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Trump: chauvinismo, nacionalismo, racismo …

November 16, 2016 15:00 , by Jornal Correio do Brasil - | No one following this article yet.
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O Direto da Redação reproduz o texto do nosso colaborador, o sociólogo Moysés Pinto Neto, pela atualidade e por ajudar na compreensão dos fenômenos sociais e políticos Trump, Brexit, Marine Le Pen, Bolsonaro, típicos do populismo de extrema-direita, já ocorrido, há cerca de um século, e responsável pelo surgimento do nazismo e fascismo, na Alemanha e Itália da época, com as trágicas consequências conhecidas. (Nota do Editor, Rui Martins)

Por Moysés Pinto Neto, de Porto Alegre:

Há uma concordância geral: Trump, mais que uma incógnita é uma ameaça para o mundo

Há uma concordância geral: Trump, mais que uma incógnita é uma ameaça para o mundo

Trump é uma ameaça inédita para o mundo. O próprio liberalismo está em xeque, pois, conquanto sempre tendo uma aliança formal ou informal com esse segmento, manteve-os sob comando a fim de neutralizar ameaças desintegradoras.

A Era do Chauvinismo

chauvinismo

substantivo masculino

patriotismo fanático, agressivo.

p.ext. entusiasmo excessivo pelo que é nacional, e menosprezo sistemático pelo que é estrangeiro.

p.ext. entusiasmo intransigente por uma causa, atitude ou grupo.

A série Black Mirror tem sido o fenômeno mais elogiado ultimamente na Internet. Ela apresenta um futuro próximo do imediato, mas no qual pequenas transformações tecnológicas em relação a nossa matriz provocam uma intensificação de problemas que já vivenciamos hoje em dia. Um dos segredos parece ser exatamente esse curvar apenas um pouquinho, sem exigir um grande esforço da imaginação, certas tendências tecnopolíticas que já estão postas.

No episódio “The Waldo Moment” [alerta de spoiler], temos um humorista comandando um personagem especialista em escrachos que passa a ridicularizar o candidato político conservador favorito na eleição para a prefeitura da cidade. De tanto sucesso, Waldo passa a figurar como candidatos, ridicularizando os outros “políticos” como aproveitadores, oportunistas e interessados apenas na reprodução da sua própria lógica de poder. Waldo é inclemente e ataca a todos com igualdade, inclusive a candidata oposicionista que tinha baixas possibilidades de fazer um bom papel. Apesar de seu criador desistir de seguir com aquilo, Waldo segue sendo comandado pela emissora até o ponto em que de fato se elege e logo vira sucesso internacional, espalhando-se pelo mundo inteiro a partir das corporações e nos diversos serviços.

Interessante que, quando o episódio termina, não sabemos bem o que pensar. De certa maneira, aquele escracho inicial parecia um tremor no sistema. Mas faltam palavras para dizer exatamente a que se referia o episódio.

Agora parece que a ficha pode ter caído. Waldo consegue captar simultaneamente as duas pontas do problema político que cai sobre o mundo hoje em dia: de um lado, uma população indignada e revoltada com a “casta” e sua impotência para resolver os problemas das pessoas, sua lógica autorreferente e oportunista de governo; de outro, a atitude social que cada vez se aproxima do cinismo e do chauvinismo, sem conseguir traduzir a indignação em atos construtivos e caindo, com isso, numa espécie de humor suicida. Esse afeto precisa ser olhado pela psicanálise com urgência, pois parece que é o que está tomando conta do mundo ocidental. A sensação de impotência e insatisfação dá origem a um “basta!” que rapidamente se torna “foda-se!”, como se a perda de contato com a produção social fosse compensada por meio de uma escolha contraintuitiva, geralmente depositada em um outsider. O indivíduo, soterrado por um sistema pesado demais para dar conta, excessivamente positivo (o que Guy Debord chamava precisamente de “espetáculo”), compensa sua separação com um ato louco: elegemos um personagem de comédia de mau gosto para nos governar melhor, ainda que saibamos que isso é um ato sem sentido lógico.

 

Um dos elementos em comum entre a eleição de Trump, a saída do Reino Unido da União Europeia e, por exemplo, o prestígio (pequeno, mas perigoso) de Bolsonaro no Brasil parece ser a utilização, sobre via redes sociais, de um discurso que se situa nesse ponto cínico e chauvinista. O cínico, nesse sentido e como destacou Vladimir Safatle no seu trabalho sobre o tema, é diferente do hipócrita: este age de uma forma e prega de outra. Sua contradição é entre teoria e prática, ideia e ação. O cínico, ao contrário, vive a contradição performativa, isto é, assume que, embora reconheça o sinal invertido na sua ação (“agir assim é errado, eu sei”), confirma-a como a única possível (“no entanto, é o único jeito”). Assim, o problema da dissociação não existe mais: o cínico reconhece a impostura normativa da sua ação, mas a crítica não é mais capaz de o vincular. O cínico não é desmascarado, como o hipócrita: ele é que supostamente “desmascara”, sempre mostrando que o outro pode ser tão canalha quanto ele próprio. Mas enquanto o cínico que Safatle descreve é predominantemente o yuppie do “novo espírito do capitalismo” pós-68, o “lobo de Wall Street” — rico, libertino e hedonista —, o momento atual parece estar gestando o cínico chauvinista, espécie de reacionário obtuso, ignorante, brutal, ressentido e obsceno.

O encurtamento da esfera das formas de vida (política), reduzida cada vez mais a uma tecnocracia gerida para escalas cada vez maiores e em permanente crise, diminuindo a qualidade do existir, provoca a erosão da visão de futuro. Com isso, a projeção volta-se para o “passado dourado”. A nostalgia reacionária é o futuro projetado a partir do passado glorioso, na falta de perspectiva de horizonte que possa o superar. Habitando o âmbito espectral das ilusões, utopias e sonhos, essa busca do passado glorioso projeta-se também em relação a fantasmas do presente, como os imigrantes e as variadas minorias políticas. Mesmo que já tenhamos conquistado suficiente consciência de que o racismo é um fenômeno daninho, especialmente a partir da experiência nazista, esses discursos conseguem capilaridade na medida em que se colocam como um humor brutal, jogando na zona de indecidibilidade entre o sério e o jocoso. Todas as figuras emblemáticas que se abastecem da economia das redes sociais e dos trolls já entenderam e jogam com essa zona gris. Eles conseguem canalizar a insatisfação popular pelo magnetismo da piada que, torcendo a ordem séria do discurso, diz o obsceno.

A resposta a isso, em compensação, fica extremamente difícil. Não porque seja difícil realmente responder a afirmações absurdas ou justificar seus erros, mas exatamente porque sobre ela cai o papel moral do superego numa era em que a perversão corre solta. Cai-se, assim, em um duplo jogo que é uma armadilha: de um lado, a parte sacerdotal, a “lição de moral” triste fica na conta daqueles que querem contraditar o discurso do humor brutalizado (chamado então de “politicamente correto”); de outro, os próprios cínicos, na medida em que falam sem precisar de um chão de coerência (a validade normativa é menos importante que a performance na superfície), tomam para si a condição de vítima, de censurados e de patrulhados, aproveitando muitas vezes a atitude de superioridade moral que o outro polo coloca sobre si. Tem-se, assim, um não-diálogo que vai contaminando a esfera pública e tornando os polos cada vez menos comunicantes, aumentando o fosso na medida em que a estratégia chauvinista vai funcionando. Não compartilho quase nenhuma das ideias de Slavoj Zizek, mas parece que hoje é um dos poucos intelectuais que se propõe, à esquerda, jogar o jogo nesse nó discursivo quase indecidível entre humor e sério, desrespeitando as convenções implícitas e pronunciando o obsceno. Ele é o verso simétrico de Trump. Não necessariamente do ponto de vista do conteúdo, mas no tom, na forma, pode ser que o tipo de discurso de Zizek seja útil para recuperar o humor a nosso favor.

O alargamento dos problemas e das conexões, reforçado pela dissolução de fronteiras geográficas, contrasta com a impotência progressiva que as pessoas sentem em si próprias e no sistema político para dar conta. O retorno ao local não é apenas um nacionalismo, mas também uma demanda por encurtar o espaço problemático e a imensidão das questões, mesmo que isso seja racionalmente impossível (por exemplo, na questão ecológica ou na crise dos refugiados). Na medida em que não se consegue transformar as redes digitais em mecanismos de proliferação da boa informação, mas apenas um reforço dos estereótipos do dia-a-dia operando dentro das bolhas cognitivas, o desespero inconsciente transforma-se em brutalidade revoltada, alinhando-se com forças que querem confrontar o sistema por meio da violência. O alinhamento das forças de esquerda com o feminismo, nesse caso, gera uma resposta reativa contra essa “suavização” — do ponto de vista do ressentido, claro — e provoca uma resposta hipermasculina, viril, guerreira. As linhas fundamentais do fascismo estão presentes. É a generalização na horda daquilo que Adorno e Horkheimer chamavam da “igualdade no direito à injustiça“, reforçada pelo contraste com a política de diferenças contemporânea. Essa regressão gutural é, ao mesmo tempo, hipermidiatizada pelas redes e uma vez mais captura a velha crítica (de estrutura paranoica) contra “os grandes conspiradores”, no caso a mídia tradicional, o sistema e as minorias políticas. É a massa, simplesmente.

 
“Queime depois de ler”, dos Cohen.

O outsider chauvinista vai, dessa maneira, tornando-se uma figura “contra o sistema”, na medida em que a oposição contra ele reforça o mesmo bloco de críticas a partir do qual ele se levantou. O voto em Trump é composto por setores integralistas que possuem um bloco de convicções fanáticas que subscrevem misoginia, homofobia, racismo e xenofobia. Mas também pro segmentos que, no desespero suicida, apostaram na carta fora do baralho, rejeitando a candidatura que representava — lembrando outra série de forte influência sobre o imaginário — House of Cards. Pode ser que exista um limite ético do qual a transgressão signifique simplesmente ruptura política. Os votos significam responsabilidade e quem fez a aposta em Trump vai pagar um preço alto pela irracionalidade. Mas a irracionalidade terá que ser revertida em alguma escala — precisamos lutar contra o pior de todas as formas possíveis.

Outra referência inescapável para pensar em Trump são os irmãos Cohen, profundos artistas do encontro entre o acaso e a burrice, do perigo que cerca a cadeia de estúpidos, de como situações fortuitas podem ocasionar um mal imprevisível e quase imbatível. Trump remete a essa burrice constitutiva e em rede, alimentada pela desinformação e pela ausência de diálogo possível. Fascismo molecular, a desterritorialização que conduz a um desejo em grau zero, destruição pura que Deleuze e Guattari colocavam como o maior de todos os riscos — chega àquilo que as plataformas dos movimentos sociais horizontalistas em alguns casos buscavam: eleger, de baixo para cima, um governante numa regressão antipolítica.

 

O corte para o local, como venho defendendo no blog, não é necessariamente conservador. Ele pode significar a vontade de retomar o sentido comunitário, que Guy Debord opunha à experiência separada do espetáculo, desde que não venha acompanhado do obscurantismo vil dos neoconservadores. Trump é uma ameaça inédita para o mundo. O próprio liberalismo está em xeque, pois, conquanto sempre tendo uma aliança formal ou informal com esse segmento, manteve-os sob comando a fim de neutralizar ameaças desintegradoras. Será necessário repensar a estratégia que nos conduziu até o momento atual, visualizando quais são as alternativas para possibilitar não apenas a resistência, mas o engajamento — contraponto possível e necessário contra o crescente chauvinismo.

Sem dúvida, o principal ponto para que isso comece a ser revertido é construir imagens de futuro dissociadas do nosso espelho obscuro (black mirror). Não apenas pela esperança — que não é para nós mesmo — mas por meio do diálogo, do aproveitamento das frestas e da ousadia de imaginar. Contra o ressentimento, a única saída possível a afirmação da potência. A culpa só o reforça. É preciso voltar a acreditar que nós somos os autores do que está sendo produzido, em todos os sentidos, e que depende de nós transformá-lo. E que isso é possível, viável e necessário. Comecemos a construir um rizoma de discursos que possam se situar para além do posto, para além da positividade implacável do espetáculo, antagonizando realisticamente com o sistema. Só isso nos permitirá superar esse pessimismo desorganizado, niilismo incontrolável que não para de acelerar as catástrofes e aumentar o ódio e o desespero.

Moysés Pinto Neto, doutor em Filosofia pela Universidade Católica do Rio Grande do Sul, professor na Faculdade de Direito da Universidade Luterana do Brasil, Porto Alegre.

Direto da Redação é um fórum de debates, editado pelo jornalista Rui Martins.

 

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