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50 anos de golpe - Depoimento de Paulo Fonteles

21 de Março de 2014, 11:28 , por Desconhecido - 0sem comentários ainda | No one following this article yet.
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Leia abaixo o depoimento de Paulo Fonteles de Lima. O combatente Paulo Fonteles e sua companheira, Hecilda, no Pelotão de Investigações Criminais (PIC), no Ministério do Exército e na Barão de Mesquita, estiveram em 1978,  e ele denunciou os torturadores, um a um, a começar pelo General Bandeira até os soldados que atuaram no mais infame período da vida nacional para liquidar com a condição humana daqueles que lutavam para restabelecer a democracia e as liberdades públicas.

Paulo Fonteles Filho enviou esse depoimento ao blog, e disse que compartilha esse documento para:

"Não deixar que esse brado se esfumace nestes tempos de intensa luta política é uma tarefa daqueles que querem construir dias melhores, de liberdade e progresso espiritual ao povo brasileiro". (Paulo Fonteles Filho).

Segue depoimento de Paulo César Fonteles de Lima:



Sr. Juiz,

Srs. Membros do Conselho de Sentença.

 Novamente compareço diante de um Tribunal Militar, acusado de crime contra a segurança nacional. Novamente, consciente de meus deveres cívicos, de defensor intransigente dos direitos humanos, do amor à Pátria, de cidadão brasileiro e autentico democrata, amante das liberdades, de mãos limpas e consciência tranqüila, venho prestar meu depoimento.

Não venho pedir clemência, mesmo sabedor de quão longos são os dias na cadeia. Venho diante de vós, exigir justiça!

Nunca talvez houve na justiça brasileira, civil e militar, processo tão iníquo. Iníquo porque o que nele se pretende é o sepultamento de crimes inomináveis. Iníquo porque através dele se pretende intimidar e atemorizar todos os que têm denunciado fartamente ao povo brasileiro os mais bárbaros assassinos que o mundo moderno tem conhecido. Um processo onde as vítimas dos mais terríveis suplícios são julgadas por terem tido o destemor de apontar seus algozes. Um processo em que brasileiros torturados correm o risco de ir para as grades por terem cumprido com o seu dever de denunciar criminosos, tão sanguinários, somente comparáveis aos mais terríveis sicários de Hitler, Mussolini e Franco.

Sr. Juiz,

Srs. Membros do Conselho de Sentença.

Aconselharam-me à prudência, que qualquer atitude mais firme poderia irritá-los, e com isso precipitar uma condenação. Porém, poderia eu, por acaso, calar-me diante de vós, e simplesmente negar ou desculpar-me por ter denunciado como criminosos quadros das Forças Armadas brasileiras. Não, não posso.

Além de mim, insignificante caboclo da Amazônia, existe algo maior e mais importante: o povo brasileiro. É com ele que me preocupo, é a ele a quem devo servir.

É necessário que o povo brasileiro tome conhecimento de tudo que se passou nos porões do regime militar, que em 1964, depôs o Presidente Constitucional eleito, Sr. João Goulart, e que nestes últimos 15 anos nada mais fez que levar através da fome, da miséria e do desrespeito aos mais comezinhos direitos do Homem o nosso povo ao desespero.

É necessário que nosso povo tome conhecimento do mais trágico e perverso aparelho de repressão jamais montado, talvez nem na Alemanha Nazista, autor dos mais inomináveis crimes, suplícios e mortes. Capaz de enlouquecer os mais serenos homens e fazer vergar caracteres extraordinários. Eu passei por ele. Sou testemunha, pela carne que me foi tirada, pelos sentidos que presenciaram.

Fui pessoalmente barbarizado durante quase quarenta e cinco dias. Aqui, agora, ratifico todo o meu depoimento ao jornal “Resistência”, n°5, e passo a integrá-lo nesse depoimento:

“Estudante da Universidade de Brasília, fui preso no dia 06 de outubro de 1971. Eram mais ou menos 10 horas da noite, quando, voltando de uma aula, fui abordado, na porta de casa, por uma moça que dizia haver recolhido minha mulher passando mal numa parada de ônibus da W 3, colocando –se a disposição para me dar uma carona até o Hospital Distrital de Brasília, onde a Hecilda estaria hospitalizada.


Embarquei num Volkswagen, dirigido por um homem, na companhia de outro vestido de enfermeiro. Aí começaria uma terrível experiência de sofrimentos, humilhações, roubos, processo de enlouquecimento, torturas, tentativa de assassinato, a que fui submetido durante longos meses.

O Volkswagen de fato dirigiu-se para frente do Hospital Distrital de Brasília. Só que quando o carro parou, a moça desceu correndo e o motorista, que mais tarde eu viria identificar como o terrível torturador Delegado Deusdeth da Polícia Federal, me deu voz de prisão. Prisão manifestadamente ilegal, pois não havia qualquer espécie de flagrante delito, nem muito menos uma ordem de prisão. Nada, simplesmente a força da prepotência.

Em pleno 1971, quando as notícias de desaparecimentos, mortes, torturas de presos políticos eram freqüentes na imprensa do país, minha primeira preocupação foi dar público a minha prisão. Para isso, armei uma enorme confusão na rua. Abri a porta do carro e comecei a gritar por socorro. Que estava sendo seqüestrado, que me ajudassem. Apesar da hora, juntou-se logo um grande número de pessoas em volta do carro, quando um sem número de policiais, que já estavam à minha espera, conseguiram jogar-me no chão, algemando meus pulsos para trás. Eles diziam para o povo que eu era louco. Eu me debatia e gritava que era estudante da Universidade. Me identificava e pedia que avisassem a minha família em Belém, dizendo repetidamente o endereço de meus pais. Finalmente dominado, fui atirado no banco traseiro do veículo que arrancou velozmente. Fui levado diretamente para o Pelotão de Investigações Criminais – PIC da Polícia do Exército de Brasília. No caminho já fui levando socos, tapas, telefones, coronhadas, sendo ainda informado que a minha mulher, Hecilda, grávida de cinco meses já estava presa.

O PIC é um inferno. Nele, conheci logo a “salinha” – sala de estar dos sargentos – onde eram promovidas as torturas a todos que eram presos no PIC. Sem que me fizessem uma só pergunta, “só para arrepiar”, na gíria dos torturadores, experimentei na carne toda a selvageria do aparelho de repressão montado desde 1964. Inicialmente um brutal espancamento, murros, “telefones”, tapas, chutes no estômago, cacetadas nos joelhos e nos cotovelos, pisões nos rins.

Depois, apesar de meu esforço para resistir, tiraram-me as roupas, deixando-me completamente nu, amarraram-me no pau-de-arara, e passaram-me a aplicar choques elétricos, com descargas de 140 Wolts na cabeça, nos órgãos genitais e na língua. Depois de muito tempo é que começaram as perguntas. Como eu não lhes respondia, a “sessão” durou até a alta madrugada, quando já bastante machucado, fui arrastado e atirado dentro de uma cela. Entre outros, participaram dessa primeira “sessão” o Delegado Deusdeth da Polícia Federal, o Sargento Ribeiro, o Sargento Vasconcelos, o Sargento Arthur, Cabo Torrezam, Cabo Jamiro, Soldado Ismael, Soldado Ademir, todos esses do Exército.

No dia 07, quinta-feira, ainda não amanhecera, quando o Sargento Vasconcelos, elemento bestial, despudorado homossexual, que se aprazia em ofender as companheiras presas, veio dizer-me que o da noite “fora um aperitivo”. Que agora era que o pau ia cantar mesmo. Cedo, um destacado elemento da tortura no PIC, cabo Martins foi me buscar na cela. Colocou-me um negro capuz na cabeça e levou-me para a “salinha”. Durante quase três dias seguidos, quase sem interrupções, fui submetido às mais diversas violências físicas que se possa conceber.

Nu, pendurado pelos pulsos e tornozelos no “pau-de-arara” (uma barra de ferro sobre dois cavaletes, onde o preso fica dependurado, assim como se fosse um porco que vai ao mercado), recebendo espancamentos generalizados, choques elétricos, afogamentos. No pau-de-arara, o preso ainda tem forças – na primeira hora – para sustentar o peso do corpo.

Com o tempo, todavia, o corpo vai sendo puxado para baixo e começa uma dolorosíssima distensão nos braços e nas pernas. Parece que os ossos vão se partir, todos. O choque elétrico é particularmente terrível na cabeça. Na bolsa escrotal, é como se ela estivesse sendo esmagada dentro de uma prensa. O choque elétrico, além de ser em si terrível, provoca uma contração alucinada dos dentes, que me cortava toda a língua. A cada descarga, uma golfada de sangue tingia o capuz.

Para aumentar o efeito das descargas, obrigavam-me a comer sal. Minha boca ficou toda queimada. O afogamento era feito com a infiltração de água na minha boca e nas narinas através de mangueiras de borracha. Eu sufocava e estertorava. Tudo isso no pau-de-arara.

Nesses dias revelou-se particularmente perverso o Sargento Ribeiro. Ele ria e cantava. No sábado de manhã, eu já completamente exangue quase não mais sentia dor, apenas vontade de descansar. Então, na primeira oportunidade de que tive, ao me descerem do pau-de-arara girei o corpo e dei com a testa no chão. Desmaiado e sangrando fui levado para a cela, onde pude finalmente descansar. Devido a esses três dias, eu ficaria com o braço direito e a perna esquerda paralisadas durante três meses.

À tardinha, lá pelas 18 horas, a cela se abriu. Viera me ver o Capitão Magalhães, até então eu não tivera contato com nenhum oficial. Eu não podia nem falar, nem me mexer. Falou-me o Capitão Magalhães que quem havia feito aquilo comigo era a Polícia Federal, que o Exército não torturava que nada iria mais me acontecer, que na segunda-feira o meu depoimento seria tomado.  

Mandou comprar leite gelado e ofereceu-me cigarros. Dias depois, esse mesmo Capitão comandaria novas sessões de torturas dentro do próprio Ministério do Exército, na Esplanada dos Ministérios, a 500 metros do Palácio do Planalto.

Na segunda-feira tiraram-me da cela e arrastaram-me a uma espécie de posto de recepção. Lá, pela segunda vez, vi minha mulher. A primeira fora através de um ardil. Na própria quinta-feira, disse que confessaria tudo se me permitissem ver a minha mulher. Eles então me desamarraram do pau-de-arara e conduziram-me a uma sala por onde através de um vidro, pude reconhecer e confirmar a sua prisão.

Mas como na verdade não tivesse nada para confirmar, não o fiz, enraivecendo-os ainda mais. Agora a Hecilda estava bem próxima. Muito pálida, quase sem cor. Parecia que ia desmaiar a qualquer momento. Levantei o polegar direito, querendo dizer que estava tudo bem. No carro balbuciei-lhe duas palavras de conforto. Meus olhos estavam firmes, ela fez que sim com a cabeça, também estava firme. Do PIC fomos levados para o Ministério do Exército.

Entramos no Ministério pela garagem. Subimos por uma escada de madeira até o segundo andar, onde o DOI-CODI tinha um conjunto de salas. Acho que foi uma ousadia enorme dos torturadores nos torturarem no próprio Ministério.

Passamos aí a fase dos interrogatórios, reafirmávamos a nossa posição de estudantes e de não comprometer ninguém, qualquer que fosse a acusação que fizessem contra nós. Apesar de durante quase toda a semana sermos levados diariamente do PIC para o Ministério do Exército, este foi até um período de recuperação, posto que não havia a selvageria antecedente. Inclusive, o Major Paulo Horta, encarregado do inquérito, respeitou-nos a integridade física. Mostrava-se muito contrariado com a situação e tentou várias vezes manter comigo uma conversa amistosa, confidenciando-me que tinha um filho da mesma idade que a minha, 22 anos. Na sexta-feira, assinamos um depoimento onde negávamos as acusações que nos faziam. Parecia que a fase mais difícil havia passado... E era apenas o começo.

Na segunda-feira seguinte, separadamente, novamente fomos levados ao Ministério do Exército. Lá chegando, soubemos que o General Antônio Bandeira, comandante da Brigada da PE de Brasília, estava descontente com os resultados do inquérito chefiado pelo Major Paulo Horta, ordenando que o caso fosse reaberto. Isto é, mandara torturar-nos novamente. E novamente uma longa noite de terror se fez presente.

Dela participaram como mandantes o próprio General Bandeira, o Major Andrade Neto, o Coronel Azambuja, o Capitão Magalhães, Capitão Menezes, e especialmente vindo do Rio de Janeiro um torturador chamado Dr. Cláudio, tido como especialista em Ação Popular, organização partidária clandestina, ao qual me acusavam de pertencer.

Durante cinco dias fui submetido novamente a um infernal processo de tortura, dentro do próprio Ministério do Exército. Desta vez não mais o pau-de-arara, o choque elétrico, o afogamento, que estes não haviam dado resultado. O que eles pretendiam era minar a nossa coragem, nossa disposição de resistir, nossa dignidade.

Tudo fizeram: insultavam-nos de pai e mãe desnaturados, que estávamos matando a criança que a Hecilda trazia no ventre, que eu devia pensar na minha mulher, no que ela estava passando. Mostraram-me telegramas de Belém, falsos é claro, segundo os quais o pai de Hecilda estava morto e o meu enfrentando a morte por saberem de nossas prisões.

E durante os cinco dias não houve um único momento de descanso, não deixavam que nós dormíssemos, através de interrogatórios contínuos. Um atrás do outro, em revezamento de hora em hora, mais de uma dezena de torturadores nos inquiriam. Obrigavam-me a ficar horas e horas, me arrastando em círculos, numa pequena sala, quando não obrigado a fazer movimentos com a cabeça de um lado para o outro. Qualquer momento de paralisação era respondido por socos e espancamentos.

Através de um vidro mostravam-me a Hecilda, apanhando nos rosto e pernas, grávida de cinco meses. Nos últimos dois dias de interrogatórios eram feitos com um grande holofote de luz azul, que me cegava. Desmaiei várias vezes, mas sempre que isso acontecia, eles me levantavam com amoníaco. Finalmente na sexta-feira caí e não levantei mais, disseram-me depois que fui levado para uma enfermaria e medicado. Voltei a mim no domingo de tarde, dentro de uma cela do PIC.

O impasse estava criado. Eles já tinham esgotado os meios da tortura que eram possíveis de serem infringidos em Brasília e continuávamos afirmando que éramos estudantes, que repudiávamos qualquer acusação de terroristas, que não iríamos comprometer ninguém.

Durante uma semana a situação permaneceu inalterável. Faziam-nos as mais terríveis ameaças, desde a volta pura e simples para a tortura, até o puro e simples fuzilamento. Numa ocasião foi-nos mostrada uma notícia de nossas mortes que seria levada aos jornais. Pela sua redação éramos dois terroristas atropelados ao tentarmos fugir de um “ponto” de encontro. Todavia uma ameaça era mais constante, a de que seríamos levados para o Rio de Janeiro, onde um verdadeiro Centro Científico de Torturas havia sido montado.

Oito dias depois essa ameaça se consumou. Acordaram-nos cedinho e levaram-nos para o aeroporto militar de Brasília. Lá um beach da FAB estava a nossa disposição, ou melhor, espera. Quando subi no avião não acreditava em viagem para o Rio de Janeiro. Só me ocorriam duas hipóteses: ou era uma simples medida para nos atemorizar, ou finalmente iriam nos assassinar, jogando-nos lá de cima. Somente quando ouvi o rádio do piloto se comunicando com o Galeão é que passei a acreditar que nosso destino era de fato o Rio de Janeiro.

No Rio, a mais trágica experiência. Um grupo de agentes nos recebeu, comunicando-se por rádio que havíamos chegado. Lembro-me como se fosse hoje: “Alô, Alô Botafogo, Alô, Alô Botafogo, a mercadoria já chegou”. Sob forte pressão emocional – com medo de sermos assassinados aumentava cada vez mais -, fomos levados para a P.E. na Barão de Mesquita.

Na Barão de Mesquita conheci o Centro Científico de Torturas de que me falaram em Brasília o Major Andrade Neto. Baseado num processo que visa, sobretudo, desintegrar as faculdades mentais do torturado – é o chamado tratamento psicológico. Tudo é feito de forma a desestruturar a personalidade do preso, submetendo a um processo de verdadeiro enlouquecimento. Depois um Capitão me explicaria cinicamente que lá eles estavam pesquisando os métodos da Santa Inquisição, considerando os métodos da Gestapo ultrapassados.

Disse-me ele que os métodos da Gestapo eram dentro de um palco de guerra, onde os acontecimentos se alteravam muito rapidamente, com necessidade, portanto, das informações serem arrancadas imediatamente. Por isso, os métodos da Gestapo seriam tão violentos, fisicamente, o que provocava muitas mortes. Para eles não. Eles tinham tempo para esperar pelas informações e dentro desse quadro os métodos da Inquisição ainda eram insuperáveis.

Logo à chegada, eu e Hecilda fomos separados. Pela frente o desconhecido, que haveria de ser terrível, porque senão não nos deslocariam de Brasília para o Rio. Conhecendo a fúria da tortura em Brasília eu me interrogava: o que eles ainda poderiam me fazer, que já não tivessem feito? Pensamentos monstruosos me afligiam, eu que já havia lido o que os Nazistas fizeram com as mulheres Judias grávidas durante a 2ª Grande Guerra. A certeza da morte tomava cada vez mais força. Seria difícil sairmos dali vivos.

Na Barão de Mesquita, eles dividiam a tortura em quatro fases. A primeira, dos longos interrogatórios, com luzes de refletores, ameaças, pressões emocionais interrompidas sempre por propostas de melhor tratamento, caso o preso resolvesse colaborar. A segunda, da violência indiscriminada, puramente física, com afogamento, “pau-de-arara”, choques elétricos, espancamento etc. A terceira, a “Câmara do Vietnã” ou “Paraíso”, que atualmente os presos têm chamado de “Geladeira”. E finalmente a quarta, que eu não conheci, que seriam certo “passeio de avião em terra”, que geralmente provocaria a morte do torturado. Segundo a filosofia reinante nesse Centro de Torturas, o que não servisse à repressão não deveria servir a mais ninguém.

Eu fora catalogado entre os presos especiais. Fanático, segundo Brasília. Eu, 22 anos, quase menino, simples estudantes, comprometido, é verdade, com a luta democrática, porém, sem nenhuma importância maior, senão pela força e a disposição de resistir à aquele monstruoso aparelho de repressão.

Na Barão de Mesquita, o DOI-CODI dispensou-me as duas primeiras fases. Tiraram-me as roupas, vestiram-me um pequeno macacão-bermuda e atiraram-me na chamada “Câmara do Vietnã”.

Era um cubículo de mais ou menos 2,00 X 1, 80 metros, forrado por paredes de um material semelhante a Eucatex, totalmente escuro, dentro do qual não se vê nem a palma da mão. Este cubículo está dentro de outro maior, de cimento. Lá dentro intercala-se silêncio total com sons eletrônicos altíssimos, como a de uma sirene fracionada, utilizada pelas rádios-patrulhas.  De instante a instante, silêncio e sons, sons e silêncio. Conversando com psicólogos soube mais tarde que era a utilização de dois estímulos contrários para desordenar mentalmente o indivíduo.

Dentro dessa “Câmara” perde-se completamente a noção do tempo. Em poucas horas não se sabe mais há quanto tempo se está ali dentro, não há ponto de referências. Ao mesmo tempo não se pode dormir. Para evitar a escuta dos sons tentei vedar meus ouvidos com um pedaço do macacão mas eles estavam de fora me vigiando e me tiraram o macacão. Assim, nu, sem comer, sem beber, sem poder dormir ou mesmo fazer qualquer necessidade fisiológica, sob o risco de ser obrigado a engolir qualquer coisa que expelisse, sentindo-me dentro de meu próprio esquife, após três dias – conferi a data depois- comecei a ter acesso de delírios.

Foi à pior experiência que tive, saber-me ficar louco. Ouvia minha mulher me chamando, meu pai, minha mãe, meus irmãos, na longínqua Belém. De repente caia em mim e percebia que estava tendo delírios. Que ninguém poderia me chamar, porque eu estava enterrado vivo.

Quando entrara na “Câmara” tive um pensamento e o registro textualmente passados quase sete anos: “se me trouxeram de Brasília para o Rio pra me colocar aqui dentro, isso eu vou tirar de letra”. Na verdade, três dias, após, perdi completamente o controle. Li com atenção, recentemente, a denúncia de Aldo Arantes que passou também pela mesma “Câmara”, presumo eu pela descrição que dela, ele fez. Diz ele que a “Câmara” procura dar a impressão de que o preso está ficando louco, talvez tenha sido só isso, talvez que eu tenha tido só a impressão.

Mas o que eles poderiam fazer comigo louco? Era o que mais me assustava, fui entrando em pânico, ao pavor. Pavor de ficar louco, pavor de não controlar informações que porventura eu tivesse, pavor de prestar serviço a aquela monstruosa máquina. O meu medo era o que eles poderiam fazer comigo louco. Comecei a tremer e repetir-me: “não vou falar, não vou falar, não vou falar”, indefinidamente, como já no processo de auto-sugestão. E de repente os sons, tentava tapar os ouvidos com os dedos, mas era inútil. Aqueles sons infernais, enlouquecedores, penetravam meu cérebro. Caí em desespero. Parecia não haver saída, o que eles poderiam fazer comigo louco? O medo não era morrer, o medo era ficar louco. O que eles poderiam fazer comigo louco?

Cheguei a aceitar a loucura. Repetia-me para mim no desvario de resistir, “não vou falar, não vou falar, não vou falar”, e de repente os sons. Terríveis. Passei a não controlar minhas reações motoras, o corpo tremia todo. Febre, frio, delírios: a Hecilda me chamava, minha mãe me chamava, meu pai me chamava. De repente caia em mim e ninguém poderia estar me chamando. Eu estava ficando louco. Os sons, o corpo tremendo, a cabeça ardendo.

Perdi o controle, comecei a bater com a cabeça nas paredes, a gritar desesperadamente, “tirem-me daqui, tirem-me daqui”, foi quando me tiraram daquela “Câmara”.

Sentado numa cadeira cheia de fios elétricos que prendiam meus pulsos, cadeira essa que se localizava dentro de um triângulo negro, dentro de uma sala completamente branca, cheia de luzes, dentro do qual o interrogador se colocava numa espécie de púlpito, tudo cientificamente preparado para o mais completo aniquilamento físico e mental do homem.

Depois do depoimento em que aceitei as acusações que me faziam e que assinei sem ao menos ler, levaram-me para uma cela, onde havia uma cama. Lá fiquei em posição fetal durante uma semana sem poder dormir, de olhos abertos, olhando o espaço vazio do quarto, ou da vida.

Passados mais alguns dias, levaram-me de volta para Brasília. A Hecilda não poderia ainda embarcar porque não passava bem, com ameaça de aborto e a viagem poderia complicar ainda mais a sua situação de saúde. Dez dias depois, mais ou menos, permitiram que nos víssemos rapidamente no parlatório. Soube dos maus pedaços pelas quais também ela havia passado. As torturas, todavia, não passariam.

Passei a viver o dia-a-dia do PIC. O PIC não é uma penitenciária comum, em que o preso fica sob o controle da justiça. É um pequeno campo de concentração. Ali quem manda é o Comandante. Justiça é letra morta. Alei, diziam eles, é para ser cumprida, todavia era necessário deixar de cumpri-la por alguns momentos. Chamávamos a isso “a vacancio leges do PIC”.   

Ali conheci, creio, toda a crueldade que o gênero humano pode produzir. Durante dez meses fui testemunha dos mais escabrosos crimes contra mulheres, homens, velhos, rapazolas, que o aparelho de repressão tem cometido no Brasil. Dentre talvez, mais de uma centena de presos políticos que conheci nesses dez meses, não houve nenhum mesmo que não houvesse sido torturado. A tortura era o método mais sistemático empregado no PIC para obter confissões.

Todos eram torturados: simples suspeitos, simpatizantes da causa democrática e, principalmente, militantes das organizações clandestinas. Entre os principais torturadores do PIC estavam o Ten. Burger, o Major Othon do Rego Monteiro, o Sargento Ribeiro, o Sargento Vasconcelos, Arthur, os Cabos Martins, Jamiro, Edson, Torrezan, Nazareno, Calegari, Soldados Ismael e Almir.

A princípio, eles ainda possuíam o pudor de colocar o rádio em volume altíssimo para não ouvirmos os gritos que vinham da “salinha”. Depois não, torturavam as escancaras, notadamente depois que foi comandar o PIC esse Ten. Burger, sob direção do Major Othon do Rego Monteiro, dois fascistas torturadores dos mais perversos. Mesmo os que já tinham passado pela fase do interrogatório e estavam somente esperando julgamento eram provocados e torturados.

Esse Major Othon do Rego Monteiro mandou, certo dia, buscar-me na cela. Disse-me que nós estávamos tendo muitas concessões, que iria apertar nossas vidas para ver quem eram os rebeldes. Essas concessões eram banho de sol, livros, um rádio, jogo de xadrez, enfim, essas coisas pequenas e, sobretudo, linha, agulhas e miçangas, com que fazíamos artesanatos para ajudar as famílias dos operários presos que passavam dificuldades. E assim o fez. Só que para ele até escovas de dente virou concessão. Tirou-nos tudo. Não poderíamos nem cantar, nem ao menos assoviar. Nem a bíblia poderíamos ler. Fui trancafiado numa cela em penumbra, onde fiquei quase três meses isolado.

Em abril, um torturador, que se dizia do CIEx, mas que soube pertencer ao CENIMAR, tentou me matar. Fazia pouco tempo que tínhamos dado o nosso depoimento na Auditoria Militar. Nele havíamos denunciado o processo de torturas a que fôramos submetidos, inclusive com o nome dos torturadores, que eram nossos carcereiros, o que provocou-lhes ainda maior ódio. Foi quando, devido a uma prisão ocorrida em São Paulo, eles verificaram que eu os tinha logrado em muita coisa no Rio, mesmo depois da “Câmara”, sonegando-lhes informações principalmente a respeito de tudo o que se referisse a atividades políticas, estudantis em Belém. Sabia que bastaria dizer que conhecia alguém para que essa pessoa caísse sob suspeitas, podendo até ser presa. O fichário do DOI-CODI é tipicamente fascista e qualquer pessoa de idéias democráticas, liberais ou progressistas é tida como comunista.

Entre os que me foram perguntados, por exemplo, e que estão fichados pelo DOI-CODI, estavam os professores Aldebaro Klautau e Paulo Mendes. O Sérgio Couto, hoje dono de imobiliária. O Deputado Arenista Plínio Coelho Neto e etc... Embora que eu os conhecesse perfeitamente – o Paulo Mendes fora até meu professor, na Escola de Teatro, o Plínio meu colega de Faculdade – um parêntese – ( o Plínio está fichado porque foi ameaçado de um processo de 477 na Faculdade de Direito com mais 8 colegas havia participado de um trote violento na calourada de 1969, que a diretoria da Faculdade de Direito havia considerado danoso ao patrimônio universitário. O DOI-CODI só sabia da ameaça do 477. E se eles estavam ameaçados do 477 deveria ser mais um comunista infiltrado na universidade”. Bem, embora eu os conhecesse perfeitamente, entre outros, neguei, procurando não comprometer ninguém, além dos naturalmente comprometidos pelo material do próprio inquérito. Quando dessa prisão em São Paulo, veio à luz minha participação política no movimento estudantil em 1968 e 1969 aqui em Belém. O pessoal do DOI-CODI ficou, então, furioso.

Juntaram-se aí as duas coisas: nosso depoimento na Auditoria e um certo logro que mesmo naquelas condições difíceis no Rio de Janeiro eu havia lhes aplicado. Foi quando esse torturador tentou me matar, não por simples sentimento de vingança. Ele queria saber o nome de uma pessoa possivelmente paraense que estaria envolvida na Guerrilha do Araguaia. Mas talvez de todas as pessoas que eles declinavam e que por questões de princípios eu negava conhecer, esse fosse justamente o único que eu realmente não conhecia. Como ele sabia que eu não desconhecia os nomes precedentes, e que os negava conhecer, ele não acreditava que não conhecesse o nome da pessoa que ele queria, então, mais uma vez, a tortura desabou. E desta vez tão furiosamente que terminaria pela tentativa dele de me assassinar.

Ameaça de estupro da Hecilda, que havia em fevereiro dado a luz ao nosso filho, choque elétrico, pau-de-arara, afogamento, etc. no auge de sua história, esse torturador, que se gabava de não ter escrúpulos, avanço em mim dizendo que ia me matar e eu estava de joelhos no chão com as mãos amarradas no calcanhar. Ele pegou o cassetete, desses de choque de rua, com mais de um metro e deu-me com ele com toda a sua força, com as duas mãos na cabeça, endereçando a pancada à base do crânio. Minha sorte foi que no exato momento da pancada levantei a cabeça, sendo atingido logo acima da testa, o que “apenas” ocasionou-me a fratura do osso, sem conseqüências de morte. Depois esse torturador foi-me acusar de tê-lo feito perder a paciência.

Fui julgado e condenado numa verdadeira farsa a um ano e oito meses de prisão. A Hecilda foi condenada há um ano. Por mais que eles pretendessem não conseguiram acusar-nos de terroristas. As ações que teriam configurado meus delitos foram meia-dúzia de reuniões vinculadas a Ação Popular Marxista-Leninista do Brasil, uma panfletagem dentro da UNB contra o Governo, uma pichação em Brasília contra a pena de morte e a tentativa de reorganizar a União Nacional dos Estudantes (UNE), na Universidade de Brasília.

Viemos cumprir o resto da pena em Belém, onde ficamos inicialmente na Cadeia Pública de São José. Posteriormente, com a Hecilda já em liberdade, fui transferido para o Batalhão de Guardas da Polícia Militar da Gaspar Viana, onde cumpri a minha pena até o último dia.

Durante três a quatro anos fui perseguido por pesadelos noturnos, mas como diz o verso de Paulo Sérgio Pinheiro “eles me prendem vivo, eu escapo morto”.

Nesse depoimento, porém, faço duas retificações. A primeira – quanto à acusação de homossexualismo ao Sargento Vasconcelos. Embora fosse esse o boato corrente no PIC, disso não posso ter certeza. E depois não quero ofender essa minoria. A segunda – no Ministério do Exército, onde se lê no jornal Resistência “me levaram com amoníaco, leia-se “me levantavam com amoníaco”.

Por acaso, alguém poderia dizer que esses fatos são falsos, mentirosos, deturpados ou truncados, que nada disso não aconteceu? Ou que foi aumentado? Não, isso é apenas uma pequena parte da verdade maior do mundo da tortura no Brasil, canhestramente aqui descrita. Se não foram meus pulsos indelevelmente marcados pelas cordas que me jungiam ao pau-de-arara. Se não foram as marcas e cicatrizes de meu rosto; se não foram as calosidades ósseas que me ficaram nos joelhos; se não foram os testemunhos que iremos apresentar diante deste Tribunal, invoco a mim, os mortos, os desaparecidos, aqueles que foram até o fim, mártires de nosso povo: Pedro Pomar, morto metralhado em 1976 na Lapa; João Masssena Melo, desaparecido em São Paulo; David Capistrano da Costa, desaparecido em março de 1974; José Roman, desaparecido em 1974; Caiuby Alves de Castro, desaparecido no Rio em 1974; Joaquim Pires Cerveira, ex-major, preso em Buenos Aires; Walter de Souza Ribeiro, desaparecido no percurso Rio-São Paulo em abril de 1974; Luiz Inácio Maranhão Filho; Ieda Santos Delgado; Ana Rosa Kucinski Silva; Wilson Silva; Thomás Antônio da Silva Meirelles Neto; Issami Nakamura Okano; Rui Frazão Soares, Jayme Miranda Amorim, Itair José Veloso; Armando Teixeira Frutuoso; Orlando Bonfim Junior; José Montenegro de Lima; Edgar Aquino Duarte; Marcos Antônio Batista; Hiran Lima Pereira; Elza Rocha Miranda; Elson Costa; José Gomes Teixeira; Sérgio Landulfo Furtado; Felix Escobar; Gastoni Beltrão; Paulo Roberto Ribeiro Bastos; Luis Eurico Tejera Lisboa; Isis Dias de Oliveira; Paulo de Tarso Celestino Silva; Rubens Paiva; Joaquim Mariano dos Santos; Hélio Luiz Navarro Magalhães; Stuart Edgard Angel Jones; Carlos Alberto Soares Freitas; Eleni Teles Ferreira Guariba; Walter Ribeiro Novaes; Aluisio Palhano; Paulo Stuart Wright; Humberto Câmara Neto; Honestino Guimarães; João Batista Rita Pereda; Jana Moroni Barroso; Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira; Eduardo Collier Filho; Maurício Grabois; Helenira Rezende; João Carlos Haas Sobrinho; Osvaldão; Humberto Bronca; Dina; Antônio da Dina e tantos outros, todos mortos.

Onde estão? O que fizeram com eles? O povo brasileiro se indigna, a opinião pública internacional clama!

Sr. Juiz,

Srs. Membros do Conselho de Sentença.

Estou por acaso praticando algum crime contra a segurança nacional quando denuncio, aqui, publicamente, diante deste tribunal militar, tão trágicos eventos?

Mais uma vez, repito: aconselharam-me a não fazê-lo. Creio, porém, que não fazê-lo seria insultá-los, compará-los a essa espécie degenerada de bestas humanas. Os senhores hão de honrar as fardas que vestem. O Exército Nacional já se recusou servir de capitão-do-mato, perseguidor de escravos. As Forças Armadas brasileiras já defenderam nos campos de batalha da Itália o estandarte da democracia e da liberdade. O Exército não é um valhacouto de sanguinários assassinos. Aqueles que torturaram , que supliciaram, que mataram, que desonraram suas fardas, só tem um caminho – serem expulsos de nossas Forças Armadas e responsabilizados por seus crimes.

Sr. Juiz,

Srs. Membros do Conselho da Sentença.

E por que tudo isso? Que ventre produziu tão terrível monstro? Que pedra sazonou cardo tão selvagem? Que monstro engendrou noite tão escura?

E a resposta vem límpida e clara como um dia no sertão: era necessário o terror para tentar aniquilar o grito de libertação do povo brasileiro.

Em 1964, as forças do capitalismo internacional, hoje mansamente chamadas de multinacionais, conluiadas com as forças do latifúndio e com a burguesia brasileira entreguista, instrumentalizando-se de nossas Forças Armadas, aplicaram no povo brasileiro um terrível golpe. Depuseram o Presidente Constitucional, Sr. João Goulart, fecharam o Congresso Nacional, cassaram parlamentares livremente eleitos, dissolveram organizações legítimas, interviram nos sindicatos, fecharam associações de classe, perseguiram, prenderam, mataram.

O capital internacional, principalmente o imperialismo norte-americano, se fez dono do nosso Brasil, venderam o nosso país e devemos mais de 40 bilhões de dólares. Tomaram conta de nossas indústrias, de nossos minérios, de nossa terra, de nossa gente.

A Amazônia está sendo irremediavelmente saqueada, entregaram Carajás, a bauxita do Trombetas; e agora querem entregar a nossa madeira. É o insuspeito Brigadeiro Haroldo Veloso, já falecido, que em conclusão da CPI da Vendas de Terras a estrangeiros na Amazônia, após denunciar que mais de 20 milhões de hectares de terras já estão nas mãos de empresas e corporações internacionais, conclui: “Quanto à segurança nacional, é de molde a preocupar o quadro que já se pode montar face aos dados até agora obtidos. Pode-se notar que a concentração maior de terras vendidas a estrangeiros está no Pará e no Território do Amapá, contornando a boca do Rio Amazonas, a tradicional e ainda principal via de acesso a toda a região. Em seguida observa-se claramente uma linha que acompanha o Rio Gurupi, abrangendo os municípios maranhenses de Turiaçu e Carutapera e o paraense Vizeu. Prosseguindo, esta linha entra pelo município paraense de Paragominas, na entrada da rodovia Belém-Brasília, no Estado do Pará, outra via de acesso à região.

A linha continua em seguida pelos municípios goianos de Araguatins, Tocantinópolis e Ponte Alta do Norte, para depois penetrar no Estado da Bahia, correndo pelos municípios de Formoso do Rio Preto, Barreiras, São Desidério, Correntina, Côcos.

Em seguida penetra nos Estados de Goiás e Mato Grosso, nitidamente acompanhando o paralelo 15°.

A impressão tida ao se examinar um mapa é a formação de um cordão isolando a Amazônia do resto do Brasil. Com isto, apenas não se pode asseverar o desejo de uma potência estrangeira em dominar a região, isto porque ao longo desta linha, estão também os pontos de maior interesse econômico. Porém, sempre há coincidência entre o interesse econômico e estratégico, sendo difícil garantir ser um ou o outro, ou mesmo ambos os motivos de serem os locais de maior concentração de compra de terras por estrangeiros.

O fato, porém, apresenta-se como de suma gravidade e deve ser acompanhado com máxima atenção, criando-se, inclusive, legislação especial para resolver o problema” – Este foi o relatório de Haroldo Veloso, em sua conclusão.

E o povo? A média burguesia brasileira não entreguista se debate num endividamento crescente. A classe média se proletariza, sufocada pelo aumento incessante do custo de vida; o lavrador se vê expulso, gerando a figura oprimida do Bóia-Fria, quando simplesmente vaga pelas estradas em busca de trabalho. O operariado vive oprimido pelo arrocho salarial.

Na verdade, o povo brasileiro, principalmente, os trabalhadores, perderam nos últimos 15 anos conquistas que duraram séculos de lutas. O direito de trabalhar 8 horas é um exemplo marcante. Nenhum trabalhador brasileiro atualmente trabalha 8 horas por dia. Para aumentar seu minguado salário tem que fazer muitas horas extras, chegando à jornada diária de serviços comumente a 14 a 16 horas por dia. O trabalhador brasileiro perdeu a estabilidade e, com isso, bastante a sua independência diante dos patrões, através da instituição do FGTS. Perdemos nossos direitos políticos: já não podemos escolher nosso Presidente, nossos governadores, nossos Prefeitos de Capitais.

A situação do povo é desesperadora. Saiamos do centro de Belém, este maravilhoso centro construído no fausto da borracha. Peguemos um ônibus: Sacramenta, Jurunas, Pedreira, Marco. Deixemos as avenidas centrais e veremos o mais desolador quadro de miséria humana. Multidões sem casa, sem saúde, sem transportes, sem escolas, sem comida e sem roupas para usar. Suportando a infelicidade de terem nascidos. O povo das baixadas, oprimido povo, que trabalha dia e noite sem ter os mínimos direitos humanos respeitados.

A situação é tão aterradora que esse mesmo povo corre o risco de invadir esqueletos de casas, sim, esqueletos de casa sem janelas, sem portas, sem tetos, nesses tempos de inverno amazônico, para morar, como aconteceu em Belém, semana passada na Morada dos Ventos, e mesmo daí, de um conjunto que estava no mato, abandonado há mais de três anos, são escorraçados como animais.

Tomemos um ônibus para fora da cidade. Transamazônica, Pa.70, Pa. 150; qualquer estrada serve.Sigamos por um rio – Guamá, Capim, Tapajós, Tocantins, Araguaia, qualquer meio de transporte serve para nos levar a área rural. Lá vamos deparar também com um quadro desolador, levas e levas de trabalhadores sem terra para cultivar nessa imensa Amazônia. E pior – sendo expulsos das terras devolutas, como cães danados, pela presença dos latifundiários, com o apoio decidido de pistoleiros e policiais corruptos e com a conivência de órgãos governamentais.

Venho do Sul do Pará – ali todos os crimes contra o homem do campo são cometidos; próximo de Itupiranga, na Transamazônica, há uma estrada de penetração – a da Morajuba. Ali vivem duas dezenas de agricultores plantando arroz, mandioca, feijão e milho. Todos colonos, assentados pelo próprio INCRA. Alguns até com títulos definitivos, porém, apesar disso, o grileiro ali também entrou tentando expulsá-los da terra, queimando barracos, ateando fogo nos paios de arroz, ameaçando suas vidas. E o que o INCRA fez? Simplesmente tenta tomar de volta os documentos dos colonos para reduzi-los a condição de invasores, para entregar a terra ao grileiro. É apenas um exemplo dentre centenas e isto está acontecendo hoje, agora.

Nossa infância, nossas crianças, vivem em total desamparo. No ano Internacional das Crianças têm 16 milhões de menores abandonados. Pesquisa feita recentemente num orfanato em São Paulo demonstrou que o nível médio de inteligência das crianças ali encontradas, nos Estados Unidos, seria de crianças retardadas. E é o insuspeito Times de setembro de 1978 que denuncia.

O povo, contudo, não é uma besta para se curvar eternamente diante de seus opressores e “A canga fez-se para o boi”. Todo esse sofrimento teria que gerar seu grito de rebeldia, de revolta, de libertação. E a revolta se fez, porém, os poderosos, tremendo de medo, tinham que aplacar a justa revolta desse povo, e o único caminho era o terror, o terror das classes dominantes, o terror da repressão mais violenta e medonha, o terror dos aparelhos de repressão do regime militar de 64, o terror para manter nosso povo desesperado e infeliz, o terror para manter e sustentar a ganância do lucro do capitalismo internacional, do imperialismo, da burguesia brasileira, do latifúndio. Os militares foram apenas o instrumento dessas classes exploradoras. Eis aí, limpidamente, o porquê de tudo que têm me denunciado.

Se me perguntam por que denuncio implacavelmente tais fatos, colocando-me sob o risco de não ser por vós compreendido, eu vos digo: tenho um compromisso com a morte e um maior com a vida. Compromisso com todos aqueles que tombaram assassinados na defesa de nosso povo. Compromisso maior com a vida das grandes massas brasileiras – operários famintos, lavradores sem terra, bóias-frias, mulheres sofridas, criancinhas sem teto.

Sr. Juiz,

Srs. Membros do Conselho de Sentença.

A verdade está lançada. Sou de fato um opositor do Regime Militar instalado no país em 1964, porém isso não se constitui em crime. Ando em boa companhia, inclusive com militares briosos de seus deveres para com a pátria: Gal. Peri Bevilaqua, Gal. Euler Bentes e tantos outros. Ando em companhia de civilistas inatacáveis como Pontes de Miranda, Raymundo Faoro e Paulo Brossard.

Faço parte desse tenaz movimento democrático que por todo o país se levanta, cansado de tanta ditadura. E isso não é crime, são os restos de nossa Constituição que nos garante esse direito.

Nem estou aqui para desafiar nossas Forças Armadas, nem muito menos esse Conselho. Estou aqui para democraticamente expor meus pensamentos e através dele provar que não atentei contra a Segurança Nacional.

Denunciar vigorosamente criminosos não pode ser crime contra a Segurança de nosso país. Como disse em depoimento perante a autoridade policial, em anteriores informações: “a matéria contida no Jornal Resistência tem o objetivo de prestar um serviço às autoridades no sentido de esclarecimento de torturas e de fatos criminosos que ocorreram no Brasil nos últimos quatorze anos na medida em que essas mesmas autoridades estão solicitando que as denúncias sejam levantadas”, a exemplo do Senador Eurico Rezende, líder do governo no próprio Senado Federal.

Inclusive o fato de termos sido levados para o Ministério do Exército para lá sermos torturados. Foi, realmente, uma ousadia dos torturadores, um desrespeito à própria Instituição Militar: com a qual tenho certeza não compactuariam e não compactuaram o grande conjunto de oficiais brasileiros.

No dia 19 de outubro último, o Superior Tribunal Militar aprovou por unanimidade de seus ministros, aquela que no dizer da revista Isto É, seja uma das suas mais importantes manifestações: ”Nós, juízes desta Casa, deste Templo da Justiça, todos nós, indistintamente somos visceralmente contrários às torturas aplicadas aos detidos pela Polícia, como um atentado à própria dignidade do homem...Pouco importam os antecedentes e as suspeitas que possam recair sobre os acusados da prática de crimes, recolhidos à prisão. Na obtenção de suas confissões, não é licito a nenhuma autoridade policial, sendo-lhe mesmo defeso, empregar métodos medievais e cruéis, sejam ou não procedentes as acusações que lhes são imputadas”.

Sr. Juiz,

Srs. Membros do Conselho de Sentença.

Quero respeito aos direitos humanos de nosso povo.

Quero a melhoria das condições de vida dos trabalhadores brasileiros.

Quero a libertação de nosso país das garras do Capitalismo Internacional.

Quero a liberdade de manifestação, expressão e organização de nosso povo.

Quero uma Anistia Ampla, Geral e Irrestrita para todos os demitidos, exilados, banidos, cassados, presos, perseguidos pelo Regime Militar de 1964.

Quero o desmantelamento do aparelho repressivo montado por esse Regime, que tantos crimes e infâmias cometeram e a responsabilização de seus criminosos.

Quero a convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte, soberana e independente, livremente eleita, para que o povo brasileiro possa elaborar novas leis, que lhe possa assegurar prosperidade e felicidade.

Lutas essas que constituem o ideário básico de todos os democratas conseqüentes em nosso país.

Anseio por um regime de paz e liberdade, por isso me bato, pugno e luto.

A isso tenho direito, um direito inalienável.

E se outro for o entendimento desse Conselho, e mandar-nos para as grades por termos tido a hombridade de denunciar os terríveis crimes aqui denunciados, estou certo que pelas mãos de nosso povo, seremos um dia, talvez não tão longe, livres.

Pedindo Justica!

Belém, 06 de janeiro de 1978.

Paulo César Fonteles de Lima

Fonte: http://claudioputy.blogspot.com/2014/03/50-anos-de-golpe-depoimento-de-paulo.html

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