Na abertura da 9ª Mostra Cinema e Direitos Humanos do Hemisfério Sul, assisti em Curitiba, o filme QUE BOM TE VER VIVA, da cineasta Lucia Murat, que aborda a questão da tortura sob o ponto de vista de quem a ela sobreviveu.
O filme começa com a frase do psicanalista judeu Bruno Bettelheim: “A psicanálise explica porque se enlouquece, não porque se sobrevive”, dando a pista, logo no início, de que o roteiro tratará de histórias de superação.
Porém, muito mais que isto, QUE BOM TE VER VIVA aborda, sobretudo, a questão da tortura feminina, e os dilemas corpo x sofrimento, vivenciados sob o prisma do ativismo ideológico de oito ex-presas políticas que foram cruelmente torturadas durante o regime militar.
Os depoimentos e narrativas reais, perfeitamente orquestrados pela direção de Lucia, que os toma em plano 3 x 4, conferindo-lhes ainda maior dramaticidade, são intercalados com a narrativa monóloga e teatral da atriz Irene Ravache, com falas que refletem memórias de uma mulher que também foi torturada e sobreviveu, talvez uma colcha de retalhos da somatória das oito personagens reais, talvez o alter ego da própria Lucia Murat.
Durante o filme, passamos a conhecer as histórias de mulheres que sofreram torturas na ditadura militar pós AI5, bem como a forma encontrada por elas para sobreviverem a tais horrores.
Maria do Carmo Brito, 44 anos, era ex-comandante da Vanguarda Popular Revolucionária. Maria Luiza Garcia Rosa, 37 anos, foi presa e torturada três vezes. Regina Toscano, 40 anos, epilética e grávida, torturada ao ser presa em 1970, perdeu o filho na cadeia. Não se deu por vencida, e posteriormente teve mais três filhos. Roselina Santa Cruz, 43 anos, presa e torturada, sofre com familiares “desaparecidos” durante a ditadura.

Jesse James, ao contrário, não sucumbiu.
Grande homenageada da 9ª Mostra Cinema e Direitos Humanos do Hemisfério Sul , a jornalista e cineasta Lúcia Murat foi agente do MR-8, tendo sido presa e torturada em 1971, quando permaneceu no cárcere por três anos e meio.
A psicanálise e a racionalização estão presentes no filme do início ao fim, e, diz-se que QUE BOM TE VER VIVA é resultado de sete anos de terapia e foi realizado por Lucia para exorcizar os seus demônios.
De revistas íntimas a estupros coletivos, do uso de baratas e lagartixas à degradação de, menstruadas, serem penduradas de ponta-cabeça no pau de arara, as mulheres contam suas histórias reais, de terem sido expostas a fotos de seus ex-companheiros decapitados, apanharem até não mais aguentarem, a ponto de implorarem pela morte, ocasião em que ouviam do torturador: “eu não vou te matar. Eu te mato se eu quiser”, numa tradução da mais absoluta impotência e fragilidade em que se encontravam.
Todas elas têm em comum atribuírem sua sobrevivência a tais horrores em função do poder feminino de dar a luz e gerar uma nova vida. Em seus filhos e filhas, alguns paridos na prisão, encontraram a revanche da continuidade da vida.
A questão do feminino fica muito acentuada e a gente percebe, vendo o filme, que o Brasil avançou um pouco na questão de gênero, de 89 pra cá, quando observa o monólogo de Irene Ravache sempre se dirigindo ao público no masculino, apesar da essência de temática feminina e, mais ainda, quando percebe a extrema importância da maternidade como a grande forma de resgate de vida para aquelas mulheres.
Uma delas parece que nos pede desculpas, quando informa que a gravidez na prisão foi traumática e que, por isto, nunca mais conseguiu engravidar novamente.
Eu, que nunca fui presa ou torturada, e mesmo assim tive um filho só, senti o distanciamento entre o que parecia mais importante para as mulheres daquela época e como vivenciamos de forma diferente nossa condição feminina, uma geração depois, nós, as mulheres da geração seguinte.
Talvez por isso mesmo, porque não tenhamos sentido a necessidade de apalpar a continuidade de nossas vidas, muitas mulheres da geração seguinte, nem quiseram experimentar a maternidade, sem que, contudo, isto tenha representado uma escolha que colocasse em cheque sua condição feminina.
De qualquer forma, fechado o parênteses, esta não é exatamente a principal questão do filme, que trata mesmo é do estar aprisionada e livre, ao mesmo tempo, dentro de um corpo de mulher que sofreu os horrores degradantes da tortura e conseguiu ser mais forte do que tudo que rasgou, feriu, cortou, sangrou, dilacerou, mantendo-se a vida em toda a sua expressão, a despeito dos traumas que marcaram profundamente a alma dessas mulheres, que escolheram sobreviver.
QUE BOM TE VER VIVA é um filme real, sensível, dramático, que emociona e toca profundamente.
Para mim foi difícil segurar o choro durante praticamente o filme todo. Difícil, emocionalmente, sermos colocadas de frente com a inexorável verdade de que o Brasil teve um período tão sombrio, onde os direitos civis foram suprimidos e os torturadores podiam atuar a vontade, sem ninguém que os pudesse impedir.
A catarse do filme está no fato de que, entretanto, no entanto e portanto, é possível sobreviver, pois a liberdade e a vida têm maior apelo à alma humana do que a tortura e a morte.
Vigiemos, pois.