"Um dia escrevi que tudo é autobiografia; que a vida de cada um de nós, estamos contando enquanto fazemos e dizemos; nos gestos, na maneira como andamos e olhamos, como viramos a cabeça ou apanhamos um objeto no chão. Queria eu dizer, então, que vivendo rodeado de sinais, nós próprios somos um sistema de sinais. Seja como for, que os leitores se tranquilizem: este Narciso que hoje se contempla na água, desfará, amanhã, com sua própria mão, a imagem que o contempla". - José Saramago
Em Azinhaga, Portugal, eternizou-se o encontro amoroso etre duas esquinas que se cruzam, cujas ruas se chamam José Saramago e Pilar Del Río.
Difícil dizer qual dos dois é mais lindo, José Saramago ou sua companheira e fiel escudeira, a jornalista espanhola Pilar Del Río.
Saramago nasceu em Azinhaga, de uma humilde família portuguesa, e somente se tornou escritor após os 60 anos de idade. Tinha 27 anos a mais que o amor de sua vida, Pilar, com quem conviveu por mais de 20 anos.
Por conta de ter ido morar na Espanha após ter recebido Nobel de Literatura, em 1998, Portugal manteve com ele uma relação de indiferença, e até hostil, por muitos anos, o que, felizmente, foi revertido ainda antes da morte de Saramago.
Miguel Gonçalves Mendes dirige o filme a partir da coleta de 240 horas de material sobre o cotidiano de José e Pilar que, portanto, são os próprios atores de seus personagens reais.
O filme se desenvolve em torno da criação e lançamento do livro "A Viagem do Elefante", de Saramago.
Os quatro anos de filmagens resultaram em um filme inicial com seis horas de duração, das quais Saramago pode assistir a uma versão com três horas, antes de morrer.
A edição do filme durou mais de um ano e meio.
Para convencer o casal a filmar, o diretor Miguel Gonçalves Mendes levou seis meses.
O resultado é um filme surpreendente onde somos levados ao dinâmico e cultural universo de Saramago e Pilar, nos deparando com um relacionamento belíssimo de dois seres que fazem jus ao adjetivo "humanos".
Saramago, o carismático comunista ateu que quando o vestiam com roupa de marca, pedia que arrancassem com a tesoura a etiqueta da Armani, nos presenteia com passagens belíssimas de sua vida, já perto dos 84 anos de idade, sempre ativa e produtiva.
Destaque para suas declarações sobre religião, após a leitura de um trecho de seu livro "O Evangelho Segundo Jesus Cristo", onde Jesus clama, sobre seu pai "Homens, perdoai-lhe, por que ele não sabe o que faz":
É uma aldrabice, pá, uma aldrabice completa... Eu fui uma ou duas vezes à missa, quando tinha 6 anos, mas eu não... Enfim, aquilo não me convenceu nada, pá. E fui eu quem disse a minha mãe: 'não, eu não vou a isso...' E não fui... E Nunca mais... E não tive nenhuma crise religiosa, e não tenho medo da morte, não tenho medo inferno, não tenho medo, digamos, do castigo eterno pelos pecados... Que pecados? Pecados? O que é isso, o pecado, pá? Quem é que inventou o pecado? A partir do momento em que se inventa o pecado, o inventor passa a dispor de um instrumento de domínio sobre o outro, tremendo! E foi o que a igreja fez, e já não faz tanto, porque, coitados, já não têm nem metade do poder que tinham, é mais uma farsa, mais uma farsa trágica... Deus... Onde está? Antigamente, dizia-se: 'está no céu'. Mas, o céu não existe! Não há céu! Não há céu! O que é isso, pá, céu? Há o espaço. Há 13 mil milhões de anos-luz. Imagina, pá...
Os limites do universo se encontram há 13 mil e 700 milhões de anos-luz... Anos-luz! Onde está deus? Quem quiser crer, creia e acabou-se! Eu digo em alto e bom som, que não, enfim, para mim, não. E repara que com 83 anos já seria uma boa altura para começar a pensar no futuro, quer dizer, uma pessoa, durante a vida, pode fazer umas quantas tonteiras, dizer umas quantas barbaridades a respeito do senhor deus, mas quando chega aos 83 tem de, deveria começara a ter um bocadinho de cuidado com o que diz. Mas isso não muda nada a realidade. A realidade continua a ser igual à de sempre: nascer, viver e morrer, e acabou. Mais nada. Que isso não aconteça. Espero morrer lúcido e de olhos abertos. Pelo menos gostaria, que fosse assim.
A força e o caráter de Pilar, se refletem bem no trecho do filme em que ela declara:
A mim o que me parece é que a razão tem que prevalecer sobre a vontade. Isso parece o que há de mais frio e o que há de mais forte que se pode dizer, mas creio que somos racionais, e temos a obrigação de ser racionais e de não nos deixar levar, jamais, pelo instinto. Ou seja, recuso-me, recuso-me a chorar e a ficar insatisfeita e deprimida. “Ah, mas é que a depressão existe...” Sim, pois sim, mas tomamos uns comprimidos e vamos trabalhar, ponto! Sou a favor dos fármacos. Ouve, uma vida inteira sofrendo com dores quando há a Medicina, que nos ajuda, e vêm agora uns quantos gurus dizer: “Não... É que fazem mal!” Não, o que faz mal é passar mal! É preciso desdramatizar! Sobretudo nós, os privilegiados... Eu não posso estar e não posso me dar ao luxo de estar desesperada, nem sem esperança, nem triste, porque tenho tudo, e mais, tenho, inclusive, a força para combater, o que é o maior privilégio!
Pilar, que era uma grande feminista e libertária, quando assumiu a presidência da Fundação Saramago, respondeu a um jornalista português, que a entrevistava iniciando por perguntar como era ser presidente de uma fundação: “Presidenta! Faço questão que comeces a entrevista dizendo que só os néscios me chamam presidente. A palavra não existia porque não existia a função. Existe a função, existe a palavra que denomina a função. Sou presidenta e quem me chamar de presidente é néscio!”
Ao ser perguntada por uma amiga porque seu feminismo era tão radical, Pilar não titubeia: “Meu feminismo é extremamente radical, porque tenho que compensar a falta de feminismo que têm algumas.”
O filme traz, ainda, a emoção de Saramago ao assistir o filme do Fernando Meirelles sobre sua obra “Ensaio sobre a cegueira” e as declarações de amor que fez publicamente à companheira, quando esteve no Brasil para o lançamento de seu livro “A Viagem do Elefante”: “Se eu tivesse morrido antes de conhecer a Pilar, teria morrido muito mais velho do que eu sou.”
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