09/01/2015 - 16h59 Diário do Aço
O ABC DA CRISE ECONÔMICA MUNDIAL
Daniel Miranda Soares
(artigo revisado, publicado originalmente no jornal Diário do Aço, no endereço : http://www.diariodoaco.com.br/noticia/89046-7/opiniao/o-abc-da-crise-economica-mundial )
David Harvey, formado pela Universidade de Cambridge, de orientação marxista é professor da Universidade da Cidade de Nova York e um dos principais nomes da Geografia Humana contemporânea, tendo sido agraciado em 1995 com o Prêmio Vautrin Lud, o Nobel da Geografia. Publicou "Para entender o Capital: Livro I" e "Para entender o Capital: Livro II e III", traduzidos em português. Segundo Harvey as origens da crise atual do sistema capitalista tem início nos anos 1970. Para os capitalistas o problema era que os salários dos trabalhadores do Primeiro Mundo estavam relativamente muito elevados. Portanto para eles a grande questão era o controle do trabalho, da oferta de trabalho.
Porque estavam muito elevados? A força de trabalho era muito organizada, tinham poder sindical e tinham poder político e exerciam esse poder através dos partidos políticos. O capital “precisava” disciplinar essa força de trabalho. Para Harvey essa disciplina foi feita de diferentes maneiras: mudanças tecnológicas, globalização e imigração. No início eles acharam que poderiam resolver o problema através da imigração - então abriram suas portas aos imigrantes - os franceses com a entrada de trabalhadores magrebinos; os alemães com a entrada dos turcos; os ingleses com o povo de suas ex-colônias e nos EUA com uma enorme reforma na lei de imigração em 1965 que permitiu que pessoas do mundo todo fossem para o país. Pensavam que com o aumento da oferta interna do trabalho os salários cairiam. Mas não foi o suficiente.
Aí vem a globalização a partir dos anos 1980 quando a produção se transfere para diversas áreas do mundo emergente à procura de salários baixos. Assim boa parte do que era o centro do capitalismo acabou se desindustrializando: em boa parte dos EUA, a indústria desapareceu assim como na Inglaterra e na Alemanha. Ela foi deslocada. É um modelo de expansão geográfica muito diferente que se baseia nas expansões das multinacionais que continuam com suas sedes no Norte e estabelecem suas bases produtivas no Sul: China, Brasil, México, Taiwan, etc... Mas é uma globalização diferente da que aconteceu no século XIX quando os países centrais exportavam produtos industrializados para a periferia; agora a periferia se torna produtora destes bens industrializados em vários pontos ao redor do mundo.
Quanto às mudanças tecnológicas - houve muitas e significativas mudanças - nos anos 1970 não havia laptops, celulares, computadores pessoais, internet, etc. Harvey afirma que as concepções mentais eram muito diferentes incluindo é claro, as sensibilidades políticas. Ele diz: “Nós nos preocupávamos muito mais com solidariedade social, essas coisas. Hoje somos muito mais individualistas. Nós nos tornamos indivíduos ao telefone, no computador. Tudo isso mudou e o dia a dia mudou radicalmente.”
O mundo se tornou mais individualista e isso diminuiu o poder dos trabalhadores se organizarem. Portanto o novo regime que surgiu a partir de então - que podemos chamar de neoliberalismo - na década de 1980, Margaret Thatcher, Ronald Reagan, o general Pinochet entre outros colocaram um ponto final no poder político dos trabalhadores.
Mas então como se caracteriza o neoliberalismo? Segundo Harvey, com o poder do capital financeiro. Ao reprimir trabalhadores e salários a participação dos salários na renda nacional caiu em quase todos os países (com exceção de alguns países da América do Sul no séc. XXI). Nos EUA nos anos 1970 um chefe de executivo ganhava 30 vezes o salário de um empregado médio - agora eles ganham 350 vezes mais. A classe média diminuiu. O capitalismo prospera com a precarização do trabalho - mantendo salários baixos e aumentando os lucros - o resultado é um sistema que cria pobreza e também desemprego.
Então surge a questão: o que acontece com o mercado quando você retrai os salários? Nos EUA a resposta foi: “Dê crédito a eles”, deixe que comprem a crédito. Assim surgiu a economia do débito que é esse enorme negócio que os bancos entraram. As famílias americanas triplicaram suas dívidas em 30 anos. A queda na demanda causada pelos baixos salários foi compensada pelo aumento da dívida. Mas quando os salários caem e a dívida aumenta, em algum momento há o problema de como as pessoas pagarão a dívida.
As famílias americanas já vinham se endividando ao longo dos anos 1990 e a partir de 1995 o mercado imobiliário voltou se expandir, assim como o endividamento - crédito ao consumidor e hipotecas. Com a crise de 2000-2001, do mercado de ações, o mercado imobiliário ganhou estímulos e se expandiu mais vigorosamente. As famílias, já endividadas, elevaram a contratação de empréstimos, fazendo novas hipotecas e adquirindo novas linhas de crédito.
A partir de 2003, com a intensificação da valorização dos imóveis e esgotamento dos clientes tradicionais, o crédito foi facilitado para as famílias sem histórico de crédito, sem emprego e sem renda - o subprime. Como os empréstimos subprime eram dificilmente liquidáveis, os bancos arquitetaram uma estratégia de securitização desses créditos. Para diluir o risco dessas operações duvidosas os bancos juntaram-nas e transformaram a massa daí resultante em derivativos negociáveis no mercado financeiro internacional, cujo valor era cinco vezes superior ao das dívidas originais.
Assim, criaram-se títulos negociáveis cujo lastro eram esses créditos "podres". Foi a negociação em enormes quantidades desses títulos que provocou o alastramento da crise, de origem estadunidense, para os principais bancos do mundo. Tais papéis, lastreados em quase nada, obtiveram o aval das agências internacionais de classificação de risco, obtendo chancela máxima - AAA - geralmente dados a títulos bem mais sólidos como os do tesouro americano. Todos os bancos foram atingidos, porque todo o sistema financeiro estava interligado na multiplicação destes papéis. Quando os juros dispararam nos Estados Unidos - com a consequente queda do preço dos imóveis - houve inadimplência em massa. A mesma classe média detentora de tantas ações, teve seu patrimônio (imobiliário) depreciado e começou a não pagar as parcelas de hipoteca, levando as hipotecadoras a terem prejuízos vultosos.
A empresta R$ 100.000 ao elemento B a uma taxa de juros de 1% ao mês; o B empresta ao C os mesmos R$ 100.000 a uma taxa de 2% ao mês, até aí A e B são credores de R$ 100 mil cada, totalizando R$ 200.000; C empresta os mesmíssimos R$ 100 mil a uma taxa de juros de 3% ao mês para D; até então, A, B e C são credores de R$ 100 mil cada, totalizando R$ 300 mil. Ou seja, todos eles são credores do mesmo capital. No exemplo colocado, houve a "geração" de R$200 mil virtuais a partir de R$ 100 mil reais. Puro capital fictício, sem lastro real, alavancagem multiplicada várias vezes de um valor original muito menor. Foi isso o que aconteceu com o mercado americano.
Em alguns casos a alavancagem chegava a 50 por 1. Quando os credores deixaram de pagar suas dívidas a coisa se propagou em massa atingindo todo o sistema financeiro em todo o mundo. Nos EUA cerca de 7 milhões de famílias perderam seus imóveis ou cerca de 30 milhões de pessoas; foi um dos maiores movimentos de transferência de direitos de propriedade privada na história americana. A acumulação por espoliação - foi como tomar das pessoas seus bens de valor - também aconteceu na Espanha, Irlanda e Leste europeu (um milhão de pessoas perderam suas casas na Hungria). A crise se propaga com queda na demanda por bens, queda na produção, aumento do desemprego, queda de salários etc. aumentando o ciclo.
Para Harvey nos últimos 30 anos o neoberalismo promoveu o capital financeiro, sob sua forma especulativa. Boa parte dos investimentos não foi para a produção, mas para ativos, papéis, ações e quotas de empresas, permitindo que se ganhe dinheiro jogando com o dinheiro.
A pressão em cima de empresas como Petrobrás, Cemig, Copasa e Sabesp é no sentido de abrir mais seu capital, aumentar dividendos aos acionistas, distribuindo mais lucros em vez de mais investimentos produtivos (deu certo para as últimas três). É emblemático a pressão que os neoliberais estão fazendo para abrir o capital da Caixa Econômica Federal (empresa 100% estatal com o menor juros da praça que gerencia programas sociais do governo). Imagine a pressão que vão fazer para distribuir todo o lucro do banco aos acionistas e deixar a empresa sem recursos para investimentos. É o que acontece quando o sistema financeiro passa a dominar empresas de capital aberto. A Cemig ficou com poucos recursos para investir sucateando boa parte de seu patrimônio. A Sabesp distribuiu R$4 bilhões dos lucros aos acionistas e agora está pedindo R$3 bilhões ao governo federal. Promovendo a desregulamentação, ao invés de se dar uma retomada da expansão econômica, houve uma gigantesca transferência de capitais da esfera produtiva para a especulativa. Porque, como dizia Marx, o capital não está feito para produzir, mas para acumular. Se ele encontra melhores condições — maior retorno, menos tributação, liquidez total — ele se concentra na esfera financeira.
Daniel Miranda Soares. Economista, Msc. Ex-professor e EPPGG aposentado.