Uma educadora da RECID (Rede de Educação Cidadã), Sandra Sangaletti, de Santa Catarina, ao ler meu artigo MESA, COPO, PRATO, SAL, TALHER, fez um comentário: “A Rede é parte constitutiva da educadora que sou. Foi bom ler teu texto e relembrar de tudo, mas me sinto um tanto confusa com relação ao que fazer. Tínhamos a alegria de anunciar o novo. Então, nossa luta era feita com um sorriso no rosto.”
Outra educadora da RECID, Raimundinha Pedraça, de Rondônia, comentou: “Tempos de resistência, muito desafiadora. Parece que tudo que fazemos não repercute. Temos muito a mobilizar e organizar.”
Minha resposta/comentário: “Paulo Freire foi perseguido, preso, exilado por muitos anos, louco de saudades do Brasil. Voltou, não descansou nunca, foi ser Secretário municipal de Educação de São Paulo e acabou Patrono da Educação Brasileira. Isto é, a história não para. 150 anos depois da publicação de O Capital, intelectuais, economistas, até de direita, Academia e, principalmente, jovens estão voltando a ler Marx para entender o capitalismo de hoje. Estamos vivos! Os ratos estão abandonando vergonhosamente o navio da usurpação, da vergonha, do golpe e tudo mais., Nós continuamos onde sempre estivemos. Continuaremos. A História voltará a sorrir. A luta continua!”
Os tempos são difíceis? Os tempos são difíceis. Mais uma vez.
Aposentado militante, voltei a revirar meus guardados de décadas atrás. Descobri um poema com o título OFERENDA, escrito nos anos 1970, e que os esbirros e espiões do DOPS/RS, SNI e Polícia Federal da ditadura militar tiveram a ‘gentileza’ de anexar/preservar na íntegra. Diz o relatório/grampo: “AGO 77 INFO – O Boletim de Comunicação da Família Franciscana Sul-Riograndense, órgão de divulgação da Província Franciscana, com sede em Porto Alegre RS, publicou a poesia intitulada ‘OFERENDA’, em estilo de oração e de caráter subversivo, de autoria do nominado, SELVINO HECK, da linha ‘progressista’ do clero católico. O autor exprime em versos a sua opinião sobre o lavrador brasileiro, colocando-o na situação de escravo. Ao final da poesia, porém, apresenta ponto de vista sobre a situação social do Brasil, afirmando: ‘o povo todo aprisionado, sem casa e sem esperança’.”
O poema é esse, de um possível livro nunca publicado, CANTO GERAL DO LAVRADOR.
“OFERENDA/Estou te apresentando,/Senhor,/os problemas do teu povo./Olha o lavrador/que vai todas as manhãs/para a plantação./Contempla-lhe o rosto,/os olhos cansados,/a voz muda,/o bater pesado do coração./Estou te apresentando, /Senhor,/os pedaços do teu povo,/as costas vergadas,/os ombros caídos,/duras mãos/e duros pés,/cercando o arado/e a canga dos bois./E não é tudo./O sol revela outras dores,/mais compridas/e fundas./O medo ronda/Cada dia./Ninguém sabe/se sobrevive./A luta pesa/sobre o corpo/e mal se ousa/abrir a boca/e levantar a voz./Te apresento,/Senhor,/a dor mais viva,/o sangue correndo/lentamente,/o grito morto/chorando escravo,/o povo todo aprisionado,/sem casa e sem esperança.”
O poema, escrito há mais de 40 anos, foi considerado subversivo pela ditadura militar. O tempo passou, a ditadura acabou, a democracia voltou a sorrir depois de muita luta e mobilização popular, embora as Diretas-Já só tenham acontecido em 1989. O povo trabalhador, aos poucos, voltou a ser sujeito de sua história, teve direitos respeitados, melhorou de vida, o Brasil passou a ser reconhecido no mundo por sua soberania, por seu combate à fome e à miséria – saiu do Mapa da Fome, segundo declaração da ONU em 2014 -. Mas as elites brasileiras escravocratas, que um dia resistiram à abolição da escravatura, como se isso fosse o fim do Brasil, continuam escravocratas – a abolição, na prática, esta semana, da CLT de Getúlio significa isso – continuam contra os direitos dos pobres e trabalhadores, continuam pisoteando a democracia. A velha luta de classes não acabou, muito pelo contrário.
Mas sempre há o tempo, sempre há a História, com H maiúsculo. Assim como não impediram o fim da escravidão, assim como, depois de impedirem as Reformas de Base nos anos 1960, deram um golpe militar, declarando subversivo um simples poema (assim como muitos livros, filmes e obras de arte), mas não resistiram à redemocratização e foi aprovada uma Constituição Cidadã (que hoje está sendo rasgada por boa parte dos mesmos que a fizeram e aprovaram, inclusive o presidente golpista atual), não puderam acabar com as forças populares e suas organizações – aí estão o MST, a CUT, as Centrais Sindicais, os movimentos populares, o PT e os partidos de esquerda (o PCB ficou ilegal a maior parte de sua história) -, o povo elegeu governos populares com Orçamento Participativo e elegeu governos como os de Lula e Dilma. Não será agora, em 2017, que serão vitoriosos definitivamente.
Marx está vivo. Getúlio, Jango, Brizola, Prestes, Olga Benário e outros tantos foram resgatados pela História. Paulo Freire voltou. Lula continuará sendo o melhor presidente da História do Brasil, queiram eles ou não. A verdade, a justiça, a voz da democracia, o grito do povo em algum momento voltarão a sorrir. O latifúndio, a mídia golpista, Rede Globo à frente, o grande capital entreguista não dominarão eternamente a História.
A luta continua, apesar deles e contra eles, e a favor dos lascados, dos oprimidos, dos pobres e dos trabalhadores!
“Faço a oferenda, de novo,/ Senhor./ Te apresento, mais uma vez/ os problemas do meu povo./ Rezo./ E luto.”
Selvino Heck
Deputado estadual constituinte do Rio Grande do Sul (1987-1990)
Em catorze de julho de dois mil e dezessete
