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Motta

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Segundo Clichê

February 27, 2017 15:48 , von Blogoosfero - | 1 person following this article.

Como Graciliano Ramos descobriu o que é a Justiça

July 1, 2017 11:48, von segundo clichê


O escritor brasileiro de quem mais gosto é Graciliano Ramos. Devo ter lido tudo que publicou. "São Bernardo", "Angústia", "Insônia", "infância", "Linhas Tortas", "Memórias do Cárcere", "Vidas Secas"... 

Que obra maravilhosa!

E que figura humana era o "Velho Graça", um homem de princípios, severo, com uma força moral arrebatadora, e que, em sua vida, foi vítima de uma grande injustiça - a sua prisão, sem motivos que a justificassem - e de uma infância com episódios de crueldade sádica por parte do pai, um homem bruto e violento.

Em seu conto "Um Cinturão", de seu livro de memórias "Infância", Graciliano revela como foi o seu primeiro contato com a Justiça.

A sua leitura vale como um manual sobre como, um século depois do ocorrido, as relações sociais no Brasil pouco se alteraram.

No conto, o menino Graciliano sofre injustiças por parte de sua mãe, que o castiga aparentemente sem motivo, e de seu pai, que o pune por julgá-lo culpado pelo sumiço do tal cinturão - sem dar ao garoto sequer a chance de se defender:

"Os golpes que recebi antes do caso do cinturão, puramente físicos, desapareciam quando findava a dor. Certa vez minha mãe surrou-me com uma corda nodosa que me pintou as costas de manchas sangrentas. Moído, virando a cabeça com dificuldade, eu distinguia nas costelas grandes lanhos vermelhos. Deitaram-me, enrolaram-me em panos molhados com água de sal – e houve uma discussão na família. Minha avó, que nos visitava, condenou o procedimento da filha e esta afligiu-se. Irritada, ferira-me à toa, sem querer. Não guardei ódio a minha mãe: o culpado era o nó. Se não fosse ele, a flagelação me haveria causado menor estrago. E estaria esquecida. A história do cinturão, que veio pouco depois, avivou-a."

(...)

"Havia uma neblina, e não percebi direito os movimentos de meu pai. Não o vi aproximar-se do torno e pegar o chicote. A mão cabeluda prendeu-me, arrastou-me para o meio da sala, a folha de couro fustigou-me as costas. Uivos, alarido inútil, estertor. Já então eu devia saber que gogos e adulações exasperavam o algoz. Nenhum socorro. José Baía, meu amigo, era um pobre-diabo."

Qualquer semelhança com o que ocorre no Brasil de hoje, com juízes fazendo papel de promotores e investigadores, distribuindo uma justiça preconcebida, preconceituosa e visivelmente dirigida contra inimigos da oligarquia, não é mera coincidência - é simplesmente a parte mais visível do que ocorre, sempre ocorreu, e provavelmente sempre vai ocorrer, neste triste país de tantas e tão iníquas desigualdades.

Para quem não conhece, aí vai o conto "Um Cinturão" na íntegra, um texto formidável do mestre Graciliano:


Um Cinturão

As minhas primeiras relações com a justiça foram dolorosas e deixaram-me funda impressão. Eu devia ter quatro ou cinco anos, por aí, e figurei na qualidade de réu. Certamente já me haviam feito representar esse papel, mas ninguém me dera a entender que se tratava de julgamento. Batiam-me porque podiam bater-me, e isto era natural.

Os golpes que recebi antes do caso do cinturão, puramente físicos, desapareciam quando findava a dor. Certa vez minha mãe surrou-me com uma corda nodosa que me pintou as costas de manchas sangrentas. Moído, virando a cabeça com dificuldade, eu distinguia nas costelas grandes lanhos vermelhos. Deitaram-me, enrolaram-me em panos molhados com água de sal – e houve uma discussão na família. Minha avó, que nos visitava, condenou o procedimento da filha e esta afligiu-se. Irritada, ferira-me à toa, sem querer. Não guardei ódio a minha mãe: o culpado era o nó. Se não fosse ele, a flagelação me haveria causado menor estrago. E estaria esquecida. A história do cinturão, que veio pouco depois, avivou-a.

Meu pai dormia na rede, armada na sala enorme. Tudo é nebuloso. Paredes extraordinariamente afastadas, rede infinita, os armadores longe, e meu pai acordando, levantando-se de mau humor, batendo com os chinelos no chão, a cara enferrujada. Naturalmente não me lembro da ferrugem, das rugas, da voz áspera, do tempo que ele consumiu rosnando uma exigência. Sei que estava bastante zangado, e isto me trouxe a covardia habitual. Desejei vê-lo dirigir-se a minha mãe e a José Baía, pessoas grandes, que não levavam pancada. Tentei ansiosamente fixar-me nessa esperança frágil. A força de meu pai encontraria resistência e gastar-se-ia em palavras.

Débil e ignorante, incapaz de conversa ou defesa, fui encolher-me num canto, para lá dos caixões verdes. Se o pavor não me segurasse, tentaria escapulir-me: pela porta da frente chegaria ao açude, pela do corredor acharia o pé do turco. Devo ter pensado nisso, imóvel, atrás dos caixões. Só queria que minha mãe, sinhá Leopoldina, Amaro e José Baía surgissem de repente, me livrassem daquele perigo.

Ninguém veio, meu pai me descobriu acocorado e sem fôlego, colado ao muro, e arrancou-me dali violentamente, reclamando um cinturão. Onde estava o cinturão? Eu não sabia, mas era difícil explicar-me: atrapalhava-me, gaguejava, embrutecido, sem atinar com o motivo da raiva. Os modos brutais, coléricos, atavam-me; os sons duros morriam, desprovidos de significação.

Não consigo reproduzir toda a cena. Juntando vagas lembranças dela a fatos que se deram depois, imagino os berros de meu pai, a zanga terrível, a minha tremura infeliz. Provavelmente fui sacudido. O assombro gelava-me o sangue, escancarava-me os olhos.

Onde estava o cinturão? Impossível responder. Ainda que tivesse escondido o infame objeto, emudeceria, tão apavorado me achava. Situações deste gênero constituíram as maiores torturas da minha infância, e as conseqüências delas me acompanharam.

O homem não me perguntava se eu tinha guardado a miserável correia: ordenava que a entregasse imediatamente. Os seus gritos me entravam na cabeça, nunca ninguém se esgoelou de semelhante maneira.

Onde estava o cinturão? Hoje não posso ouvir uma pessoa falar alto. O coração bate-me forte, desanima, como se fosse parar, a voz emperra, a vista escurece, uma cólera doida agita coisas adormecidas cá dentro. A horrível sensação de que me furam os tímpanos com pontas de ferro.

Onde estava o cinturão? A pergunta repisada ficou-me na lembrança: parece que foi pregada a martelo.

A fúria louca ia aumentar, causar-me sério desgosto. Conservar-me-ia ali desmaiado, encolhido, movendo os dedos frios, os beiços trêmulos e silenciosos. Se o moleque José ou um cachorro entrasse na sala, talvez as pancadas se transferissem. O moleque e os cachorros eram inocentes, mas não se tratava disto. Responsabilizando qualquer deles, meu pai me esqueceria, deixar-me-ia fugir, esconder-me na beira do açude ou no quintal. Minha mãe, José Baía, Amaro, sinhá Leopoldina, o moleque e os cachorros da fazenda abandonaram-me. Aperto na garganta, a casa a girar, o meu corpo a cair lento, voando, abelhas de todos os cortiços enchendo-me os ouvidos – e, nesse zunzum, a pergunta medonha. Náusea, sono. Onde estava o cinturão? Dormir muito, atrás de caixões, livre do martírio.

Havia uma neblina, e não percebi direito os movimentos de meu pai. Não o vi aproximar-se do torno e pegar o chicote. A mão cabeluda prendeu-me, arrastou-me para o meio da sala, a folha de couro fustigou-me as costas. Uivos, alarido inútil, estertor. Já então eu devia saber que gogos e adulações exasperavam o algoz. Nenhum socorro. José Baía, meu amigo, era um pobre-diabo.

Achava-me num deserto. A casa escura, triste; as pessoas tristes. Penso com horror nesse ermo, recordo-me de cemitérios e de ruínas mal-assombradas. Cerravam-se as portas e as janelas, do teto negro pendiam teias de aranha. Nos quartos lúgubres minha irmãzinha engatinhava, começava a aprendizagem dolorosa.

Junto de mim, um homem furioso, segurando-me um braço, açoitando-me. Talvez as vergastadas não fossem muito fortes: comparadas ao que senti depois, quando me ensinaram a carta de A B C, valiam pouco. Certamente o meu choro, os saltos, as tentativas para rodopiar na sala como carrapeta eram menos um sinal de dor que a explosão do medo reprimido. Estivera sem bulir, quase sem respirar. Agora esvaziava os pulmões, movia-me num desespero.

O suplício durou bastante, mas, por muito prolongado que tenha sido, não igualava a mortificação da fase preparatória: o olho duro a magnetizar-me, os gestos ameaçadores, a voz rouca a mastigar uma interrogação incompreensível.

Solto, fui enroscar-me perto dos caixões, coçar as pisaduras, engolir soluços, gemer baixinho e embalar-me com os gemidos. Antes de adormecer, cansado, vi meu pai dirigir-se à rede, afastar as varandas, sentar-se e logo se levantar, agarrando uma tira de sola, o maldito cinturão, a que desprendera a fivela quando se deitara. Resmungou e entrou a passear agitado. Tive a impressão de que ia falar-me: baixou a cabeça, a cara enrugada serenou, os olhos esmoreceram, procuraram o refúgio onde me abatia, aniquilado.

Pareceu-me que a figura imponente minguava – e a minha desgraça diminuiu. Se meu pai se tivesse chegado a mim, eu o teria recebido sem o arrepio que a presença dele sempre me deu. Não se aproximou: conservou-se longe, rondando, inquieto. Depois se afastou.

Sozinho, vi-o de novo cruel e forte, soprando, espumando. E ali permaneci, miúdo, insignificante, tão insignificante e miúdo como as aranhas que trabalhavam na telha negra.


Foi esse o primeiro contato que tive com a justiça.



Endividamento de empresas não para de crescer

June 30, 2017 17:20, von segundo clichê


O número de empresas com contas em atraso e registradas nos cadastros de devedores cresceu 3,35% em maio na comparação com o mesmo mês do ano passado. Na passagem de abril para maio de 2017, houve um recuo de -0,16%. Os dados foram calculados pelo Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil) e pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL).


“Esse abrandamento do aumento do número de empresas negativadas, observado nos últimos meses, ocorre depois de um período de forte crescimento da inadimplência. Mesmo com o país ainda em crise, isso tem acontecido por conta da maior restrição ao crédito e menor propensão a investir que trazem redução do endividamento”, explica o presidente da CNDL, Honório Pinheiro. “Para os próximos meses, espera-se que a atividade econômica se mantenha fraca e os empresários permaneçam cautelosos devido ao cenário de grande incerteza política, o que deve manter o crescimento da inadimplência das empresas em patamares discretos frente à série histórica como um todo.”

Outro indicador também medido pelo SPC Brasil e pela CNDL é o de dívidas em atraso. Neste caso, o crescimento foi menor, com uma alta de 1,04% na comparação anual. Seguindo a mesma tendência que o número de empresas devedoras, o resultado de maio permanece em nível baixo em comparação à média histórica, representando a menor variação de toda a série do indicador. Na comparação mensal, na passagem de abril para maio, a variação negativa foi de -0,22%.

Os dados regionais mostram que o Nordeste segue liderando o crescimento da inadimplência das empresas. Na comparação de maio com o mesmo mês do ano anterior, o número de pessoas jurídicas negativadas na região cresceu 4,53%, a maior alta entre as regiões. Em seguida aparecem, na ordem, as regiões Norte, que registrou avanço de 3,67% na mesma base de comparação; Sudeste (3,40%), Centro-oeste (3,01%) e Sul (0,90%).

Entre os segmentos devedores, as altas mais expressivas ficaram com os ramos de serviços (6,31%) e agricultura (5,23%), seguidos pela indústria (2,72%) e empresas que atuam no setor de comércio (1,90%).

Já o setor credor que apresentou o maior crescimento das dívidas de pessoas jurídicas - ou seja, para quem as empresas estão devendo - são as empresas do ramo do comércio (6,17%), seguidas das indústrias (5,50%). Já o segmento de serviços, que engloba bancos e financeiras, apresentou a primeira queda desde o início da série histórica, ainda que discreta (-0,44%). O segmento de agricultura registrou um forte recuo, de -16,16%.



Recuperação do varejo ainda está distante

June 30, 2017 17:11, von segundo clichê


Se a crise política se arrasta interminavelmente, a econômica, apesar da conversa oficial, se aprofunda. Até mesmo fiadores do golpe, como as entidades empresariais, estão prestes a jogar a toalha. O presidente do SPC Brasil (Serviço de Proteção ao Crédito), Roque Pellizzaro Junior, é um deles: a recuperação do varejo depende de sinais mais consistentes de melhora da empregabilidade e aumento da renda, afirmou. 


Dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostram que o número de desempregados cresceu 2,1 pontos percentuais em um ano, passando de 11,2% para 13,3% no trimestre entre março e maio. Isso representa um contingente de 13,8 milhões de brasileiros desocupados, o pior número para o trimestre avaliado desde 2012.

Para Pellizzaro Junior, a manutenção da massa de desempregados em um nível elevado reforça a tese de que a recuperação da economia e do varejo será lenta e gradual, podendo sofrer solavancos em um cenário de instabilidade política. 

“A retomada do crescimento, quando vier, ainda demandará tempo para traduzir-se em aumento do emprego e da renda, que são os fatores que mais impactam no consumo. O fator emprego é o último componente da economia a apresentar melhora em um processo de recuperação. Isso quer dizer que, mesmo que a economia comece a se desenhar uma recuperação mais sólida, haverá ainda uma defasagem até que o emprego comece a reagir”, explica Pellizzaro Junior.

Com um grande contingente de trabalhadores em busca de recolocação profissional, a tendência, segundo ele, é de que na retomada das contratações, os salários oferecidos sejam mais baixos do que o nível que prevalecia antes da crise. “Outro fator que sai prejudicado é a produtividade do brasileiro. Afastados do mercado de trabalhado por um longo período, há uma natural perda de qualificação de mão de obra”, diz. 



As férias no Brasil Novo

June 30, 2017 13:51, von segundo clichê


Lá pelo fim dos anos 60, começo dos 70, do século passado, na modorrenta Jundiaí, cidade no meio do caminho entre São Paulo e Campinas, eu e minha irmã estudávamos na melhor escola particular de inglês que existia por lá, o Yázigi. 

Certo dia fomos informados que, nas férias de julho, a escola pretendia levar uma turma para passar duas semanas nos Estados Unidos, acho que em Miami, já naquela época sonho de consumo da classe média brasileira. 

Oferecia condições de pagamento facilitadas, era uma oportunidade e tanto para nós dois fazermos uma viagem da qual, certamente, nos lembraríamos pelo resto de nossas vidas.

Mas o capitão Accioly e a dona Vilma, nossos pais, frustraram os planos de passar férias nos States - uma viagem dessas estava além do orçamento da família.

Em troca, para compensar a nossa frustração, sugeriram que fôssemos visitar nossos parentes em Maceió.


Essa sim, foi uma viagem inesquecível, dois dias de ida, dois de volta, no melhor ônibus leito da época, com ar-condicionado, poltronas de veludo, um luxo só. 

Passamos um mês maravilhoso nas casas de nossa avó paterna e de um de nossos tios, que nos receberam com o todo o carinho e apreço que marcam a alma do nordestino.

Os Estados Unidos ficaram para trás, esquecidos por nós.

Grande parte dos brasileiros, porém, dorme, acorda e sonha todos os dias com esse grande país do hemisfério norte, superpotência incontestável, arrebatadora de mentes e corações de todos os viventes deste miserável planeta.

No ano passado, auge das manifestações contra a presidenta Dilma, várias fotos de pobres meninas ricas, segurando cartazes culpando os petralhas por não poderem ir mais para o mundo de fantasia criado pela The Walt Disney Company, circularam freneticamente em redes sociais e portais da internet.

Pouco mais de um ano de Brasil Novo foi o suficiente para perceber que o dólar continua ali na faixa dos R$ 3, os pacotes para visitar o paraíso não baixaram de preço, e, pesadelo dos pesadelos, nem passaportes mais estão sendo emitidos para os brasileiros que ainda têm reservas que permitam fazer viagens desse tipo.

A Polícia Federal, que tanto ajudou a derrubar o governo trabalhista, avisa que está sem dinheiro para providenciar o documento - é bem provável que tenha gastado tudo nessa perseguição sem fim ao ex-presidente Lula...

Esse, certamente, é um problema pequeno em relação a tantos outros criados para o futuro do país por esse pessoal que se apoderou do Palácio do Planalto. 

Mas não deixa de ser emblemático, já que atinge uma parcela da sociedade que apoiou entusiasticamente o golpe.

Parece pouco impedir uma viagem aos Estados Unidos.

Não tenho certeza, porém, que esse pessoal vá se contentar em passar as férias na linda Maceió ou em outro lugar maravilhoso qualquer deste Brasil que tanto odeiam. (Carlos Motta)



Um país feliz com a paz dos cemitérios

June 29, 2017 16:13, von segundo clichê


Em 1964, quando o golpe militar acabou com a democracia no Brasil, eu tinha 10 anos e vivia em Jundiaí, hoje um município com mais de 400 mil habitantes, a 60 quilômetros da capital paulista. 

Na época, Jundiaí era uma típica cidade de porte médio do interior, tranquila, conservadora, sem nenhum grande atrativo, a não ser um parque onde se realizavam as "festas da uva", e um ginásio de esportes de formato arredondado, que todos conheciam como "Bolão".

A sociedade jundiaiense daquele tempo obedecia a uma rígida hierarquia: havia os milionários, poucos, uma ampla classe média, que reunia desde os remediados, que moravam "de aluguel" ou em pequenas casas mais afastadas do Centro, até aqueles que, aos nossos olhos, eram ricos - ou quase -, e os pobres, a maioria.


Minha família pertencia à classe média-média - meu pai era capitão reformado do Exército, e minha mãe trabalhou muitos anos como supervisora de vendas de empresas de produtos de beleza.

Morávamos num sobrado de 140 metros quadrados numa ruazinha sem saída, que meu pai havia comprado, a prestações, por meio de um programa habitacional de cujo nome não lembro mais. E tínhamos um carro, com o qual minha mãe percorria a cidade toda e um bom número de outros municípios vizinhos para visitar as vendedoras. 

O primeiro foi um Renault Dauphine, seminovo, que vivia quebrando. Depois dele veio uma sucessão de Fuscas, menos charmosos, mas mais confiáveis.

Na minha casa e em muitas outras de classe média, os serviços domésticos, limpeza, cozinha, lavagem de roupas, eram feitos por mulheres que ganhavam pouco, mas se conformavam em pelo menos ter um trabalho.

E era um trabalho e tanto. 

As que não dormiam em quartos minúsculos nas casas dos patrões chegavam cedo para o serviço, que só acabava quando começava a anoitecer.

Saí de Jundiaí pouco depois de os militares se cansarem da brincadeira de tomar conta do país.

Ou seja, passei parte da infância, toda a adolescência e um pedaço da vida adulta sob a ditadura, numa cidade onde quase nada de extraordinário acontecia e o tempo parecia congelado.

Quando me mudei para a capital, a Jundiaí de então era praticamente a mesma de quando tinha 10 anos de idade - as únicas transformações foram a ampliação do parque industrial, com a consequente migração de pessoas em busca de emprego, o aumento da pobreza, e os primeiros sinais de uma desenfreada especulação imobiliária.

Vou à cidade pelo menos uma vez por mês para visitar familiares. 

E tudo parece alterado em sua paisagem. 

Há mais carros, mais gente, mais barulho, mais poluição, mais bares e restaurantes, dois grandes shopping centers, mais violência, uma agitação que se assemelha à da capital.

Mas sei que, no fundo, em sua alma, em sua essência, a cidade ainda vive como nos anos 60, 70 e 80 do século passado, com um medo terrível de que alguma mudança afete a sua aparente tranquilidade.

Quando chego em Jundiaí sinto que sou jogado na triste realidade do Brasil, um Brasil que se agarra com a força dos desesperados na preservação de um status quo em que cada um se conforma com o seu lugar na sociedade.

 "Você tem de concordar que está quase impossível arranjar uma empregada doméstica", escreveu, para mim, alguns anos atrás, uma jundiaiense que conheço desde a mocidade.

Ela agora deve se sentir mais aliviada.

Afinal, tudo indica que não só Jundiaí, mas grande porção do país, está contente com a possibilidade de voltar ao passado, à vida sob a vigilância não mais dos militares, mas da meganhagem, feliz com o retorno a uma paz que não vem da felicidade, mas dos cemitérios. (Carlos Motta)



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