Assunto: bancos e dinheiro. Um artigo fantástico. Que, enquanto tal, passou absolutamente (e não casualmente) despercebido.
Tudo nasce dum relatório do Banco da Inglaterra, Money creation in the modern economy ("A criação do dinheiro na economia moderna"). O The Guardian pegou nas 14 páginas do estudo e explicou de forma simples o que isso significa.
Nada daquilo que segue é novidade para os Leitores deste blog. Mas atenção: este é o The Guardian cuja versão online, só para ter uma ideia, é a terceira mais lida do mundo (9 milhões de visitas diárias).
Vamos ler.
A verdade desvendada: o dinheiro é apenas uma promessa de pagamento, e os bancos aproveitam
Na década de 1930, Henry Ford é suposto ter observado que era uma coisa boa que a maioria dos americanos não soubesse como o sistema bancário realmente funcionava, porque se o soubessem "haveria uma revolução antes de amanhã de manhã".
Na semana passada, algo notável aconteceu. O Banco da Inglaterra falou. Num artigo chamado "A criação do dinheiro na economia moderna", co-autoria de três economistas da Direcção de Análise Monetária do Banco, declara abertamente que as ideias mais comuns de como funciona o banco estão simplesmente erradas, e que os as posições populistas, heterodoxas, mais normalmente associadas a grupos como Occupy Wall Street estão correctas. Ao fazê-lo, o Banco efectivamente atira toda a base teórica da austeridade para fora da janela.
Para ter uma noção de quanto radical seja a posição do Banco, considerarmos o ponto de vista convencional, que continua a ser a base de todo o debate sobre a política pública. As pessoas colocam o dinheiro delas nos bancos. Os bancos emprestam esse dinheiro com juros (aos consumidores, ou aos empresários dispostos a investir). É verdade, o sistema da reserva fraccionária não permite que os bancos emprestem muito mais do que mantêm em reserva, e se as poupanças não forem suficientes, os bancos privados podem procurar empréstimos do banco central.
O banco central pode imprimir tanto dinheiro quanto desejar. Mas também tem o cuidado de não imprimir muito. Na verdade, é dito com frequência que é por isso que existem os bancos centrais independentes. Se os governos pudessem imprimir dinheiro, certamente imprimiriam demais e a inflação resultante atiraria a economia para o caos. Instituições como o Banco da Inglaterra ou a Federal Reserve foram criadas para regular cuidadosamente a oferta de dinheiro para evitar a inflação. É por isso que estão proibidos de financiar directamente o governo, por exemplo, através da compra de Títulos do Estado, mas financiam a actividade económica privada que o governo simplesmente taxa.
É esse conceito que permite continuar a falar de dinheiro como se fosse um recurso limitado, tal como a bauxita ou o petróleo, e dizer "não há dinheiro suficiente" para financiar programas sociais, falar da imoralidade da dívida pública ou da despesa pública.
O que o Banco da Inglaterra admitiu esta semana é que nada disso é verdade. Para citar um dos seus próprios resumos iniciais: "Ao invés de receber os depósitos das famílias que poupam e, em seguida, empresta-los, os empréstimos bancários criam depósitos" [...] "Em tempos normais, o banco central não fixa a quantidade de dinheiro em circulação".
Em outras palavras, tudo o que sabemos não está apenas errado, é o contrário. Quando os bancos fazem empréstimos, criam dinheiro. Isso ocorre porque o dinheiro é realmente apenas uma promessa de pagamento. O papel do banco central é presidir uma ordem jurídica que concede efectivamente aos bancos o direito exclusivo de criar notas promissórias, aquelas que o governo vai reconhecer com curso legal e aceitá-las no pagamento de impostos. Não há realmente nenhum limite ao quanto os bancos poderiam criar, desde que possam encontrar alguém disposto a contrair um empréstimo.
Nunca ficarão sem dinheiro, pela simples razão de que os que contraem empréstimos, de modo geral, não guardam o dinheiro debaixo do colchão, assim, em última análise, todo o dinheiro dos empréstimos bancários vai acabar de volta em algum banco. Assim, para o sistema bancário no complexo, cada empréstimo efectuado só se torna um outro depósito. Além de mais, na medida em que os bancos precisam de adquirir fundos do banco central, podem pedir emprestado tanto dinheiro quanto gostam, tudo o que é feito é definir uma taxa de juros, o custo do dinheiro, e não a sua quantidade. Desde o início da recessão, os bancos centrais dos EUA e do Reino Unido reduziram esse custo a quase nada. Na verdade, com o "Quantitative Easing" efectivamente bombearam o máximo de dinheiro possível nos bancos, sem produzir quaisquer efeitos inflaccionários.
O que isto significa é que o limite real da quantidade de dinheiro em circulação não é o quanto o banco central está disposto a emprestar, mas quanto o governo, as empresas e os cidadãos comuns estão dispostos a pedir em empréstimo. Os gastos do governo são o principal motor de tudo isto (e o relatório admite, ao lê-lo com cuidado, que o banco central financia o governo). Então, os gastos públicos não limitam o investimento privado. É exactamente o oposto.
Porque o Banco da Inglaterra de repente admite tudo isso? Bom, uma das razões é porque é obviamente verdadeiro. O trabalho do Banco é analisar o sistema e, ultimamente, o sistema não tem funcionado particularmente bem. É possível que tenha decidido que a manutenção da fantasiosa versão da economia, que se tem mostrado tão conveniente para os ricos, é simplesmente um luxo que não é possível pagar.
Mas, politicamente, está a assumir um risco enorme. Basta considerar o que poderia acontecer se os detentores das hipotecas percebessem que o dinheiro emprestado pelo banco não é, na verdade, as poupanças duma vida de alguns reformados, mas algo que o banco só tem criado por meio da varinha mágica que nós, o público, lhe demos.
Historicamente, o Banco da Inglaterra tende a ser um termómetro, demarcando posições radicais que, afinal, tornam-se novas ortodoxias. Se isso é o que está a acontecer aqui, podemos em breve estar numa posição para saber se Henry Ford estava certo.
Como o Leitor terá percebido, este é um daqueles artigos que devem ser imprimidos, emoldurados e
pendurados perto da mesa de cabaceira.
Porque aqui está toda a mentira na qual vivemos: o nosso tornou-se um sistema que existe para alimentar os bancos. A compra duma casa, dum carro, o cartão de crédito, de dívida: tudo permite que o banco crie mais dinheiro a partir do nada, dinheiro que será outra vez emprestado, criando juros e lucro para o banco, num círculo que parece não ter limites.
Deveria haver por aqui um pouco de satisfação por parte de quem escreve: quanto afirmado pelo The Guardian (que fez o resumo) e pelo Banco da Inglaterra (que publicou o relatório) é exactamente quanto repetido nestas páginas ao longo dos últimos três anos e meio. Mas, em vez de satisfação, há amargura. E perceber a razão é simples.
Este relatório apareceu na metade deste mês, enquanto o artigo do The Guardian é da semana passada. O que aconteceu desde então?
Viram especialistas na televisão discutindo acerca do assunto? Reportagens? Aprofundamentos? Artigos nos jornais nacionais, tão solícitos em traduzir as últimas novidades quando estas estiverem relacionadas com o último bebé da casa real?
Não houve nada. O que é fantasticamente deprimente: um banco (e não um banco qualquer) afirma que somos burlados, todos, indistintamente, repetidamente, e o nada absoluto é a resposta.
"Porque o Banco da Inglaterra de repente admite tudo isso?" pergunta o jornalista.
A minha resposta é: porque sabe que é verdade e que não há nenhum risco em revela-la. Não vai haver manifestações de protestos, nenhuma questão levantada nos vários parlamentos nacionais, nenhum Leitor escandalizado que escreve ao redactor do diário local.
Não vai haver nada.
Se o Banco da Inglaterra tivesse escrito que José Mourinho (o português treinador de Chelsea) é um parvo, em Portugal teria explodido uma meia revolução. Pelo contrário, o Banco afirma que somos constantemente enganados e a nossa indignação consiste em ficar preocupados com um avião desaparecido do outro lado do planeta.
"Historicamente," conclui o jornalista, "o Banco da Inglaterra tende a ser um termómetro, demarcando posições radicais que, afinal, tornam-se novas ortodoxias".
Esta é uma observação que temos de ter em conta. O discurso arrisca ser demasiado comprido, mas não podemos esquecer a quem pertence o Banco da Inglaterra (e não, não é da Rainha...). Um relatório como este não é algo que inocentemente foi publicado num anónimo dia de Março: porque, na verdade, as mesmas coisas poderiam ter sido escritas há um, cinco ou dez anos atrás. Se apareceu agora, é porque existe um motivo.
Esta é uma observação que temos de ter em conta. O discurso arrisca ser demasiado comprido, mas não podemos esquecer a quem pertence o Banco da Inglaterra (e não, não é da Rainha...). Um relatório como este não é algo que inocentemente foi publicado num anónimo dia de Março: porque, na verdade, as mesmas coisas poderiam ter sido escritas há um, cinco ou dez anos atrás. Se apareceu agora, é porque existe um motivo.
Qual? Mudanças no horizonte.
Nenhuma revolução como preconizado por Henry Ford. Mas alguém decidiu ter chegado o tempo duma mudança. Que será lenta, pouco visível e que não sabemos até que ponto poderá trazer algo de bom. Mas o relatório do Banco da Inglaterra é o apito inicial.
Ipse dixit.
Nenhuma revolução como preconizado por Henry Ford. Mas alguém decidiu ter chegado o tempo duma mudança. Que será lenta, pouco visível e que não sabemos até que ponto poderá trazer algo de bom. Mas o relatório do Banco da Inglaterra é o apito inicial.
Ipse dixit.
Fontes: The Guardian, Bank of England: Money Creation in the Modern Economy (ficheiro Pdf, inglês)
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