
Na sexta-feira 13 de novembro, sete locais sofreram ataques terroristas de maneira quase simultânea, com modos de ação distinto. A selvageria dos atentados praticados em Paris e Saint-Denis resultou na morte de 129 pessoas e 352 feridos.
Tudo iniciou no Estádio de France, durante um jogo de futebol entre a França e a Alemanha, que contava com a presença do presidente François Hollande.
O estádio se situa na cidade de Saint-Denis, cidade popular e cosmopolita, onde 130 nacionalidades diferentes cohabitam, governada por comunistas desde 1930 (exceto durante a ocupação). Se trata de uma das únicas cidades de mais de 100 mil habitantes, junto com a de Montreuil -também situada na periferia de Paris- governada pelo PCF.
Três kamikazes explodiram fora do estádio, matando ademais uma pessoa que não tinha implicação com a ação criminosa, provocando pânico mas sem que interrompessem o jogo ou mesmo a transmissão televisiva. O primeiro terrorista explodiu 15 minutos depois do início do jogo : a explosão foi audível, inclusive para os que assistiam o jogo através da TV. A primeira explosão foi sucedida de uma segunda e finalizada por uma terceira na pausa entre o 1° e 2° tempo.
O canal que tinha a exclusividade da retransmissão nem noticiou que ocorria algo nas proximidades do estádio . Os telespectadores que olhavam a partida de futebol não foram informados nem através de um flash de informação, nem mesmo com uma banda de notícias no rodapé da tela.
O presidente foi evacuado desde a primeira explosão. Esperou-se que a partida terminasse para comunicar aos presentes no estádio o que estava acontecendo.
Já ao norte de Paris, região cosmopolita e boêmia, os terroristas atacaram bares e restaurantes a tiros de Kalachnikov; entre as vítimas não fatais, um brasileiro e uma brasileira.
O ataque mais violento aconteceu no teatro Bataclan durante um show de heavy-metal. Os terrorristas atiraram de maneira indiscriminada sobre os presentes e, diante da invasão do local pela polícia, acionaram as cargas explosivas que levavam na cintura.
O presidente francês declarou Estado de Urgência. Todos os lugares públicos (bibliotecas, piscinas, teatros) foram fechados e foi declarada a proibição de qualquer reunião pública. As fronteiras foram fechadas e estabelecidos contrôles sistemáticos de aduana, tornando obsoletos os acordos de livre circulação dentro do espaço europeu (Schengen).
O exército foi chamado de maneira massiva à capital. Aliás, desde janeiro, após os ataques terroristas cometidos ao jornal satírico Charlie Hebdo e ao supermercado Casher, o país está sob controle reforçado, contando inclusive, em alguns locais -como grandes estações de trem e metrô- da presença de patrulhas militares.
No dia 18 de novembro, em Saint-Denis, durante uma operação policial que tinha como objetivo capturar envolvidos nos atentados, uma mulher kamikaze acionou seus explosivos. Este fato foi amplamente divulgado, colaborando com o aumento do sentimento de medo. Aliás, são as palavras que mais tem aparecido na imprensa e na boca dos políticos: medo e segurança.
As medidas que o Governo anunciou após os atentados devem ser vistas no contexto. Setores da população tem afirmado se sentir invadidos pela entrada de refugiados vindos sobretudo da Siria. Além disso, apareceram manifestações marginais ou marcantes de cunho xenófobo e racista.
Importante frisar o termo sentir : em termos numéricos, proporcionais, para uma população europeia que sofre com baixas taxas de natalidade, a entrada de refugiados não pode ser considerado assustadora, mesmo que seja intensa e em curto espaço de tempo.
Em resposta ao fluxo migratório, desde a segunda quinzena de setembro deste ano fronteiras foram fechadas, como na Hungria, na Polônia, na Croacia e na Sérvia ; e foram revistas as modalidades de acolhimento em paises como a Alemanha e a França. Um encontro da cúpula europeia foi organizado para organizar as modalidades de controle das fronteiras e mesmo a distribuição do número de refugiados entre Estados membros da Comunidade européia.
O fluxo migratório está diretamente ligado ao que está ocorrendo na Síria, visto que a população civil tem fugido da guerra que se iniciou em 2011 e até hoje já causou 250 mil mortos e 2 milhões de refugiados. Uma guerra civil, uma guerra religiosa e uma nova versão de guerra fria, com várias etapas, que incluem as manifestações contra o governo sírio, a eclosão de uma guerra civil, a ingerência estrangeira na guerra civil, o estímulo que algumas potências deram ao fundamentalismo, o fortalecimento do Estado Islâmico, a intervenção russa e chinesa etc.
A França faz parte da coalizão (que une os EUA, os principais países europeus, a Austrália, o Canadá, a Arábia Saudita, a Jordânia, o Quatar, o Bahrein e os Emirados Arábes Unidos) que luta contra o Estado Islâmico implantado em território sírio e iraquiano. Os ataques franceses na Síria se tornaram mais regulares desde setembro, evidenciando uma contradição : se antes o inimigo era o ditador Bachar Al-Assad, agora o inimigo é um dos inimigos do ditador .
Não se pode ignorar, ademais, que quem alimentou o monstro Daesh foram os EUA, que países europeus lucraram vendendo armas, sem falar no tráfico de petróleo que financia o terrorismo; vários poços seguem sendo explorados e o ouro negro sai clandestinamente da Síria/Iraque e acaba abastecendo o mercado mundial.
À complexidade deste conflito, soma-se a realidade interna francesa, onde cresce a extrema direita, que representa em torno de 30% dos eleitores franceses. Esta ideologia extremista entrou na arena política, tem espaço na mídia e passou a ser visto como fazendo parte integrante dos partidos ditos republicanos.
As explicações à adesão da população francesa a esta ideologia são múltiplas, mas destaca-se a incapacidade do Partido Socialista (hoje governando o país) de fazer uma política de esquerda.
Os socialistas no comando, após terem estabelecido uma série de benesses ao empresariado, benefícios fiscais sem real contrapartida, atualmente, tem empreendido um projeto de desmantelamento da legislação trabalhista.
O ministro da economia, Emmanuel Macron, antigo funcionário do banco Rotschild, tem feito o que tanto ansiava a direita enquanto estava no poder, mas que foi barrada na época pela oposição — que naquele momento era constituída sobretudo de socialistas: flexibilizar o mercado de trabalho, diminuir as garantias do trabalhador e sobretudo minar as organizações sindicais.
Os efeitos da crise europeia, os altos índices de desemprego e a adoção de uma política de direita por um governo que se diz de esquerda, além de ter desmobilizado os setores progressistas da sociedade, fez com que estes se sentissem abandonados, passando a rejeitar todos partidos que se dizem de esquerda, como também se deixassem seduzir pela extrema direita.
E a Frente Nacional, seguindo esta onda, passou a proferir um discurso de cunho social, insistindo na questão da soberania nacional. E falar da soberania nacional em um contexto que a Comunidade Europeia nada fez para salvar um pequeno Estado como o grego, encontrou um amplo eco e aceitação.
Por isto, uma possível derrota do Partido Socialista se anuncia nas eleições regionais do próximo dia 6 de dezembro.
Provavelmente a extrema direita conquistará duas regiões francesas: o Norte-Pas-de-Calais/Picardia e a Provence-Alpes-Côte-d’Azur, restando aos socialistas ocupar uma posição secundária, onde deverão escolher entre aliar-se com a direita no segundo turno ou renunciar a presença de um candidato, perdendo inexoravelmente espaço. Além disso, o FN também arrisca conquistar espaço importante nas regiões da Alsace-Champagne-Ardennes-Lorraine e da Bourgogne-Franche Comté.
Retomando: é neste contexto — de crise europeia, de rechaço às políticas do governo socialista que não são mais percebidas como sendo de esquerda, seguida de uma rejeição dos projetos de esquerda, o acirramento da guerra na Siria, o início da intervenção francesa nesta guerra e concomitantemente a chegada importante de refugiados sírios na Europa—que ocorreram os atentados na França. E tudo isto num clima de campanha de eleições regionais previstas para o mês de dezembro, e que apontam como sendo o grande vitorioso o partido de extrema- direita, o FN.
Neste contexto, o governo anunciou o Estado de Urgência, argumentando que a França está em guerra.
O Estado de Urgência foi criado em 1955, no governo do general De Gaulle para fazer face a guerra da Argélia. Este dispositivo prevê a restrição das liberdades individuais, o fechamento das fronteiras e –no caso atual– tem sido utilizado para efetuar perquisições sem recorrer ao aparelho jurídico. Em 1968, o General De Gaulle não reutilizou este dispositivo e tampouco demonstrou a intenção de modificar a Constitução para inscrever nela um espírito permanente de guerra.
Com as medidas de exceção estabelecidas, desde a aplicação no dia 14 de novembro até o dia 18, foram efetuadas 300 perquisições, sendo que muitas não estão ligadas aos crimes terroristas.
Alguns juizes anti-terrorristas tem se manifestado contra tais manobras, que qualificam de inaceitável, pois a legislação anti-terrorrista prevê uma agilidade jurídico-policial no tratamento de atos deste tipo ; sem contar que as perquisições que tem sido feitas, sobretudo à noite, não estão contando com o controle de um juiz.
Após ter sido declarado o Estado de Urgência, François Hollande convidou os chefes dos diversos partidos franceses a virem se exprimir sobre a situação, tendo recebido cada um individualmente, inclusive a líder da extrema-direita, Marine Le Pen.
Destes encontros destacou-se o pronunciamento do partido dos Republicanos, tendo como chefe maior Sarkozy. Este demonstrou uma virada ainda mais à direita, empregando o termo Guerra Total; termo que na Europa inexoravelmente nos faz lembrar um discurso do chefe da propaganda nazista Goebbels. Mensagem subliminar mas evidente ao eleitorado mais radical da extrema-direita, que por sua vez tem sido cobiçado tanto pela direita como pelos socialistas.
Quanto a extrema direita, ao final deste encontro com François Hollande, se disse satisfeita com as promessas, incluindo somente a necessidade de atacar-se aos fluxos migratórios, sem perder assim a oportunidade de assimiliar os movimentos de migrantes e refugiados ao terrorrismo.
Seguido destes encontros François Hollande reuniu o parlamento e o senado em Versalhes para anunciar que o Estado de Urgência deve durar 3 meses (será votado/submetido às duas instâncias, mas visto o rolo compressor do Governo e da mídia, dificilmente vozes discordantes serão ouvidas). E surpreendeu ao referir-se ao Estado Islâmico como uma ideologia com a qual a França está em guerra.
Propõe que sem consulta pública a Constituição seja modificada, com o argumento que assim não será necessário recorrer sistematicamente a este dispositivo em caso de ataques terroristas, possibilitando responder de maneira mais eficaz ao que ele qualifica de Guerra.
Ao acenar com esta possibilidade aos deputados e senadores, referiu-se ao projeto de reforma da Constituição que havia sido apresentado em 2007 por Balladur, da direita.
Propõe também o aumento do efetivo policial e a possibilidade da mudança das modalidades da utilização de legítima defesa por parte da policia, além de mudanças nos critérios do controle de identidade.
O mais surpreendente é ter acenado com a possibilidade da destituição da nacionalidade no caso de binacionais envolvidos em ações terrorristas, proposta que é uma das bandeiras defendidas pela extrema-direita, não tendo eficácia comprovada, mas um caráter puramente simbólico.
O presidente qualificou como fundamental a possibilidade de poder destituir a nacionalidade de binacionais- mesmo os nascidos em solo francês- em « casos que estejam envolvidos em casos de prática terrorista ou que representem uma ameaça aos interesses fundamentais da Nação ». A isto completou sugerindo a expulsão de maneira acelerada, com procedimentos simplificados, de todos estrangeiros implicados em ações terroristas, além do chamado visto de regresso. Este, o « visto de regresso », de acordo com o presidente impediria o retorno de franceses envolvidos neste tipo de crime ao solo francês.
Em relação ao « visto de regresso », é necessário explicar que se tal medida for adotada fere a Convenção européia dos direitos humanos, pois desrespeita o direito de um nacional de retornar ao seu solo de origem.
Se aprovada a reforma na constituição, significará a cristalização de um estado de exceção nas leis da França. E tudo isto para responder a um sentimento de insegurança e medo, que os atentados suscitaram na população. O recurso a estas medidas nos faz pensar por quais motivos os serviços secretos franceses foram incapazes de seguir de perto sujeitos que estavam devidamente fichados, reconhecidos pelo sistema e sendo alguns dêles de nacionalidade francesa.
Acompanhando as investigações, a descoberta da identidade dos terroristas e as falhas substanciais do sistema de segurança, tudo nos leva a pensar num cenario de filme tipo B. O exemplo mais gritante é dos terrorristas que deixaram a França de carro logo após os atentados, foram controlados na fronteira com a Bélgica sem serem retidos e depois regressaram à França.
Desconfia-se que os mesmos que deixaram o território francês dia 13, regressaram com o intuito de fazer novos atentados e vieram em companhia do cerebro da ações, Abdelhamid Abaaoud.
O pior é que o dito Abaaoud se encontrava na Síria e apesar de ser extremamente conhecido, inclusive através das redes sociais e vídeos, burlou todos os controles das fronteiras da Comunidade europeia.
Se o Estado de Urgência não evitou a entrada e saída do território francês dos terroristas, este dispositivo tem logrado evitar questões desconcertantes feitas por jornalistas impertinentes, com o argumento de « sigilo das operações ».
Segundo especialistas em Direito Constitucional, o fato do presidente declarar guerra sem ter recorrido ao parlamento fere a Constituição, especificamente o artigo 35, que define que somente os deputados tem a autorização de declarar guerra. Afora que seria necessário definir a quem se está declarando a guerra…
A mudança da Constituição é ainda mais perigosa, no caso da extrema direita assumir o governo.
A todas estas medidas o presidente anunciou uma reunião com os presidentes Putin e Obama, com o objetivo de unir forças contra o inimigo, pois segundo ele « o inimigo não é um inimigo da França, mas inimigo da Europa », apelando ao artigo 42-7 do Acordo da União Européia, que determina que « todos os membros devem ser solidários a um Estado agredido ».
Hollande declarou que novos ataques militares de maior intensidade serão feitos na Síria. E que o « pacto de estabilidade econômica » que previa retenção de gastos para responder a exigências da Comunidade Européia passa a ser secundário, para responder ao que ele qualifica de « pacto de segurança» que implicará gastos suplementares para proteger a França.
No caso em que as liberdades individuais sejam tocadas, inevitavelmente se entrará no jogo do Estado Islâmico, aumentando a divisão/tensão entre mulçumanos e não mulçumanos, atacando o cosmopolititsmo e a liberdade.
A experiência tem demonstrado que a intervenção militar, mesmo quando feita com argumentos de cunho humanitário, não funciona ; e que os assassinatos premeditados ou os drones tampouco funcionam. O resultado de tudo isto implica em mais mortes de civis e isto é percebido pela população local da mesma maneira que os franceses perceberam quando dos atentados de Saint-Denis e Paris : como um ato de barbárie.
Esta regressão do Estado de direito, a constitucionalização de uma espécie de Patriot Act à la francesa (legislação que os EUA adotaram após os atentados do 11 de setembro de 2001, que teve repercussões na limitação das liberdades individuais), seguindo uma lógica de guerra interior, é de eficácia limitada e custos elevados em termos democráticos.
Além disso, a visão euro-francesa sobre a questão terrorista ignora acintosamente a África, que faz muito tempo tem sofrido ataques de intensa violência sem ter obtido destaque na imprensa. Num quase total descaso se tem deixado que regimes salafistas sigam financiando escolas e instituições neste continente e sem nenhum controle. E isto quem o afirma é o coordenador do grupo de especialistas sobre o terrorismo na África. A isto agrega-se a análise do representante da ONU na região, de que as atividades terroristas no continente africano são também vistos como uma escapatória financeira, funcionando nos mesmos moldes da mafia italiana.
As repercussões dos atentados na França apenas começam a aparecer. Passaram a existir ataques contra mesquitas e espaços culturais mulçumanos. Candidatos republicanos lançam aos seus eleitores a possibilidade de fechar as portas a refugiados sirios.
A instrumentalização do medo está seguindo o mesmo modo operatório da extrema direita, que logrou transformar o medo social em medo identitário. Mais do que nunca é fundamental estar vigilante e resistir. O ato de resistir deve ser calcado no arcabouço democrático existente, que não deve regredir sob nenhuma desculpa.
Por exemplo : o desenrolar da reunião do Clima em Paris, previsto para o dia 30 de novembro (COP21), está comprometido, pois foi decidido que tudo vai concentrar-se nas negociações e nos participantes oficiais.
Se antes mesmo dos atentados, ativistas e membos reconhecidos de ONGs estavam tendo dificuldades para obter vistos de viagem para virem à França, agora a questão está resolvida ! As decisões serão tomadas sem quase nenhuma pressão da sociedade civil organizada ; se esta tentar manifestar-se, será enquadrada no Estado de Urgência que está em vigor no território francês.
Para completar, o candidato do FN para a região Ile de France, do qual Saint-Denis faz parte, lançou um comunicado pedindo que a cidade seja posta sob tutela do Estado. Isto porque considera que Saint-Denis representa um perigo para a sociedade, com suas mesquitas e centros culturais mulçumanos extremistas, resumindo assim a realidade da cidade a um enorme campo de ação do islamismo do tipo fascista. Já o coletivo anti-FN que existe na cidade não poderá distribuir panfletos ou manifestar-se sobre a situação, visto que serão retidos pelo Estado de Urgência.
Se não fizermos nada, o mundo globalizado em que vivemos se tornará uma aldeia fácil de controlar e punir.
Carla Orlandina Sanfe é professora de Geografia, participa das atividades dos emigrantes brasileiros, mora em Paris.
Direto da Redação é um fórum de debates publicado diariamente e editado pelo jornalista Rui Martins