E não é uma metáfora. Os órgãos de comunicação tratam todos nós, Leitores, como uma cambada de deficientes.
Pegamos no último discurso do Presidente russo Vladimir Putin. Agora, dito entre nós: Putin não é um santo, bem longe disso. Mas se faz um discurso bem fundamentado, temos que dizer "sim, o fulano desta vez tem razão". Tentar manipular as suas afirmações só porque não calham bem com as nossas ideias é triste.
O que disse Putin? Bom, Putin fez um discurso bastante comprido, cujos pontos principais são os seguintes:
- há uma ordem internacional que aproveitou-se do fim da guerra fria para remodelar o mundo de acordo com os seus próprios interesses
- esta ordem não respeita conceitos básicos como o direito internacional ou a soberania nacional
- os Estados Unidos apoiam grupos neo-fascistas e terroristas.
Mas eis que aparece o New York Times que titula: "Putin acusa os Estados Unidos de apoiar neo-fascistas e fundamentalistas islâmicos. Tudo correcto, pena que o resto do artigo seja uma tentativa de apresentar as afirmações do Presidente russo como meras alegações sem fundamento.
Escreve o NYT:
[...] "em vez de apoiar a democracia e os Estados soberanos", disse Putin durante uma aparição de três a quatro horas na conferência, "os Estados Unidos apoiam grupos ambíguos que vão dos neo-fascistas declarados até os islâmicos". [...] "Porque apoiam pessoas assim?" perguntou na reunião anual conhecida como Valdai Club, que este ano foi realizada na cidade de Sochi. "Fazem isso porque decidiram utiliza-los como ferramentas para atingir os seus objetivos, mas, em seguida, ficam queimados e sofrem a reação".
Continua o diário:
A Rússia é muitas vezes acusada de ter provocado a crise na Ucrânia anexação da Crimeia, e de prolongar a agonia da Síria ajudando a reprimir as revoltas populares contra o último grande aliado de Moscovo, o Presidente Bashar al-Assad. Alguns analistas têm sugerido que o Presidente Putin tenta recuperar o poder e a influência da União Soviética, ou até mesmo do Império Russo, na tentativa de prolongar o seu próprio governo.
Não vamos aqui lembrar o golpe neo-fascista que derrubou com o apoio da CIA o governo da Ucrânia (procurem qual a ideologia dos grupos apoiados por Washington: Svoboda, Fatherland Party, Right Sector...); nem vamos falar dos "rebeldes" da Síria.
Moscovo tenta manter, e se possível ampliar, a sua área de influência. Sim, então? Qual o espanto?
Os Estados Unidos não fazem ou mesmo? Ou será que até fazem muito mais e pior do que isso?
Esta é a lógica de qualquer potência cuja economia esteja baseada no Capitalismo. Os analistas do NYT deveriam bem conhecer este aspecto: deveriam ficar espantados caso a Rússia (ou a China) não tentassem seguir as pegadas de Washington.
E em vez de desperdiçar tinta com termos como "Império Russo" (que nada tem a ver com a União Soviética pseudo-comunista), o NYT poderia ter explicado que o dito Império, fundado num sistema político de tipo quase feudal, nunca tentou conquistar a hegemonia global; hegemonia alcançada pelo Ocidente com a expansão militar e económica.
Mas a hegemonia ocidental teve e ainda tem um custo enorme: Afeganistão, Iraque, Síria, Ucrânia, outra vez Iraque, este é o rasto de destruição deixado pelos Estados Unidos. Não é a habilidade do Kremlin que desvia as mentes do homens, são as suas próprias acções e a recusa a admitir os fracassos que tornaram a América um lugar olhado com cada vez mais desconfiança.
É triste que os media dos Estados Unidos, em vez de funcionar como um ponto de observação crítico e auto-crítico, prefiram continuar dobrados perante os ditames da elite que fica no poder. Chegamos a um ponto em que um outrora conceituado diário lido globalmente é obrigado a saltos mortais semânticos para justificar uma política que não é defendível.
Deixar ao Presidente Putin a tarefa de indicar o embaraçoso estado da política externa americana é o sinal de que provavelmente foi alcançado o ponto de não retorno. Não há vontade nenhuma de "pôr ordem na casa", os media abdicam da causa de servir o interesse do público e aceitam passivamente o papel de amplificadores.
Poderá dizer-se "Mas sempre foi assim". Não, não é verdade, não foi sempre assim.
Durante a Guerra Fria o choque era entre duas potências que faziam da retórica a principal arma (sendo que aquela de Moscovo era muitas vezes a mais hilariante). As críticas do Leste eram contra os males do Capitalismo, isso enquanto a Pravda escondia uma simples verdade: também a União Soviética era um País capitalista, só um pouco diferente nos modos. Até as criticas contras eventuais operações dos EUA no estrangeiro não fugiam a estas regras e a retórica de ambos os lados dominava a cena.
Agora é diferente: as acusações de Putin são sólidas, não escondem atrás da retórica as suas próprias fraquezas mas apontam problemas reais e concretos, para os quais é simples encontrar evidências. E o desconforto de Washington é grande: porque o maior inimigo dos Estados Unidos, nesta altura, são os mesmos Estados Unidos.
Ipse dixit.
Fontes: The New York Times, Ria Novosti
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