O que é a diversidade hoje?
No melhor dos casos, ser diferente significa ser gay.
Um degrau mais em baixo, o diferente porque incapacidado: o azarado.
Mais em baixo ainda, podemos encontrar o diferente porque imigrante (gente estranha, usos incompreensíveis, que assustam).
No fundo mesmo, sobram os rotulados como anárquicos, associais, rebeldes. Praticamente: os loucos.
O valor supremo da diversidade (que é uma das essências da vida) foi reprimido e substituído com uma operação de achatamento mental, algo que não tem precedentes na história humana. Não perceber esta realidade, evidente como a luz do sol, significa estar já imerso no estado de narcolepsia que paira sobre o mundo, em particular naquela parte mais "desenvolvida".
É uma boa forma de escravidão, aliás, a melhor: porque nesta homologação global, achamos ser livres. A aprovação dos comportamentos e das formas, num pensamento dominante, tende a agrupar todas as identidades numa única, tornando supérfluas e dissonantes todas as outras. É uma aprovação que satisfaz, em particular os indivíduos medianos, que desta forma conseguem sentir-se "protegidos" porque parte duma manada numerosa.
Mas isso tem custos enormes.
A diversidade, que era o motor da criatividade, da cultura, da imaginação e do conhecimento, tecia um imenso quadro, por certos aspectos fascinante e misterioso: era o quadro do ser humano.
O meu avô era sapateiro e costumava personalizar os seus utensílios, tal como tinha feito o pai dele e o pai do pai. No fundo da rua havia outro sapateiro, também ele com os seus instrumentos personalizados.
O mesmo acontecia com os ferreiros, os carpinteiros, com qualquer artesão: existiam ferramentas básicas, iguais para todos, depois havia a personalização, que tornava únicos e irrepetíveis os trabalhos deles. Era o esplendor da diversidade.
O que resta hoje daquele mundo que marcou a evolução da nossa sociedade? Quase nada.
O homem de hoje não é senão a repetição em série, com a mesma estupidez, das cópias que circulam em qualquer continente. Somos anestesiados da mesma forma: os programas demenciais e demenciadores da televisão da América do Sul são os mesmos aos quais podemos assistir na Europa (os terríveis format); e são os mesmos vistos nas outras partes do mundo.
Às vezes muda o título, mas não as consequências: a família (pai e mãe, o filho fica no quarto dele com a consola, o computador ou outra televisão) sentados no sofá no horário preestabelecido. Mas atenção: a televisão não é o único inimigo, é só uma das mais potentes entre as armas de destruição neuronal.
Na verdade, este processo de desumanização e distorção começou há algumas décadas após a revolução industrial, expandiu-se (num período de tempo extremamente curto e com uma impressionante aceleração) na homologação mecânica, a mesma contra a qual Charlie Chaplin enviava um alerta tardio em Tempos Modernos.
Um dos resultados mais interessantes é a queda abrupta do valor da vida humana. Qual pode ser o valor dum indivíduo se este for apenas uma das inúmeras cópias existentes?
Voltemos para o trabalho do meu avô.
Na loja dele costumava estacionar um marinheiro, Baciccia, já muito velho e que tive a sorte de conhecer. Contava-me de quando, ainda particularmente jovem, tinha participado nas operações de socorro após o terremoto de Messina (Sul de Italia), em 1908. Uma catástrofe que matou entre 90 mil e 120 mil pessoas, algo que a geração dele lembrava com horror.
Mais de 100 anos depois, na Europa, morrem 120 mil pessoas a cada ano em acidentes de viação, quase 350 por dia. Só no Brasil, os mortos foram 60.572 no ano passado.
Em todo o mundo, as vítimas são mais de um milhão (cerca de 1.200.000 segundo a OMS) por ano.
Uma catástrofe? Algo de que falar com o dono da loja perto de casa (ou, mais provável, com a rapariga da
caixa no supermercado)?
Nada disso. São vítimas "normais", fazem parte do mercado: já em Janeiro sabemos quantas pessoas irão morrer ao longo dos sucessivos 12 meses, mas isso é aceite com naturalidade. Acontece, parece não haver nada que possa ser feito.
A vida humana é um preço "razoável" perante a necessidade das casas automobilísticas, das empresas petrolíferas, de tudo o que faz parte do mais amplo livre mercado.
Paradoxalmente, o preço da vida humana voltou para os valores dos tempos mais sombrios da História humana. E aceitamos isso: faz parte da tal narcolepsia entre as cujas vítimas mais ilustres encontramos a diversidade.
Um processo arriscado, que pode ter poucos desfechos possíveis. O mais triste dos quais é a extinção do Homem.
Não é pessimismo gratuito: é apenas a lógica projecção dos dados disponíveis, comparados com as experiências das civilizações que viveram e desapareceram antes da nossa.
Se hoje não somos capazes de perceber o mundo que existe fora das nossas limitadas realidades pessoais, deitando para as urtigas os filtros e os preconceitos que impedem uma análise objectiva e desencantada do nosso presente, nunca seremos capazes de encarar a força mais poderosa de todas: as Leis da Natureza.
Fiquem diferentes.
Não gays ou associais: apenas diferentes.
P.S.: Bom fim-de-semana!
Ipse dixit.
No melhor dos casos, ser diferente significa ser gay.
Um degrau mais em baixo, o diferente porque incapacidado: o azarado.
Mais em baixo ainda, podemos encontrar o diferente porque imigrante (gente estranha, usos incompreensíveis, que assustam).
No fundo mesmo, sobram os rotulados como anárquicos, associais, rebeldes. Praticamente: os loucos.
O valor supremo da diversidade (que é uma das essências da vida) foi reprimido e substituído com uma operação de achatamento mental, algo que não tem precedentes na história humana. Não perceber esta realidade, evidente como a luz do sol, significa estar já imerso no estado de narcolepsia que paira sobre o mundo, em particular naquela parte mais "desenvolvida".
É uma boa forma de escravidão, aliás, a melhor: porque nesta homologação global, achamos ser livres. A aprovação dos comportamentos e das formas, num pensamento dominante, tende a agrupar todas as identidades numa única, tornando supérfluas e dissonantes todas as outras. É uma aprovação que satisfaz, em particular os indivíduos medianos, que desta forma conseguem sentir-se "protegidos" porque parte duma manada numerosa.
Mas isso tem custos enormes.
A diversidade, que era o motor da criatividade, da cultura, da imaginação e do conhecimento, tecia um imenso quadro, por certos aspectos fascinante e misterioso: era o quadro do ser humano.
O meu avô era sapateiro e costumava personalizar os seus utensílios, tal como tinha feito o pai dele e o pai do pai. No fundo da rua havia outro sapateiro, também ele com os seus instrumentos personalizados.
O mesmo acontecia com os ferreiros, os carpinteiros, com qualquer artesão: existiam ferramentas básicas, iguais para todos, depois havia a personalização, que tornava únicos e irrepetíveis os trabalhos deles. Era o esplendor da diversidade.
O que resta hoje daquele mundo que marcou a evolução da nossa sociedade? Quase nada.
O homem de hoje não é senão a repetição em série, com a mesma estupidez, das cópias que circulam em qualquer continente. Somos anestesiados da mesma forma: os programas demenciais e demenciadores da televisão da América do Sul são os mesmos aos quais podemos assistir na Europa (os terríveis format); e são os mesmos vistos nas outras partes do mundo.
Às vezes muda o título, mas não as consequências: a família (pai e mãe, o filho fica no quarto dele com a consola, o computador ou outra televisão) sentados no sofá no horário preestabelecido. Mas atenção: a televisão não é o único inimigo, é só uma das mais potentes entre as armas de destruição neuronal.
Na verdade, este processo de desumanização e distorção começou há algumas décadas após a revolução industrial, expandiu-se (num período de tempo extremamente curto e com uma impressionante aceleração) na homologação mecânica, a mesma contra a qual Charlie Chaplin enviava um alerta tardio em Tempos Modernos.
Um dos resultados mais interessantes é a queda abrupta do valor da vida humana. Qual pode ser o valor dum indivíduo se este for apenas uma das inúmeras cópias existentes?
Voltemos para o trabalho do meu avô.
Na loja dele costumava estacionar um marinheiro, Baciccia, já muito velho e que tive a sorte de conhecer. Contava-me de quando, ainda particularmente jovem, tinha participado nas operações de socorro após o terremoto de Messina (Sul de Italia), em 1908. Uma catástrofe que matou entre 90 mil e 120 mil pessoas, algo que a geração dele lembrava com horror.
Mais de 100 anos depois, na Europa, morrem 120 mil pessoas a cada ano em acidentes de viação, quase 350 por dia. Só no Brasil, os mortos foram 60.572 no ano passado.
Em todo o mundo, as vítimas são mais de um milhão (cerca de 1.200.000 segundo a OMS) por ano.
Uma catástrofe? Algo de que falar com o dono da loja perto de casa (ou, mais provável, com a rapariga da
caixa no supermercado)?
Nada disso. São vítimas "normais", fazem parte do mercado: já em Janeiro sabemos quantas pessoas irão morrer ao longo dos sucessivos 12 meses, mas isso é aceite com naturalidade. Acontece, parece não haver nada que possa ser feito.
A vida humana é um preço "razoável" perante a necessidade das casas automobilísticas, das empresas petrolíferas, de tudo o que faz parte do mais amplo livre mercado.
Paradoxalmente, o preço da vida humana voltou para os valores dos tempos mais sombrios da História humana. E aceitamos isso: faz parte da tal narcolepsia entre as cujas vítimas mais ilustres encontramos a diversidade.
Um processo arriscado, que pode ter poucos desfechos possíveis. O mais triste dos quais é a extinção do Homem.
Não é pessimismo gratuito: é apenas a lógica projecção dos dados disponíveis, comparados com as experiências das civilizações que viveram e desapareceram antes da nossa.
Se hoje não somos capazes de perceber o mundo que existe fora das nossas limitadas realidades pessoais, deitando para as urtigas os filtros e os preconceitos que impedem uma análise objectiva e desencantada do nosso presente, nunca seremos capazes de encarar a força mais poderosa de todas: as Leis da Natureza.
Fiquem diferentes.
Não gays ou associais: apenas diferentes.
P.S.: Bom fim-de-semana!
Ipse dixit.
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