Um olhar mais distante, apurado e despido de paixões, no entanto, revela que havia, desde 2014, o pulsar de uma aversão extremada à corrupção e às bandeiras progressistas.
Por Gilberto de Souza – do Rio de Janeiro
O volume de mensagens com notícias falsas nas redes sociais, durante a campanha eleitoral encerrada há uma semana na vitória do candidato neofascista, Jair Bolsonaro (PSL), chegou a ser apontado por analistas políticos ouvidos pela reportagem do Correio do Brasil, ao longo dos últimos meses, um dos principais motivos para o sucesso do discurso radical de direita. O ódio disseminado contra a esquerda e os partidos que a integram teria sido decisivo para criar o ambiente propício ao crescimento da doutrina pela barbárie, ora em curso.
L Tribunal Superior Eleitoral (TSE) informou em seu portal ter aberto procedimento para investigar a disseminação de notícias falsas na Internet. Não funcionouUm olhar mais distante, apurado e despido de paixões, no entanto, revela que havia, desde 2014, o pulsar de uma aversão extremada à corrupção e às bandeiras progressistas. Principalmente, junto às camadas da sociedade com rendimentos acima dos 10 salários mínimos, segundo constatam pesquisas de opinião. Em especial, nos dois maiores centros urbanos do país. Rio de Janeiro e São Paulo, motores da opinião pública turbinados com a concentração da mídia, funcionaram feito ‘caixas de ressonância’ para o que fora apenas um sussurro em 2010, na primeira eleição da presidenta Dilma Rousseff (PT).
Bolinha de papel
Encerrada a Era Lula, em pleno emprego e posição inédita de liderança do país no cenário internacional, ainda assim o ‘poste’ número um precisou de dois turnos para superar o tucano José Serra. Por pouco não pereceu sob a pecha de ‘matadora de criancinhas’, em uma campanha sórdida detectada e denunciada, em primeira mão, aqui no CdB.
Embora o prestígio do ex-presidente não encontrasse parâmetros, o fato é que Dilma era o tal Plano B, na época, após anos de implacável perseguição midiática e jurídica aos quadros do partido. Ainda que jamais colocada à prova do escrutínio popular, a ministra mais proeminente do Planalto tinha o apoio do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Era o que bastava, imaginaram os dirigentes do PT de então. O critério se manteve inalterado, até hoje.
No fundo, ainda feito um zumbido que aumentava na surdina e começava a ser notado, a experiência da dissipação do ódio religioso e das notícias falsas se mostrava eficaz. O episódio da bolinha de papel transformada em pedra assassina no noticiário da mídia conservadora pode ser considerado um marco histórico da prática capaz de mudar os destinos de uma nação, na década seguinte.
Novo vírus
A farsa, orquestrada pela máquina de propaganda tucana de então, apenas engatinhava. Duas eleições depois, ganhou o brilhantismo de um atentado a faca que ainda deixa embasbacados os mais astutos observadores da cena política nacional. Desta feita, apesar da camisa limpa, o agressor é preso e confessa o crime. Ocorre uma cirurgia real, em um hospital de verdade, e a narrativa ganha forma e conteúdo.
Em 2010, o publicitário Rui Rodrigues, sócio na agência transnacional de publicidade e propaganda MPM e Ben Self, o estrategista que esteve à frente da campanha digital de Barack Obama, dominavam — de lado a lado — a planície do deserto fértil de maldades para a guerra híbrida que se desenvolveria, oito anos depois. O estrategista de ultradireita Steve Bannon, assessor informal do presidente eleito, Jair Bolsonaro, para questões digitais, ainda trabalhava nas sombras. Assumiria, contudo, papel decisivo no pleito deste ano.
Mas, desde o primeiro governo da presidenta deposta, estava lançada a plataforma para o vírus carregado com os valores fascistas. O ódio aos pobres, aos movimentos e programas sociais; a subserviência ao capitalismo norte-americano e às suas diretrizes; o pacote completo, eleito sete dias atrás, estava carregado no vetor que se dissipou, ao longo dos últimos oito anos, por toda a sociedade brasileira.
Fenômeno
Feito ataque ao formigueiro, o que se percebe após a primeira semana dos próximos anos, sabe-se lá quantos mais, é a polvorosa nas trincheiras da resistência. A natureza odeia o vácuo, já constatava Aristóteles. E, na ânsia de preencher o imenso espaço vazio deixado pela derrota de Fernando Haddad, ‘poste’ número dois na escala do lulismo, atropelam-se os fatos que causaram a hecatombe eleitoral recém-efetivada nas urnas.
No lugar de perceber que o Brasil foi apenas mais um dos países a perecer na pandemia causada pela infecção neofascista, encapsulada e distribuída de forma eficiente pelas redes sociais norte-americanas, imensos setores da esquerda preferem buscar uma explicação mais simples. Fazem contas esquisitas sobre o colégio eleitoral. Escolhem um possível aliado para bode expiatório; acreditam em teorias conspiratórias ou, simplesmente, desiludem-se, prostrados diante dos novos tempos.
O fenômeno que gerou ‘o mito’, no entanto, parece o mesmo que colocou os neofascistas de volta ao governo da Itália; na Áustria, no Chile; na Argentina e em países periféricos, a exemplo da Indonésia; Bolívia e Honduras. Por pouco não leva na França, apesar da guinada à direita com Emmanuel Macron.
Novas moscas
O roer das unhas e ranger dos dentes após a decepção são próprios do ser humano, portanto, compreensíveis. Mas, há um método no avanço da maldade e, se não for rapidamente neutralizado, representa um risco sem fronteiras para o sonho de um mundo mais justo e igualitário, para todos os seres humanos. A tarefa parece medonha, embora mais simples do que aparenta ser.
Antes de falar em uma ‘frente ampla pela democracia’, como teria sido uma ação inteligente antes das eleições, no entanto, seria recomendável que os mais diferentes matizes do pensamento humanista nacional refletissem sobre a necessidade de integrar um centro de discussão mais amplo, capaz de abranger a nova realidade da Comunicação Social, no país.
Sem um debate franco sobre a resistência dos meios de comunicação independentes, progressistas e libertários torna-se ainda mais alto o risco de acreditar que a Globo era ‘nossa’, como se chegou a ventilar por todos os governos petistas. Isso justificou a sangria dos cofres públicos para o conglomerado central no cartel da mídia conservadora e a perseguição burra à mídia alternativa. Ou mesmo, agora, ficar com pena da Folha de S. Paulo, de um golpismo atávico, por estar afastada do butim publicitário a ser repartido, no ano que vem, para as novas moscas.
Gilberto de Souza é jornalista, editor-chefe do Correio do Brasil.