
Nada incentiva mais o feminicídio do que a impunidade dos matadores .
Por Carlos Wagner no Blog Histórias Mal contadas
Na tarde de terça-feira (22/04), em uma área de mata no Campus do Vale, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto Alegre (RS), foi preso preventivamente Augusto Santos Silva, 22 anos, acusado de ter matado, na sexta-feira (18), com dois tiros na cabeça, a sua ex-companheira, a técnica em enfermagem Patrícia Viviane de Azevedo, 50 anos. Ela foi uma das 10 mulheres vítimas de feminicídio no feriadão de Páscoa e Tiradentes (entre quinta-feira, 17, e segunda-feira, 21), no Rio Grande do Sul. Silva foi o último autor destes crimes a ser preso. Mas sua prisão não coloca um ponto final no problema do feminicídio, como é chamado o assassinato de mulheres por motivos domésticos. Apenas fecha os casos registrados durante o feriadão. Não é difícil prever que mais mortes virão por aí, é o que nos ensina a história da violência contra as mulheres no Brasil. Em 40 anos como repórter, já fiz muitas reportagens sobre o assunto. Todos os detalhes destas mortes podem ser encontrados na internet. Como também estão à disposição na rede as estatísticas sobre violência contra as mulheres.
As particularidades que envolvem a violência contra a mulher exigem que o assunto seja tratado de uma maneira diferenciada. Não pode mais continuar na vala comum da segurança pública. Vamos conversar sobre o assunto. O feminicídio é uma qualificadora dos crimes cometidos contra a mulher. Entre os países emergentes e democráticos no mundo, o Brasil perfila-se entre os mais violentos contra a população feminina. Não é simples prevenir estes crimes porque a maioria deles acontece dentro de casa, no âmbito familiar dos envolvidos. Mas progressos significativos na prevenção vêm sendo obtidos nos últimos anos. Como a Lei Maria da Penha (2006), a proliferação, nas capitais, das delegacias da mulher, abrigos, patrulhas especializadas das polícias militares e uma rede segura para receber denúncias contra os agressores. A maioria destes avanços se deve à atuação da imprensa. Lembro que diariamente os crimes cometidos contra as mulheres ocupam espaços nobres dos noticiários. Há menos de uma década, eles não frequentavam as manchetes das TVs a cabo e muito menos dos grandes jornais. O trabalho dos jornalistas vem sendo facilitado pela proliferação das câmeras de vigilância e das novas tecnologias de comunicação, que incluem celulares, aplicativos e redes sociais. Neste ponto da nossa conversa vou sugerir que chegou a hora da imprensa ser mais audaciosa na cobertura da violência contra a mulher. Explico. A questão caiu na vala comum dos casos de segurança pública. Isso limita o acesso a verbas para projetos específicos na área. Temos uma oportunidade mudar essa realidade. No próximo ano haverá eleições para governadores e presidente da República. Portanto, temos a chance de perguntar aos candidatos quais são os seus planos específicos para a questão da violência contra as mulheres. É como disse e repito. Trata-se de um crime difícil de prevenir, porque acontece dentro das quatro paredes do lar. Mas não significa que seja impossível de lidar. Uma equipe multidisciplinar teria melhores condições de manejar o assunto. Temos uma rede de cientistas que estudam os casos de violência no Brasil, eles precisam ser ouvidos sobre o problema.
Étambém a oportunidade de lembrarmos aos candidatos que nada incentiva mais o feminicídio do que a impunidade dos matadores de mulheres. A criação de uma equipe de policiais específica para lidar com os casos insolúveis não só seria um gesto de satisfação do estado para com as famílias das vítimas como um aviso aos assassinos de que eles não foram esquecidos pela polícia. Sempre que tenho oportunidade bato nesta tecla. E os acontecimentos do feriadão de Páscoa são uma oportunidade de lembrar que a impunidade incentiva a violência. Vou citar dois casos de impunidade. Por uma destas ironias do destino, como se dizia nos tempos das barulhentas máquinas de escrever nas redações, um deles aconteceu no mês de abril em 2015 e o seu aniversário de 10 anos sem solução foi uma notícia de pé de página. Na noite de 9 de abril de 2015, a professora Cláudia Pinho Hartleben, 47 anos (na época), do curso de Biotecnologia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), saiu da faculdade e passou na casa de uma amiga para conversar. Não trataram nada de relevante, apenas colocaram os assuntos em dia. A casa da amiga fica a algumas quadras de onde morava a professora. Parentes de Cláudia disseram que ouviram o ranger do portão quando ela chegou em casa. Nunca mais foi vista. Os seus pertences foram encontrados intactos dentro da casa. A investigação policial apontou duas pessoas como suspeitas pelo desaparecimento. Mas não conseguiu provas que os ligassem ao fato. Como o corpo não foi encontrado, o caso está insolúvel. O outro episódio aconteceu em junho de 2005. A comerciante Sirlene de Freitas Moraes, 41 anos (na época), e seu filho Gabriel, sete anos (na época), desapareceram em Porto Alegre. Ela era casada e teve uma relação extraconjugal com seu médico, da qual nasceu Gabriel. Um dia, Sirlene contou ao marido que o menino não era filho dele e que o pai verdadeiro ia reconhecer a paternidade. Saiu para encontrar o médico acompanhada por Gabriel. Nunca mais os dois foram vistos. O médico ficou preso durante 50 dias e acabou sendo solto por falta de provas. No ano passado, em 22 de outubro, publiquei o post O triste aniversário do sumiço da professora Cláudia e de Sirlene e seu filho Gabriel.
Arrematando a nossa conversa. Além de Cláudia, Sirlene e Gabriel há outros desaparecimentos que se tornaram casos insolúveis. Sempre digo nas minhas palestras para estudantes de jornalismo, nas conversas com colegas nas redações pelo interior do Brasil e nas mesas de botecos. As coisas só acontecem quando viram manchete dos jornais. Ou viralizam nas redes sociais. E as eleições para governador e presidente da República, no próximo ano, são uma grande oportunidade de transformar em pauta nos debates dos candidatos a violência contra as mulheres.
“Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social — habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.