O Egipto se encontra (ou "encontra-se"? Fica sempre a dúvida...) numa situação particular. E "particular" não é sinónimo de "bonita".
O antigo presidente Mubarak está em coma e mesmo que não estivesse já fica fora dos jogos: a "Primavera Árabe" varreu o governo dele deixando o País no caos.
Após as recentes eleições, ainda não são conhecidos os resultados e o País fica nas mãos dos militares. Dum lado o candidato Ahmas Shafiq, antigo primeiro ministro de Mubarake bem visto no Ocidente; do outro o candidato da Irmandade Muçulmana, Mohammed Morsi. Ambos reclamam a vitória.
Mas o que interessa aqui é saber algo mais acerca desta "ameaça": a Irmandade Muçulmana. Quem são estas pessoas? O que querem? Qual o relacionamento deles com o Ocidente?
Em Washington está de volta uma questão política fundamental: como lidar com a Irmandade Muçulmana? No Egipto, a Irmandade tomou um papel importante nos protestos, cada vez mais importante. E mesmo que as intenções ainda não estejam claras, é óbvio que o movimento será um jogador importante em qualquer transição de governo.
Depois há a questão de israel: como a Irmandade vai lidar com o País vizinho? Abdicou da violência?
Por enquanto a Administração do simpático Obama nega contactos formais. Mas não foi sempre assim.
A Irmandade não é nova: foi fundada em 1928 pelo professor Hassan al-Banna, com o lema "O Islão é a solução" e no final da Segunda Guerra Mundial já contava com dois milhões de militantes. E ao longo de 83 anos de história, é óbvio que existiram contactos com os Estados Unidos. Aliás: mais do que simples contactos.
Desde os anos '50, os EUA assinaram pactos secretos com a Irmandade e suas ramificações acerca de vários assuntos, tal como a luta contra o comunismo. Mas parece existir um padrão que deve fazer reflectir Washingotn: todas as vez em que os líderes norte-americanos decidiram que a Irmandade poderia ser útil e tentaram por isso condicionar as escolhas e os objectivos dela, quem ficou a ganhar foi a mesma Irmandade.
O caso do presidente Eisenhower, por exemplo.
Em 1953, um ano antes da Irmandade ser proibida pelo presidente egípcio Nasser, um programa secreto de propaganda dos Estados Unidos, liderado pela Agência de Informação dos EUA, trouxe mais de três dezenas de líderes islâmicos naquela que era oficialmente conhecida como uma conferência académica na Universidade de Princeton.
A verdadeira razão por trás da reunião era a tentativa de impressionar os visitantes com a força espiritual e moral dos Estados Unidos, porque estes achavam que poderiam influenciar a opinião popular muçulmana melhor do quanto feito pelo governantes locais: o objectivo final era promover um programa anti-comunista nesses Países recém-independentes.
Um dos líderes, de acordo com os apontamentos de Eisenhower, era Saeed Ramahdan, delegado da Irmandade Muçulmana: era o genro do fundador da organização Irmandade, pessoa que a CIA apontava como "falangista", um "fascista interessado no poder", de modos brutais. Mas a Casa Branca pensou convida-lo na mesma, .pois Washington tinha percebido que na batalha contra o comunismo a religião era uma força que os EUA poderiam ter usado, demonstrando apoiar a liberdade religiosa.
No final da mesma década, a CIA apoiava abertamente Ramahdan. Demasiado simples defini-lo como um agente dos Estados Unidos: Ramahdan explorou a ajuda americana para construir um fundamental centro da Irmandade na mesquita de Mónaco de Baviera, um autêntico refugio do grupo: e isso sem que Washington conseguisse reais vantagens desta colaboração. Na verdade, Ramahdan estava mais interessado na própria agenda islâmica de que na luta contra o comunismo.
A cooperação continuo ao longo das décadas e com o início da guerra soviética no Afeganistão, o interesse em cultivar amizades islamitas retomou vigor: foi este o período das ajudas aos mujahidin, alguns dos quais tornaram-se depois Al-Qaeda (o mesmo Osama Bin Laden, lembramos, era agente da CIA).
Após o 11 de Setembro, o relacionamento pareceu deteriorar-se: os EUA até entraram em conflito com a Irmandade, declarando que muitos dos seus principais membros eram apoiantes do terrorismo. Mas, no segundo mandato de Bush, os Estados Unidos estavam perdendo duas guerras no mundo muçulmano, isso sem contar a hostilidade das minorias muçulmanas na Alemanha, na França e em outros Países europeus, onde a Fraternidade havia estabelecido uma presença influente. Então a posição dos EUA mudou de repente e Washington foi outra vez amiga da Irmandade.
A administração Bush criou uma estratégia para estabelecer relações estreitas com os grupos muçulmanos na Europa, ideologicamente próximos da Irmandade, imaginando que esta poderia ser o parceiro ideal para lidar com os grupos mais extremistas do Velho Continente. E, tal como tinha acontecido décadas antes, a Administração tentou projectar a imagem dum mundo muçulmano que tinha em Washington um aliado.
Assim, desde 2006, o Departamento de Estado lançou uma tentativa de conquistar a Irmandade: organizou uma conferência em Bruxelas entre a Irmandade Muçulmana europeia e a versão americana, a Islamic Society of North America.
Esta e outras acções foram apoiadas pela análise da CIA, que em 2006 afirmava que a Irmandade tinha "um impressionante dinamismo interno, organização e conhecimento dos meios de comunicação".
O actual presidente, o simpático Obama, assumiu algumas pessoas da equipa de Bush que tinha ajudado a desenvolver essa estratégia.
Porquê este interesse contínuo para a Irmandade?
Desde a sua fundação em 1928, a Irmandade conseguiu expressar as aspirações da classe oprimida e muitas vezes confusa do muçulmano.
Consegui explicar-lhe o atraso deles com uma interessante mistura de fundamentalismo e de fascismo (e políticas reaccionárias e xenófobas): os muçulmanos de hoje não são suficientemente bons muçulmanos e devem voltar ao verdadeiro espírito do Corão. Os estrangeiros, em particular os judeus, são parte de uma vasta conspiração para oprimir os muçulmanos.
Esta mensagem foi e ainda é espalhada através de um partido político moderno, que inclui grupos de mulheres, associações de jovens, publicações e meios electrónicos. E, às vezes, braços paramilitares.
Também a Irmandade deu origem a muitas das facções mais violentas do Islão radical, como Hamas, embora estes grupos agora acham a Irmandade bastante convencional.
Não é de admirar, portanto, que a Irmandade, apesar de todos os aspectos perturbadores, seja interessante aos olhos dos políticos ocidentais, ansiosos para ganhar influência nessa parte estratégica do mundo.
Mas a Irmandade tem sido um parceiro difícil. Nos Países em que aspira a entrar no contexto político renuncia ao uso da violência de nível local. Assim, a Irmandade Muçulmana no Egipto já não tenta derrubar o regime de forma violenta: afirma que quer impor tribunais religiosos, mas também já afirmou que os tribunais civis têm que ter a última palavra.
Uma operação cosmética e nada mais? Talvez a verdade seja outra: a Irmandade abraçou apenas parcialmente os valores da democracia e do pluralismo.
O clérigo mais poderoso do grupo, residente no Qatar, é Youssef Qaradawi, que bem representa esta dupla: afirma que as mulheres devem ser autorizadas a trabalhar e que em alguns Países os muçulmanos podem contrair empréstimos com juros (um tabu para os fundamentalistas). Mas o mesmo Qaradawi suporta o apedrejamento de homossexuais e o assassinato de crianças israelitas porque estas crescem e poderiam tornar-se soldados. O que, admitimos, não é tão simpático.
E Qaradawi não é um marginal do mundo islâmico, pelo contrário: líder do ramo egípcio, provavelmente encarna o religioso mais influente do mundo muçulmano. Na passada Sexta-feira, por exemplo, milhares de manifestantes na Praça Tahrir ouviram em directo a transmissão do seu sermão.
Tudo isso indica a crescente influência da Irmandade nos protestos da região. No Egipto, a Irmandade já tornou-se um jogador chave e Omar Suleiman, o noivo vice-presidente, convidou a Irmandade nas conversações políticas. Na Jordânia, onde o grupo é legal, o rei Abdullah reuniu-se com a Irmandade pela primeira vez numa década. E na Tunísia, o líder da oposição islâmica Rachid Ghanouchi, que era um dos pilares da Rede Europeia da Fraternidade, acabou de voltar do seu exílio em Londres.
O Ocidente ao longo das décadas tentou explorar a Irmandade e, ao mesmo tempo, aliou-se com muitos governos autoritários que também tentavam apagar o grupo. Agora aqueles já não existem: mas a Irmandade ainda está lá, com a sua mistura de antigos fundamentalismos e métodos modernos.
Ipse dixit.
Fontes: Ikhwan, Middle East Forum, Campo Antimperialista, AgoraVox, NYR, Wikipedia (versão inglesa)
O antigo presidente Mubarak está em coma e mesmo que não estivesse já fica fora dos jogos: a "Primavera Árabe" varreu o governo dele deixando o País no caos.
Após as recentes eleições, ainda não são conhecidos os resultados e o País fica nas mãos dos militares. Dum lado o candidato Ahmas Shafiq, antigo primeiro ministro de Mubarake bem visto no Ocidente; do outro o candidato da Irmandade Muçulmana, Mohammed Morsi. Ambos reclamam a vitória.
Mas o que interessa aqui é saber algo mais acerca desta "ameaça": a Irmandade Muçulmana. Quem são estas pessoas? O que querem? Qual o relacionamento deles com o Ocidente?
Em Washington está de volta uma questão política fundamental: como lidar com a Irmandade Muçulmana? No Egipto, a Irmandade tomou um papel importante nos protestos, cada vez mais importante. E mesmo que as intenções ainda não estejam claras, é óbvio que o movimento será um jogador importante em qualquer transição de governo.
Depois há a questão de israel: como a Irmandade vai lidar com o País vizinho? Abdicou da violência?
Por enquanto a Administração do simpático Obama nega contactos formais. Mas não foi sempre assim.
Amigos e inimigos
A Irmandade não é nova: foi fundada em 1928 pelo professor Hassan al-Banna, com o lema "O Islão é a solução" e no final da Segunda Guerra Mundial já contava com dois milhões de militantes. E ao longo de 83 anos de história, é óbvio que existiram contactos com os Estados Unidos. Aliás: mais do que simples contactos.
Desde os anos '50, os EUA assinaram pactos secretos com a Irmandade e suas ramificações acerca de vários assuntos, tal como a luta contra o comunismo. Mas parece existir um padrão que deve fazer reflectir Washingotn: todas as vez em que os líderes norte-americanos decidiram que a Irmandade poderia ser útil e tentaram por isso condicionar as escolhas e os objectivos dela, quem ficou a ganhar foi a mesma Irmandade.
O caso do presidente Eisenhower, por exemplo.
Em 1953, um ano antes da Irmandade ser proibida pelo presidente egípcio Nasser, um programa secreto de propaganda dos Estados Unidos, liderado pela Agência de Informação dos EUA, trouxe mais de três dezenas de líderes islâmicos naquela que era oficialmente conhecida como uma conferência académica na Universidade de Princeton.
A verdadeira razão por trás da reunião era a tentativa de impressionar os visitantes com a força espiritual e moral dos Estados Unidos, porque estes achavam que poderiam influenciar a opinião popular muçulmana melhor do quanto feito pelo governantes locais: o objectivo final era promover um programa anti-comunista nesses Países recém-independentes.
Um dos líderes, de acordo com os apontamentos de Eisenhower, era Saeed Ramahdan, delegado da Irmandade Muçulmana: era o genro do fundador da organização Irmandade, pessoa que a CIA apontava como "falangista", um "fascista interessado no poder", de modos brutais. Mas a Casa Branca pensou convida-lo na mesma, .pois Washington tinha percebido que na batalha contra o comunismo a religião era uma força que os EUA poderiam ter usado, demonstrando apoiar a liberdade religiosa.
No final da mesma década, a CIA apoiava abertamente Ramahdan. Demasiado simples defini-lo como um agente dos Estados Unidos: Ramahdan explorou a ajuda americana para construir um fundamental centro da Irmandade na mesquita de Mónaco de Baviera, um autêntico refugio do grupo: e isso sem que Washington conseguisse reais vantagens desta colaboração. Na verdade, Ramahdan estava mais interessado na própria agenda islâmica de que na luta contra o comunismo.
A cooperação continuo ao longo das décadas e com o início da guerra soviética no Afeganistão, o interesse em cultivar amizades islamitas retomou vigor: foi este o período das ajudas aos mujahidin, alguns dos quais tornaram-se depois Al-Qaeda (o mesmo Osama Bin Laden, lembramos, era agente da CIA).
Após o 11 de Setembro, o relacionamento pareceu deteriorar-se: os EUA até entraram em conflito com a Irmandade, declarando que muitos dos seus principais membros eram apoiantes do terrorismo. Mas, no segundo mandato de Bush, os Estados Unidos estavam perdendo duas guerras no mundo muçulmano, isso sem contar a hostilidade das minorias muçulmanas na Alemanha, na França e em outros Países europeus, onde a Fraternidade havia estabelecido uma presença influente. Então a posição dos EUA mudou de repente e Washington foi outra vez amiga da Irmandade.
A administração Bush criou uma estratégia para estabelecer relações estreitas com os grupos muçulmanos na Europa, ideologicamente próximos da Irmandade, imaginando que esta poderia ser o parceiro ideal para lidar com os grupos mais extremistas do Velho Continente. E, tal como tinha acontecido décadas antes, a Administração tentou projectar a imagem dum mundo muçulmano que tinha em Washington um aliado.
Assim, desde 2006, o Departamento de Estado lançou uma tentativa de conquistar a Irmandade: organizou uma conferência em Bruxelas entre a Irmandade Muçulmana europeia e a versão americana, a Islamic Society of North America.
Esta e outras acções foram apoiadas pela análise da CIA, que em 2006 afirmava que a Irmandade tinha "um impressionante dinamismo interno, organização e conhecimento dos meios de comunicação".
O actual presidente, o simpático Obama, assumiu algumas pessoas da equipa de Bush que tinha ajudado a desenvolver essa estratégia.
Porquê este interesse contínuo para a Irmandade?
Desde a sua fundação em 1928, a Irmandade conseguiu expressar as aspirações da classe oprimida e muitas vezes confusa do muçulmano.
Consegui explicar-lhe o atraso deles com uma interessante mistura de fundamentalismo e de fascismo (e políticas reaccionárias e xenófobas): os muçulmanos de hoje não são suficientemente bons muçulmanos e devem voltar ao verdadeiro espírito do Corão. Os estrangeiros, em particular os judeus, são parte de uma vasta conspiração para oprimir os muçulmanos.
As duas faces
Esta mensagem foi e ainda é espalhada através de um partido político moderno, que inclui grupos de mulheres, associações de jovens, publicações e meios electrónicos. E, às vezes, braços paramilitares.
Também a Irmandade deu origem a muitas das facções mais violentas do Islão radical, como Hamas, embora estes grupos agora acham a Irmandade bastante convencional.
Não é de admirar, portanto, que a Irmandade, apesar de todos os aspectos perturbadores, seja interessante aos olhos dos políticos ocidentais, ansiosos para ganhar influência nessa parte estratégica do mundo.
Mas a Irmandade tem sido um parceiro difícil. Nos Países em que aspira a entrar no contexto político renuncia ao uso da violência de nível local. Assim, a Irmandade Muçulmana no Egipto já não tenta derrubar o regime de forma violenta: afirma que quer impor tribunais religiosos, mas também já afirmou que os tribunais civis têm que ter a última palavra.
Uma operação cosmética e nada mais? Talvez a verdade seja outra: a Irmandade abraçou apenas parcialmente os valores da democracia e do pluralismo.
O clérigo mais poderoso do grupo, residente no Qatar, é Youssef Qaradawi, que bem representa esta dupla: afirma que as mulheres devem ser autorizadas a trabalhar e que em alguns Países os muçulmanos podem contrair empréstimos com juros (um tabu para os fundamentalistas). Mas o mesmo Qaradawi suporta o apedrejamento de homossexuais e o assassinato de crianças israelitas porque estas crescem e poderiam tornar-se soldados. O que, admitimos, não é tão simpático.
E Qaradawi não é um marginal do mundo islâmico, pelo contrário: líder do ramo egípcio, provavelmente encarna o religioso mais influente do mundo muçulmano. Na passada Sexta-feira, por exemplo, milhares de manifestantes na Praça Tahrir ouviram em directo a transmissão do seu sermão.
Tudo isso indica a crescente influência da Irmandade nos protestos da região. No Egipto, a Irmandade já tornou-se um jogador chave e Omar Suleiman, o noivo vice-presidente, convidou a Irmandade nas conversações políticas. Na Jordânia, onde o grupo é legal, o rei Abdullah reuniu-se com a Irmandade pela primeira vez numa década. E na Tunísia, o líder da oposição islâmica Rachid Ghanouchi, que era um dos pilares da Rede Europeia da Fraternidade, acabou de voltar do seu exílio em Londres.
O Ocidente ao longo das décadas tentou explorar a Irmandade e, ao mesmo tempo, aliou-se com muitos governos autoritários que também tentavam apagar o grupo. Agora aqueles já não existem: mas a Irmandade ainda está lá, com a sua mistura de antigos fundamentalismos e métodos modernos.
Ipse dixit.
Fontes: Ikhwan, Middle East Forum, Campo Antimperialista, AgoraVox, NYR, Wikipedia (versão inglesa)
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