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Quanto vale 400 guaranis?

4 de Janeiro de 2014, 2:27 , por Chipa & Café - | No one following this article yet.
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Uma vez eu vi o jornalista Ignacio Ramonet dizer que não é a internet o que leva milhões de pessoas às ruas na sociedade contemporânea. É a indignação que elas sentem por um acúmulo de opressão. Vi minhas timelines do facebook e twitter estourarem de fotos e mensagens de amigos paraguaios com denúncias de uma repressão policial absurda durante uma manifestação pacífica nos primeiros dias desse 2014. Começou com 3, 4, quando vi já eram 16 presos, mais um incontável número de manifestantes gravemente feridos. A pauta, como recentemente no Brasil, o preço abusivo da passagem de ônibus.

O que levou milhares de paraguaios às ruas não foram os 400 guaranis que vai aumentar na passagem do transporte coletivo humilhante, desestruturado e monopolizado. Eles estavam lá por uma soma de fatores, a falta de escrúpulos do poder público ao aceitar o aumento proposto pelas empresas administradoras do transporte público foi só a gota d´água para uma sociedade cansada de ser humilhada estourar e ser recebida com a calvaria.

A polícia, a serviço de um Estado corrupto, agrediu com selvageria os manifestantes, muitos deles, amigos meus. É só o reflexo de um país injusto e omisso com seu povo. Por mais de 60 anos o Paraguai foi governado pelo partido Colorado. Em 2008 a Aliança Patriótica para a Mudança, encabeçada pelo ex-presidente Fernando Lugo, apenas tirou o país do trilho por um curto prazo. Tentou mudar a locomotiva para o lado da justiça social, da garantia dos direitos humanos e da segurança de direitos inalienáveis. Justamente por isso, levou um golpe.

Não foi Lugo quem levou um golpe, foi o povo paraguaio. Foi a América Latina, o projeto da esquerda progressista, o sonho de um continente unido e soberano. Todos levamos um golpe. O presidente deposto deu lugar ao golpista Liberal Federico Franco, que facilmente abriu as portas, já pelo caminho da legalidade, ao retorno do Partido Colorado.

Apenas quatro anos distante da presidência, não do poder, tempo suficiente para os colorados voltarem com uma cara nova. Ou melhor, “a cara da nova política”. Horácio Cartes tem absolutamente todas as características do político contemporâneo que a direita têm investido. Empresário bem sucedido (o que não significa ter enriquecido por meios lícitos), jovem, envolvido com esportes – para deixar a imagem mais simpática.

A vitória avassaladora de Cartes levou milhares de paraguaios às ruas, ao contrário do que pareceria óbvio, para comemorar. De repente um mar vermelho toma conta da capital Assunção, e percebo que as coisas por ali são tão invertidas ao ponto de que ver gente vestindo vermelho em dia de eleição não significar revolução, nem comunismo, muito menos progresso. Vermelho no Paraguai é a cor do conservadorismo.

Mas o que levou tantos paraguaios, depois de 60 anos de opressão, caírem novamente na conversa do Novo Rumo? O velho, o mais puro reacionário com cara de bom moço. Foi dessa forma, com cara de bom moço, que projeto Horácio Cartes foi vendido. Sim, vendido. E os paraguaios receberam dinheiro o suficiente para comprá-lo. Nas eleições presidenciais de 2013 foi registrada uma das maiores compras de votos dos últimos tempos no país.

E não nos cabe julgar o ignorante que vende seu voto. Se o é, é por culpa de uma política de Estado cujo interesse é manter a sociedade assim, bitolada e rasa. Quanto mais as necessidades básicas forem de suma prioridade, menos o debate político tomará conta dos ônibus (caros e ruins), das praças, dos bares, das escolas e até mesmo das faculdades. O Paraguai é um dos maiores produtores agrícolas da América Latina, principal economia do país, e ainda assim, conta com 80% da população em situação de pobreza, destes, 30% são miseráveis. Como julgar um faminto por vender seu voto? Vender algo que pra ele, nunca teve valor, apenas preço.

Mas não foi preciso nem cem dias de governo, para até o mais ignorante e necessitado, perceber não ter feito um bom negócio. O novo rumo chegou destruindo comunidades inteiras de camponeses no norte do país – onde já há cidades em Estado de Exceção –, violando os direitos humanos, oprimindo jovens manifestantes nas ruas e articulando um grandioso esquema de centralização de poder.

Eu mesma atravessei a fronteira e fui, ao lado dos irmãos paraguaios, lutar contra a aprovação da Lei que aumenta consideravelmente o poder de decisão do presidente. Aprovada foi, mas a luta nunca será em vão. A rua é o lugar do povo. Quase 100 mil paraguaios unidos em uma só voz com o lema “APP NO” (não à Lei de Aliança Público Privada), não foi o suficiente para o senado ouvir o clamor popular. Talvez até tenha sido, porque há rumores de voltar atrás com a decisão. Tarde.

A lei já está aprovada, e o gabinete presidencial desenvolve peças publicitárias de apresentação do país de vento em popa. O slogan é “Paraguai fácil”. O país onde a energia é barata, a mão de obra de fácil exploração, os minerais e recurso naturais carecem de fiscalização para serem usufruídos e as mulheres além de lindas, são fáceis. Esse é o discurso do presidente Horácio Cartes. Me vejo no século 19 quando ele começa sua conversa obsoleta com ares de modernização. Em pouco tempo anunciará chuveiro a gás e automóvel.

Isso nos faz entender porque as pessoas foram às ruas protestar pelo preço da passagem de ônibus. Porque os 400 guaranis são a violação dos direitos humanos, são a abertura do país ao poder privado, a declaração do Estado de Exceção, as mortes seletivas de líderes campesinos, os presos políticos abanados à própria sorte, a lei de entrega dos bens públicos, a centralização do poder ao executivo, a compra de votos, a corrupção desenfreada. Os 400 guaranis são um Paraguai cansado.

Por Mariana Serafini


Fonte: https://chipaecafe.wordpress.com/2014/01/04/quanto-vale-400-guaranis/