Pode ser um bocado complexo em algumas partes, mas merece.
Quem tiver um cartão de crédito, a cada mês paga o saldo pensando aproveitar o período sem juros "oferecido" pela empresa que gere o cartão (costuma ser um banco mas também pode não ser): um crédito livre, custo zero. Mais: ao utilizar o cartão em vez de dinheiro, eis que surgem outras vantagens, como os pontos frequent flier ou o cash back.
Enfim, um paraíso, é só aproveitar.
Mas será mesmo assim?
Tantas vantagens e nem uma dúvida?
O que ganharia um banco com todas estas prendas para o cliente?
Não será que o banco ganha com isso?
E quem acham que paga a factura?
Na verdade as coisas não funcionam desta forma: os cartões de créditos têm custos ocultos. E quem paga é (adivinhem...) o cliente. Mesmo quando o saldo for pago no dia certo, mesmo quando não aparecem juros sobre o montante utilizado, o custo existe.
Vamos ver como funciona.
Assinatura tua, activo meu
O economista Hyman Minsky observa que qualquer pessoa pode criar dinheiro: o truque (ou capacidade) consiste no fazê-lo aceitar. A função do cartão de crédito é transformar a promessa de pagamento do cliente num instrumento negociável. E o que é um "instrumento negociável"? É tudo o que pode ser convertido em dinheiro.
Ao assinar um recibo, cujo montante será "carregado" no cartão, ou a introduzir uma password no terminal electrónico, o cliente cria um título de crédito (no qual, obviamente, o cliente é o devedor e a empresa que gere o cartão é a credora). Este título de crédito é depositado eletronicamente na conta corrente do comerciante: e a conta aumenta do mesmo montante que o cliente aceitou pagar com o cartão. Isso significa que o comerciante tem sido pago.
O recibo da despesa é encaminhado para uma Acquiring Settlement Bank (o banco ou instituição financeira que elabora os pagamentos feitos ao comerciante através do cartão de crédito/dívida) que agrupa os recibos e enviá-los para o banco do cliente. Este, por sua vez, envia ao cliente a conta que o mesmo cliente liquida (por exemplo com um cheque ou directamente atingindo da conta corrente.
Atenção: o recibo da mercadoria que o cliente adquiriu tornou-se um "activo"; que, como explica Wikipédia, é um "conjunto de bens, valores, créditos, direitos e assemelhados que forma o patrimônio de uma pessoa, singular ou coletiva, num determinado momento". Isso é: o activo é uma riqueza.
O banco pegou na promessa de pagamento do cliente e transformou-a em dinheiro. Um ciclo extremamente rápido.
O software em crise
Timothy Madden é um analista financeiro canadiano que, no início dos anos 90, construiu modelos de software para a gestão das contas correntes relacionadas com os cartões de crédito.
Ele estima que os pagamentos que utilizam as reservas dos bancos envolvem apenas 2% dos casos e que a taxa de 2% cobrada aos comerciantes (taxa paga para usufruir do serviço de pagamento com cartões) cobre suficientemente esta eventualidade. As reservas necessárias para suportar os custos de curto prazo, portanto, são fornecidas directamente pelo mesmo sistema de crédito, sem necessidade de mexer em dinheiro real.
E eventuais juros?
Explica Madden:
O interesse é toda "fartura", porque as operações são financiadas pelos mesmos recibos de pagamento gerados pelos usuários dos "cartões de crédito" no local de compra. Vamos supor que as vendas brutas mensais realizadas utilizando o "crédito/débito" dobrem no período das festas de fim de ano, desde os normais 300 para 600 biliões de Dólares. O banco não deve preocupar-se da a forma de financiar os 300 biliões extra, porque o financiamento será fornecido pelos mesmos recibos que foram assinados.De facto, é complicada uma contabilidade onde o banco alegadamente antecipa dinheiro mas no qual na verdade é o cliente que antecipa a si mesmo o dinheiro assinando um recibo: e as passividades onde cabem? O mesmo Madden admite ter tido problemas neste aspecto na compilação do já citado software.
É esta também a razão pela qual quase todos os bancos ao redor do mundo "devem" apagar 100% das "contas correntes" relacionadas com os cartões de crédito/débito que estão em atraso com os pagamentos há 180 dias. O projecto básico do sistema garante que, uma vez posto em movimento, vai inteiramente auto-financiar-se, sem qualquer envolvimento do operador. As perdas não podem ser incluídas no património líquido do gestor, porque o património simplesmente não existe.
Portanto: o banco não extrai um cêntimo para a compra do cliente, mas fica com a taxa de 2% cobradas ao comerciante e os juros sobre os eventuais atrasos nos pagamentos.
Uma taxa se 2% é pouca coisa? Quantos serão no mundo os comerciantes que aceitam pagamentos com cartão? Tentem fazer as contas...
Lucros, lucros, lucros...
É esta é a verdadeira razão pela qual os cartões de crédito tornaram-se o negócio mais lucrativo no sector bancário.
Uma vez, a tarefa dos bancos era a recolha de dinheiro, que depois era emprestado ao sector imobiliário e para uso comercial. Nos últimos anos, ao contrário e de acordo com um relatório da Federal Reserve, para os bancos comerciais os ganhos alcançados através dos cartões crédito foram quase sempre superiores aos obtidos com todas as outras actividades.
A palavra de ordem é: lucro, lucro, sempre lucro (que depois são 4 palavras, mas tudo bem).
Nesta altura o Leitor poderia pensar:
Sim, interessante, mas eu que tenho a ver com isso? Eu utilizo o cartão, fico com as vantagens todas depois o problema é do comerciante e do banco.Ahe? O Leitor pensa isso?
Então saiba o nobre Leitor que está redondamente enganado.
A taxa oculta
Tomemos o caso de Portugal.
A taxa sobre os pagamentos com cartão paga pelos comerciante varia entre 1% e 2%. Só que depois há o custo da ligação telefónica, onde são cobrados 70 cêntimos. Mais os custos da instalação do sistema, que devem ser amortizados.
Isso significa que uma venda com lucro inferior ou igual a 70 cêntimos não apenas não gera nada como pode fazer enriquecer só o banco (e há a ainda a taxa de 1% ou 2% para pagar).
Pelo que, uma loja tem duas opções:
- ou limita as aquisições feitas com os cartões
- ou aumenta a margem de lucro nas vendas.
Uma autêntica mina para o banco. E alguém tem que pagar.
A cadeia Pingo Doce, por exemplo, introduziu em Outubro de 2012 um limite mínimo de pagamento de 20 Euros e já em Dezembro do mesmo ano tinha conseguido poupar 700 mil Euros em comissões (-6.2% face ao montante pago anteriormente).
Mas a maneira mais rápida, e que evita também discussões com os clientes, é aumentar a margem de lucro: isso é, aumentar os preços dos artigos. E é aqui que encontramos o custo oculto para o utilizador do cartão (e para o público no geral): para permitir o enriquecimento dos bancos, pagamos mais caro.
A taxa cobrada aos comerciantes sobre os cartões (2%, como lembrado) é o equivalente financeiro de um imposto indirecto sobre as vendas, cujo total ascendeu nos Estados Unidos a mais de 30 biliões de Dólares por ano. O efeito desta "taxa indirecta", todavia, é pior do que um imposto "normal" sobre as vendas, porque o produto não é gasto em favor da economia, nos serviços ou nas infra-estruturas: fica nos cofres dos bancos. É um imposto privado sobre o mercado que retira o poder de compra da economia.
Este imposto tem consequências também no sector público.
De acordo com o Departamento das Finanças da cidade de San Francisco, a câmara paga 4 milhões de Dólares por ano só para despesas bancárias, e mais de metade desse montante desaparece para pagamentos do já citado imposto (pois também os entes locais recebem pagamentos via cartão).
Ainda convencidos de que o cartão seja só vantagens?
Ipse dixit.
Fontes: Counterpunch, Wikipedia, Diário de Notícias, Federal Reserve: Report to the Congress on
the Profitability of Credit Card Operations of Depository Institutions (ficheiro Pdf, inglês),
0sem comentários ainda
Por favor digite as duas palavras abaixo