Por Hugo Valiente*
Invasão, território campesino e a tradição dos oprimidos
A recente imputação e ordem de detenção contra Martina Paredes, Mariano Castro e Darío Acosta, familiares das vítimas campesinas do Massacre de Marina Kue, por terem realizado uma plantação simbólica nas terras, nos devolve a pergunta que até agora o sistema judicial paraguaio se nega a responder: De quem é a terra?
Identificando o invasor
Os Riquelme, ou sua empresa Campos Morumbi, carecem de direitos sobre essas terras, incluso sob a generosa sombra do Código Civil paraguaio. Não se trata de um título falso. Diretamente não há tal título. Se a lei se aplicasse por igual, os Riquelme e seus seguidores da diretoria de Campos Morumbi deveriam ser os primeiros imputados.
O processo judicial fraudulento pelo qual tentaram adonar-se lhes saiu mal, porque não há crime perfeito. Na zona de Canindeyú escutei um agricultor dizer que se compra um juiz por um quilo de biscoito e um fiscal por um de erva daninha. Impossível não imaginarmos a certo juiz passando a retirar seu quilo de biscoito creditado pelo dono do supermercado. O caso segue pendente de resolução por parte da Corte Suprema de Justiça, instância que não emitiu até agora as demandas apresentadas pelo Estado para anular a fraude dos juízes de Curuguaty.
A nova imputação não significa que haja um resultado até agora. No mais, é o rangir da velha máquina repressiva que novamente começou a andar. Marina Kue é um caso excepcional e sem precedentes em muitos sentidos que o fazem singular. Mas, sendo como é, uma soma de todas as injustiças que se abatem sobre os campesinos, é às vezes um caso igual a todos: Nakunday, Marakana, Laterza Kue, Tkojoja, Tapirakuãi Lóma, Crecencio González, Hugua Ñandu, María la Esperanza, Arroyito, Luz Bella e mais um tanto. Marina Kue é outra comunidade campesina atacada no marco de um plano sistemático que busca desalojar a todas para apropriar-se de seus territórios. Todo um processo reorganiador da sociedade que implica desocupar o campo de população campesina para deixar o interior vazio, cheio de cultivos transgênicos mecanizados e gado. Em um país onde há vinte anos mais da metade da população era rural.
Criminalização e controle social
Definir que conduta é um delito é uma decisão política. Definir a quem se persegue também. Em países antidemocráticos as leis penais são uma expressão dos interesses que a classe dominante protege mediante a aparência de legitimidade pública. Até 1997, por exemplo, fechar uma rua como forma de protesto não era passível de pena. Desde 2010 essa conduta pode ser penalizada como terrorismo: 30 anos de prisão. A invasão de imóel que até 1997 se sansionava com uma pena mínima que se substituía por multa. Claramente não foi suficiente, o Código Penal novo a sancionou como pena de prisão de até dois anos. Como seguiu sendo insuficiente, desde 2009 a pena pode ser de até cinco anos.
Estas inovações geraram níveis de processamento penal de campesinos e campesinas sem precedentes em todo o período anterior. Não há dados continuos, mas um trabalho publicado pela ONG Base Is nos dá uma mostra importante: entre agosto de 2008 e dezembro de 2009, 22 fiscais de zonas rurais deteram 1050 campesinos acusando-os de invasão e por outros delitos detiveram a 333. A fiscal Lilian Ruiz encabeça o ranking de detenções (223), e seu colega Troadio Galeano leva o recorde de imputações (102).
A ideia, sem dúvida, não é manter as pessoas presas, possibilidade de que todo modo está latente. Quase nenhum caso chega a julgamento. O processo penal se justifica pelo processo em si mesmo, não pela condenação. Se trata de ter a maior quantidade possível de militantes sociais sujeitos às medidas de controle estatal repressivo que entopem as prisões. E pode ser até por quatro anos, tempo que dura um processo penal sem resultados. É uma estratégia de repressão de baixo custo, funcional ao plano de desalojar comunidades.
Um caso que me coube acompanhar, os 19 campesinos imputados baixo à acusação de invasão por Ninfa Aguilar, – que casualidade onde voltamos a encontrar a fiscal do Massacre de Marina Kue! – suportaram medidas alternativas de prisão que, entre outras, incluíam a “proibição de reunir-se, associar-se ou formar parte de qualquer núcleo cujo objetivo seja incitar, instigar a violaçao ou a quebra da propriedade privada”. Em outro caso, onde me coube ser advogado, a condenação de dois anos por invasão foi suspensa com a condição de uma prisão domiciliar e que o dirigente camponês cumpriria a “proibição de assistir a reuniões onde se aglutinassem mais de três pessoas”.
Provado seu êxito no campo, a estratégia começa a ser ensaiada na cidade: os casos dos sindicalistas da ANDE e a marcha contra a Lei de Aliança Público Privada, de Alejandro Ríos de Bañado e dos quatro imputados da marcha contra o aumento da passagem de 3 de janeiro, antecipam que o dispositivo está mudando.
Quando sancionarem a lei dos grilhões eletrônicos (que já esta em aprovação na Câmara de Deputados), saberão onde estão e aonde vão os imputados, a que horas saem de suas casas e com quem se reúnem, se caso se juntam entre várias pessoas que tenham os grilhões.
Um país em que as prioridades públicas se definem desde uma posição de privilégio não é uma democracia, é uma ditadura. Também não é uma democracia um país onde o dispositivo de seu desenho institucional, previsto para proteger os direitos das pessoas, é o que se encarrega de violá-los. A experiência campesina, seja Marina Kue, Tacuati Poty ou qualquer outra, não deve nos fazer acreditar que “a tradição dos oprimidos que nos ensina que o estado de exceção em que vivemos é a regra” (Walter Benjamin). Um passo básico para redefinir nossa posição de luta, o sentido da participação eleitoral e a lógica de apoio mútuo que deve presidir nossas alianças.
*Hugo Valiente é advogado especializado em Direitos Humanos. Foi coordenador da equipe de investigação do Informe de Direitos Humanos sobre o caso Marina Kue, publicado em dezembro de 2012 pela Coordenadoria de Direitos Humanos no Paraguai (Codehupy)
Artigo publicado originalmente no portal Qué Pasó en Curuguaty.