Como era de esperar, a resposta da esquerda a “O Mecanismo” foram denúncias contra o conteúdo factual da série brasileira. Mordeu a isca jogada pelo diretor José Padilha e suas eminências pardas da atual guerra híbrida: de que a série era supostamente “baseada em fatos reais”. E começou a acusar o “assassinato de reputações” ao não respeitar “o tempo que os fatos ocorreram”, condenar a “distorção da realidade” e produzir “fake news”. Foi como se a esquerda levantasse a bola no outro lado da rede para o adversário dar uma violenta cortada. Como uma “obra de ficção”, a série deve ser criticada no seu próprio campo semiótico: a Operação Lava Jato foi um mero pretexto para o roteiro explorar a combinação explosiva de ressentimento com a meritocracia. Combinação que fez recentemente as ruas encherem de camisas amarelas batendo panelas. Como não consegue se descolar da visão conteudística da comunicação, a esquerda é incapaz de lutar no mesmo campo simbólico no qual Netflix milita. Além de oferecer mídia espontânea a uma série tosca e malfeita.
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Mas José Padilha e os estrategistas dessa guerra semiótica visaram algo mais: provocar a esquerda e esperar que a sua histórica inépcia com a comunicação rendesse boas tréplicas para impactar o distinto público – e principalmente aqueles que acham que o debate atual está “muito partidarizado” e que, por isso, se entregam a repulsa à política.
Esquerda prisioneira de si mesma
Uma empresa como o Netflix, que só em 2013 dispendeu 1,2 milhões de dólares em esforços lobistas mirando na Casa Branca e Congresso dos EUA realmente sabe o que faz. E pelo seu modus operandi (séries e filmes sobre eventos que ainda estão em desdobramento), é uma empresa engajada numa tática fundamental da guerra híbrida: a intervenção na realidade através de produtos do gênero ficcional.
Prisioneira que ainda está no cânone iluminista da representação, a esquerda cobra de Padilha realismo e precisão histórica em uma obra de ficção.
Lutar no mesmo campo semiótico do Netflix
Em geral as críticas de O Mecanismo giram em torno do senso comum do leigo de cinema: o roteiro erra porque não é realista. Isso é o que menos se deve cobrar da série: um roteiro deve ser verossímil, e não realista.....Óbvio que O Mecanismo é uma peça de propaganda indireta. Tosca e malfeita, produzida às pressas para ser lançada no momento da prisão de Lula.
Então, o que significa dizer que a esquerda deve lutar no mesmo campo simbólico do Netflix? No caso particular dessa série, denunciar que o argumento ficcional se baseia na combinação ideológica explosiva da meritocracia com o ressentimento. E isso é uma questão de verossimilhança, e não de realismo.
O tema de O Mecanismo não é a Lava Jato. Isso é um mero pretexto para impor a narrativa do ressentimento, a matéria-prima de todas as bombas semióticas detonadas nas mídias desde 2013....
Ressentimento e meritocracia
Como discutíamos na postagem anterior, o ressentimento sempre foi uma poderosa arma de propaganda política. E no caso brasileiro, quando combinado com o ideário meritocrático, produz ódio, medo e desejo de vingança......Na meritocracia todo indivíduo é ressentido, mesmo os vitoriosos. Ressentidos pelo custo psíquico que tiveram para chegar lá.
Para o ressentido, saúde e educação precárias não são problemas de política pública, mas um problema moral: prender vilões corruptos que roubam o dinheiro público.
Como Nietzsche escrevia, o ressentimento produz incapacidade para agir. Em outras palavras, despolitiza. Falar em política pública requer agir politicamente ou, palavrão dos palavrões, atuar partidariamente – partidos políticos, associações classistas etc.
Mas o ressentido não quer ação política, quer punição exemplar. Por isso delega seu agir a vigilantes (não é à toa que Rigo, o clone de Moro na série, lê a HQ “Vigilante Sombrio”), heróis ou qualquer personagem com caráter supostamente virtuoso e corajoso. Dessa maneira, sempre verá com simpatia Estados policias e de exceção.
O Mecanismo deve ser criticado do interior seu próprio campo semiótico. Se José Padilha afirma que tudo é uma “ficção”, é desse pressuposto que deve partir a análise: uma má ficção que, para se sustentar, explora raiva reprimida que mais parece vinda do fígado e vesícula biliar do que de corações e mentes dos espectadores.