a sensação de susto e encantamento que lhe causa a própria imagem refletida no vidro, enquanto , hoje em dia, a rua que protegeu o vitral, durante tantos anos, abriga agora, multidões de meninos sem casa, que dormem no chão, debaixo da chuva sem nenhuma luz cor de rosa.
Direto da Redação, editado pelo jornalista Rui Martins.
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