Por José Luís Fiori – do Rio de Janeiro:
“Se se tiver em conta as civilizações, como principais personagens da história, será preciso forçosamente distinguir as guerras “internas” desta ou daquela civilização, das guerras “exteriores” entre estes universos hostis. De um lado, as Cruzadas e as Jihads, do outro, as guerras internas da Cristandade ou do Islã, porque as civilizações queimam-se a si mesmas em intermináveis guerras civis, fratricidas: o Protestante contra o Romano, o Sunita contra o Xiita…”
F. Braudel, 1995 (1966), “O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrâneo”, Vol II, p: 206 Publicações Dom Quixote, Lisboa.
Escrevo estas linhas num Café de Sarajevo. Seu nome, sua decoração, e sua elegância, lembram Viena, e o período da dominação austro-húngara da Bósnia-Herzegovina, entre 1878 e 1918. O Café está situado a poucos metros da Ponte Latinska, sobre o rio Miljaka, o lugar exato em que o estudante sérvio Gavrilo Princip, de 19 anos, matou o arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do trono austríaco, no dia 28 de julho de 1914, dando início – sem saber, nem pretender – a uma guerra devastadora que destruiu quatro impérios, mudou a geografia da Europa e redesenhou a história e geopolítica mundiais. Ao mesmo tempo, na frente do Café Vienense, uma placa convida para visitar um museu com filmes e fotografias sobre a última grande guerra europeia do século XX, que também passou pela Bósnia e Sarajevo, entre 1992 e 1995, e pelo Kosovo, em 1998/9, incluindo o massacre de Srebrenica, em julho de 1995. Durante esta última guerra, a cidade Sarajevo sofreu o mais longo cerco da história militar moderna. Durante três anos, Sarajevo sofreu um bombardeio sistemático que deixou um “passivo” de 12 mil mortos e 50 mil feridos, sendo 85% civis. Uma história terrível, que transformou o nome desta cidade, Sarajevo, em sinônimo de guerra e destruição, através de todo o Século XX, e para todas as gerações futuras.
No entanto, Sarajevo poderia ter sido apenas uma cidade de montanha alegre e acolhedora, se a história não a tivesse colocado numa encruzilhada por onde circularam e onde se instalaram vários povos e etnias. Mais do que isto, onde se criou um espaço de convivência e confronto quase permanente entre as duas principais civilizações/religiões que contribuíram decisivamente para a transformação do Mediterrâneo no berço do mundo moderno: o islamismo e o cristianismo, com seus vários povos e divisões internas. Tudo começou, de alguma forma, com a Batalha de Poitiers, no ano de 732 D.C., quando o exército de Charles Martel derrotou e deteve a expansão muçulmana, perto dos Pirineus, estabelecendo uma espécie de primeira e definitiva fronteira entre o mundo cristão europeu e o mundo islâmico arábico.
A partir dali, e durante os últimos 1,3 mil anos, estes povos e estas duas civilizações-religiões estabeleceram entre si uma relação indissolúvel, de guerra e complementariedade, de admiração e ódio. Foi esta relação que funcionou como a grande fonte energética que moveu o poder dos homens e de sua capacidade produtiva na direção do mundo moderno, do sistema interestatal e do capitalismo que começou pelo Mediterrâneo e acabou sendo liderado pelos europeus. Nesta longa trajetória, os europeus foram periferia econômica e politica dos impérios muçulmanos, até o século XVI, mas o mundo islâmico acabou se transformando numa periferia da Europa, nos últimos 300 anos. Sarajevo foi criada pelos islâmicos, em 1461, no auge do Império Turco-Otomano e foi a cidade mais importante do Império, na região dos Balcãs. Só no fim do século XIX, a Bósnia e Sarajevo passaram para o domínio austro-húngaro, já em pleno declínio do império otomano.
Com o fim da I GGM e o retalhamento do antigo Império Otomano, os europeus conquistaram uma vitória militar e política estrondosa com relação ao mundo islâmico, mas esta vitória não eliminou a relação essencial entre estes dois pedaços do mesmo universo que mudou uma vez mais sua forma, mas manteve sua relação essencial até o fim da Guerra Fria. Por isto, não é de estranhar que tenha sido nos Balcãs, e na própria Bósnia-Herzegovinia – depois no Kosovo – que tenham sido, de novo, travadas as últimas guerras do século XX, envolvendo cristãos ortodoxos, romanos e islâmicos. E que tenha sido nesta guerra “local” que tenha começado a se desenhar a nova ordem mundial imposta pelos ganhadores da Guerra Fria, no momento em que eles decidiram fazer a primeira intervenção militar direta da OTAN, fora do seu território original, exatamente nos Balcãs.
As “guerras balcânicas”, dos anos 90, provocaram um êxodo populacional de 2,5 milhões de refugiados, muito maior do que o que está ocorrendo, neste momento, com esta nova procissão de refugiados que vem atravessando os Balcãs na busca da proteção dos seus próprios algozes. Só no século XXI, já houve 5 guerras “externas” ou intervenções “ocidentais”, e 9 guerras civis ou religiosas, do lado do mundo islâmico. O problema é que do outro lado deste mesmo universo, a Europa também está se dividindo e desintegrando, social e politicamente, assediada pela estagnação econômica, pelo desemprego, pela crise financeira dos seus estados, pelo fechamento das suas fronteiras internas, pelo aumento da prepotência alemã, e pelas manifestações cotidianas da mais alta desumanidade, com relação a este novo êxodo de povos sobretudo islâmicos.
Foi neste momento que o garçom se aproximou da mesa e me perguntou sobre o que tanto eu escrevia. Expliquei e ele me disse: “pois então anote senhor, que haverá uma nova guerra em breve, muito breve.” Como lhe perguntasse por quê, respondeu: “Porque isto aqui são os Balcãs, isto aqui é uma ponte, senhor.” Depois se afastou, e me deixou meditando sobre suas palavras, e sobre sua certeza de uma guerra próxima. Seja como for, a verdade é que quando se olha hoje, desde aqui, para este “universo Mediterrâneo” que conquistou e moldou o mundo no último milênio, fica-se com a impressão, quase certeza, de que ele já perdeu sua energia criadora e está se apagando como uma “estrela de nêutrons”, consumido por suas guerras civis e religiosas infindáveis, por suas divisões e ódios cada vez mais profundos, e por suas agressões e intervenções “humanitárias” cada vez mais ineficientes, irracionais e catastróficas. O que foi uma relação conflituosa e criativa, através da historia do último milênio, está se transformando num “abraço de morte”. E pensar que tudo isto começou – de alguma forma – nesta ponte, aí na frente deste Café.
José Luís Fiori, é cientista político, é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.