- por José Graziano da Silva*
Na década de 1960, a fome ameaçava o sul da Ásia. Variedades de alto rendimento de trigo e arroz, desenvolvidas sob a liderança de Norman Borlaug, contribuíram para formular uma nova resposta, a chamada Revolução Verde, que ajudou a salvar a vida de centenas de milhões de pessoas. Essas novas variedades impulsionaram a produção de alimentos com o uso intensivo de insumos agrícolas e recursos naturais. Em que pese seu impacto na biodiversidade e no meio ambiente, as novas ferramentas foram importantes para enfrentar a crise alimentar de meio século atrás.
As Nações Unidas declararam 2014 como o Ano Internacional da Agricultura Familiar. Trata-se de um patrimônio de práticas sustentáveis incorporadas à rotina de mais de 500 milhões de pequenas propriedades em todo o mundo. Hoje, a natureza da encruzilhada contra a fome é diferente. Uma população com renda em ascensão e a transição para dietas mais ricas em proteína animal demanda novo salto na produção de alimentos. Ao mesmo tempo, a mudança climática e a pressão sobre os recursos que formam as bases da vida na terra, evidenciam os limites da lógica intensiva em uso de insumos. Segurança alimentar e sustentabilidade não podem mais trilhar caminhos opostos. E não há nada mais próximo de um matrimônio nesse horizonte do que o potencial, ainda não plenamente acionado em escala mundial, da agricultura familiar.
Agricultores familiares - e esse grupo inclui produtores de pequeno e médio porte, camponeses, povos indígenas, comunidades tradicionais, pescadores artesanais e muitos outros - detém boa parte da experiência mundial em sustentabilidade, transmitida de geração em geração e aperfeiçoada a ponto de, muitas vezes, conseguir manter a produção mesmo em terras marginais. Foi com base nesse divisor estratégico que as Nações Unidas declararam 2014 o Ano Internacional da Agricultura Familiar.
Trata-se de resgatar o duplo potencial que ela encerra de erradicação da fome e conservação dos recursos naturais - elementos centrais do futuro sustentável que se impôs à agenda do século XXI. Não estamos falando de um nicho exótico, mas de um patrimônio de práticas sustentáveis incorporadas à rotina de mais de 500 milhões de pequenas propriedades no mundo. Em 93 países, segundo levantamento feito pela FAO, esse universo representa, em média, mais de 80% das propriedades agrícolas.
A preservação dos recursos naturais está enraizada na lógica da agricultura familiar. Salvaguardar a biodiversidade, contribuir para a adoção de dietas mais saudáveis e equilibradas e preservar cultivos tradicionais descartados pela grande escala, constituem no seu caso não propriamente um recurso de marketing, mas um acervo de sobrevivência secular. Os agricultores familiares desempenham um papel crucial nos circuitos locais de produção e comercialização, sendo indispensáveis à diversificação das economias regionais. Em muitos países em desenvolvimento e desenvolvidos, a agricultura familiar costuma ser o principal provedor da dieta popular. No Brasil, por exemplo, ela produz 87% da mandioca, 70% do feijão, cerca de 60% de leite e 50% da carne de porco utilizando apenas 24,3 % das terras agrícolas.
Essa riqueza está marmorizada de paradoxos que desenham a agenda política do seu pleno aproveitamento em nosso tempo: cerca de 70% da miséria e da insegurança alimentar no século XXI concentram-se justamente na área rural dos países em desenvolvimento; a maioria dos produtores de subsistência não possui mais do que a própria força muscular para extrair os frutos da terra; seu acesso a recursos terrestres e hídricos é cada vez mais limitado e frequentemente circunscrito a áreas degradadas.
Esse conjunto torna particularmente vulneráveis aqueles que, estruturalmente, não tem condições de mitigar choques externos, não só de preços, mas também decorrentes da nova regularidade dos eventos climáticos extremos.
Estamos diante de uma escolha. Equacionar esses desafios ou ignorar o potencial de uma singular alavanca produtiva espalhada por todo o planeta? A partir dos anos 70 prevaleceu a segunda hipótese. A agricultura familiar passou a ser encarada como sinônimo de fome e miséria, sendo incluída apenas no alvo das políticas sociais mitigatórias. Ela passou a ser vista, por muitos, como parte do problema da fome e sua participação na produção de alimentos e geração de postos de trabalho foi ignorada. A crise mundial de 2007/2008, com a explosão dos preços e dos circuitos de oferta, evidenciou o erro de se terceirizar aos mercados globais o abastecimento das nações e a segurança alimentar da sociedade. Tornou-se crescente, desde então, a percepção de que a agricultura familiar, antes de ser um problema, constitui um pedaço da solução para desenvolvimento justo e sustentável de nosso tempo. Há requisitos de políticas públicas para que isso se materialize.
As linhas de passagem se assemelham em quase todo o mundo: um fomento que leve em conta os conhecimentos próprios do produtor; insumos de qualidade correspondentes; atenção às mulheres e agricultores jovens; fortalecimento das organizações cooperativas; e acesso à terra, à água, ao crédito fazem parte das políticas que ajudarão essas famílias a alcançar seu potencial. Fazer de 2014 o Ano Internacional da Agricultura Familiar não significa, portanto, dar um colorido burocrático ao calendário. O que se elegeu foi um protagonista. Aos olhos do mundo, cada vez mais, crescer, incluir e preservar a natureza deixam de ser metas opcionais para se transformar em uma convergência imperativa de interesse de toda a humanidade. A agricultura familiar se oferece como um ativo estratégico dessa travessia.
* José Graziano é diretor-geral
da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO).
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