Um samba-enredo sobre um país de sonho
6 de Janeiro de 2018, 13:09Carnaval chegando, as escolas de samba capricham nos ensaios.
Os sambas-enredo deste ano das escolas do Rio, como sempre, abordam uma miscelânea de temas, que vão desde Chacrinha à Rota da Seda, passando pelo Museu Nacional e Frankenstein.
Dos milhares de sambas-enredo compostos, porém, foram poucos os que sobreviveram na memória popular e são cantados em qualquer época de ano.
Um deles, se não o mais lembrado, é "Aquarela Brasileira", de Silas de Oliveira, levado originalmente ao desfile de 1964 pela Império Serrano - em 2004 ele foi novamente apresentado, pois a escola fez uma reedição do enredo.
O samba faz uma homenagem ao clássico "Aquarela do Brasil", de Ary Barroso, uma das canções brasileiras mais tocadas em todo o mundo.
Silas faz uma viagem pelo Brasil, exaltando a cultura, arte e arquitetura das regiões geográficas e de seus Estados.
É um episódio relicário,
Que o artista, num sonho genial
Escolheu para este carnaval.
E o asfalto como passarela
Será a tela do Brasil em forma de aquarela.
Passeando pelas cercanias do Amazonas
Conheci vastos seringais.
No Pará, a ilha de Marajó
E a velha cabana do Timbó.
Caminhando ainda um pouco mais
Deparei com lindos coqueirais.
Estava no Ceará, terra de irapuã,
De Iracema e Tupã
Fiquei radiante de alegria
Quando cheguei na Bahia...
Bahia de Castro Alves, do acarajé,
Das noites de magia do Candomblé.
Depois de atravessar as matas do Ipu
Assisti em Pernambuco
A festa do frevo e do maracatu.
Brasília tem o seu destaque
Na arte, na beleza, arquitetura.
Feitiço de garoa pela serra!
São Paulo engrandece a nossa terra!
Do leste, por todo o Centro-Oeste,
Tudo é belo e tem lindo matiz.
No Rio dos sambas e batucadas,
Dos malandros e mulatas
De requebros febris.
Brasil, essas nossas verdes matas,
Cachoeiras e cascatas de colorido sutil
E este lindo céu azul de anil
Emoldura em aquarela o meu Brasil.
Henfil, mais vivo que nunca
4 de Janeiro de 2018, 17:05Henrique de Souza Filho, o Henfil, morreu há exatos 30 anos, vítima da aids, no Rio de Janeiro, em 4 de janeiro de 1988. O cartunista contraiu o HIV em uma das transfusões que realizava com frequência, já que era hemofílico assim como seus irmãos, o sociólogo Betinho e o músico Chico Mário.
Henfil é o genial criador de tirinhas famosas nos anos 70 e 80 do século passado, como a Graúna, o Fradim Cumprido e o Fradim Baixim. Engajado na vida política e social do país, seus traços criticavam a ditadura militar. Foi um dos baluartes do semanário "O Pasquim", que combateu, com todas as armas que dispunha, mas principalmente com o humor, o regime dos generais. Além disso, participou intensamente de movimentos importantes, como a mobilização pela anistia a presos e exilados políticos e as Diretas Já!
Mineiro de Ribeirão das Neves, Henfil nasceu em 5 de fevereiro de 1944. Em outubro do ano passado, a sua história foi retratada no documentário "Henfil". Dirigido por Angela Zoe e lançado no Festival do Rio, o filme tem depoimentos de figuras próximas a ele, como seus colegas do Pasquim: Ziraldo, Jaguar, Sérgio Cabral e Tárik de Souza. "É um erro chamá-lo de cartunista, porque ele foi um multiartista", diz Tárik de Souza em um dos depoimentos.
Os 30 anos da morte de Henfil foram lembrado por seu filho, Ivan Cosenza, há dois dias, em postagem no seu blog As Cartas do Pai, onde ele publica rotineiramente mensagens dirigidas ao artista:
Rio de Janeiro, 02 de Janeiro de 2018.
Pai,
Começou mais um ano e daqui a dois dias completam 30 anos que você se foi.
Como o tempo passa rápido!
E como você foi cedo, com 43 anos apenas.
O que fico imaginando é quanta coisa teria feito em mais 30 anos, já que em 25 anos de profissão, produziu tanta coisa boa!
Seus personagens até hoje são usados em campanhas sociais, sindicais, no movimento estudantil e em tantas outras campanhas.
Tá certo que nem todo mundo entende que você sempre foi de esquerda e que jamais usaria seus desenhos para outra coisa que não fosse defender os direitos do povo.
Imagina que no apagar das luzes de 2017, um bajulador do Temer, resolveu usar um desenho seu.
Não escreveu nada, só postou lá a Graúna. Isso mesmo! Logo a Graúna!
Você costumava me dizer: “O Temer é a pessoa mais mau-caráter que já conheci!”. Por isso não consegui deixar pra lá não! Respondi. Deixei meu recado pra ele. Que desaforo!
Vou ficar de olho agora.
E pode deixar que vou continuar usando seus desenhos para aquilo que você sempre acreditou!
Um beijo do seu filho,
Ivan
Como Chico gozou dos militares em plena ditadura
4 de Janeiro de 2018, 10:11
O Chico Buarque que volta aos palcos cariocas para, a partir de hoje dar sequência a uma turnê na qual apresenta músicas de seu último disco e outras já consagradas, não é só um gigante da arte brasileira. Nele coexistem o magistral letrista, o inspirado melodista, o cantor original, o escritor surpreendente - e um tremendo gozador.
Se não, como explicar que, em plena ditadura militar, ele tenha composto canções que zombavam do regime de uma maneira tão inteligente que os censores nem percebiam a sua intenção?
É o caso de "Apesar de Você", lançada em 1970 e só proibida no ano seguinte, apenas porque os vigilantes da moral e bons costumes foram alertados sobre a sua mensagem "subversiva" depois que o jornalista Sebastião Nery, numa entrevista, afirmou que seu filho e amigos a cantavam como se fosse o hino nacional.
Perguntado, num interrogatório, sobre quem era o "você" da letra, Chico nem pestanejou em responder: "É uma mulher muito mandona, muito autoritária."
Falou, tá falado
Não tem discussão, não
A minha gente hoje anda
Falando de lado
E olhando pro chão, viu
E inventou de inventar
Toda a escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar
O perdão
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Eu pergunto a você
Onde vai se esconder
Da enorme euforia
Como vai proibir
Quando o galo insistir
Em cantar
Água nova brotando
E a gente se amando
Sem parar
Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Este samba no escuro
Você que inventou a tristeza
Ora, tenha a fineza
De desinventar
Você vai pagar e é dobrado
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Inda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria
Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença
E eu vou morrer de rir
Que esse dia há de vir
Antes do que você pensa
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear
De repente, impunemente
Como vai abafar
Nosso coro a cantar
Na sua frente
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai se dar mal
Etc e tal
Lá lá lá lá laiá
Depois de "Apesar de Você" a censura ficou mais vigilante em relação a Chico Buarque. O jeito que o poeta encontrou para que suas músicas fossem aprovadas foi atribuir a paternidade delas a outros compositores.
Assim nasceu a dupla Julinho de Adelaide e Leonel Paiva, "autora" de "Jorge Maravilha", sucesso em 1973, que só foi liberada porque Chico inseriu a letra entre versos que ficaram de fora da gravação.
O Brasil inteiro cantou a música e todos, menos os censores, pensavam que ela era uma tremenda gozação ao ditador de plantão, o general Ernesto Geisel, embora Chico negasse isso: "Aconteceu de eu ser detido por agentes de segurança, e no elevador o cara pedir autógrafo para a filha dele. Claro que não era o delegado, mas aquele contínuo de delegado", disse em uma entrevista.
E nada como um tempo após um contratempo
Pro meu coração
Chorando, resmungando, até quando, não, não, não
E como já dizia Jorge Maravilha
Prenhe de razão
Mais vale uma filha na mão
Do que dois pais voando
Você não gosta de mim, mas sua filha gosta
Ela gosta do tango, do dengo
Do mengo, domingos e de costa
Ela pega e me pisca, belisca, petisca
Me arrisca e me enrosca
Você não gosta de mim, mas sua filha gosta
Você não gosta de mim, mas sua filha gosta
E nada como um dia após o outro dia
Pro meu coração
E não vale a pena ficar, apenas ficar
Chorando, resmungando até quando, não, não, não
E como já dizia Jorge Maravilha
Prenhe de razão
Mais vale uma filha na mão do que dois pais sobrevoando
O Brasil de hoje é um campo fértil para que os artistas liberem toda a sua criatividade. Pena que haja tão poucos com a capacidade que um Chico Buarque tinha de transformar a vida miserável que a ditadura proporcionava aos brasileiros em obras de arte imortais.
Partituras de músicas brasileiras já estão online
3 de Janeiro de 2018, 19:10Já está disponível no portal da Fundação Nacional de Artes – Funarte o Songbook Online Internacional, que reúne partituras musicais de importantes autores da música brasileira, como Antonio Carlos Jobim, Chiquinha Gonzaga, Edu Lobo, Chico Buarque, Ernesto Nazareth, Eduardo Souto, Milton Nascimento, Zequinha de Abreu, entre outros.
O projeto Songbook Online Internacional é organizado pelo Centro da Música – responsável pela produção do conteúdo e organização geral –, com a parceria do Departamento de Promoção Internacional do Ministério da Cultura (Deint/MinC), encarregado da editoração e distribuição. A seleção das partituras conta com a participação de importantes instituições de pesquisa musical do Brasil, além de dois especialistas, os professores e pesquisadores Paulo Aragão e Marcelo Jardim, para o trabalho técnico na organização das partituras selecionadas.
Inicialmente, podem ser baixadas as Partituras Brasileiras Online – Volumes 1 e 2. Os textos que norteiam as coleções estão disponíveis em português, inglês, espanhol e francês. No caso da compositora e maestrina carioca Chiquinha Gonzaga (1847-1935), o Instituto Moreira Salles cedeu 13 partituras; no do maestro Antonio Carlos Jobim (1927-1994), o Instituto que leva o nome do compositor cedeu à Funarte mais de 60 partituras. A editora Gilly Music, que trabalha com transcrição e edição de songbooks de música popular e publicação de métodos diversos, forneceu partituras para piano, canto e violão que integram a coleção dos músicos Edu Lobo e Chico Buarque, abrangendo praticamente toda a parceria da dupla de compositores. Constam agora do acervo do Songbook Online Internacional da Funarte desde a primeira composição, Moto-contínuo, até a versão completa de O Grande Circo Místico, um dos mais emblemáticos álbuns de toda a discografia brasileira.
O projeto vai reunir cerca de 1.200 partituras iniciais, cedidas por mais de 15 instituições e alguns compositores. Serão organizadas partituras de música brasileira divididas para Música popular, Música erudita e para Bandas de Música.
A seleção das partituras terá como critério o equilíbrio na distribuição entre os autores, a excelência estético-formal do repertório e a relevância da obra e dos autores para a criação musical brasileira.
A casinha na Marambaia e os dois momentos do Brasil
3 de Janeiro de 2018, 10:25O paulista Henrique Felipe da Costa, que ficou conhecido pelo apelido de Henricão, compôs dezenas de canções, mas é até hoje lembrado por duas delas, "Está Chegando a Hora", versão da mexicana "Cielito Lindo", e "Só Vendo que Beleza", mais conhecida por "Marambaia", em parceria com Rubens Campos.
Essa última, lançada por Carmen Costa, ganhou inúmeras regravações dos mais importantes artistas populares brasileiros. Fala sobre um local idílico, onde um casal vive uma vida de sonhos, embora frugal:
Eu tenho uma casinha lá na Marambaia
Fica na beira da praia, só vendo que beleza.
Tem uma trepadeira que na primavera
Fica toda florescida de brincos de princesa
Quando chega o verão eu sento na varanda,
Pego o meu violão e começo a tocar.
E o meu moreno que está sempre bem disposto
Senta ao meu lado e começa a cantar
Quando chega a tarde um bando de andorinhas
Voa em revoada fazendo verão
E lá na mata um sabiá gorjeia
Linda melodia pra alegrar meu coração
Às seis horas o sino da capela
Toca as badaladas da Ave Maria
A lua nasce por de trás da serra
Anunciando que acabou o dia.
Eu tenho uma casinha lá na Marambaia...
O sucesso de "Só Vendo Que Beleza" foi tanto que a Henricão e Rubens compuseram uma continuação, que foi praticamente ignorada.
Pudera, "Casinha da Marambaia" expõe a tragédia da separação do feliz casal retratado na primeira canção. A linda morada desmoronou, a trepadeira brinco-de-princesa secou, o sabiá foi embora, só restaram destroços do amor que existia entre os dois:
Nossa casinha lá da Marambaia
A mais bonita da praia se desmoronou
A trepadeira brinco-de-princesa
Ficou triste, amarela e depois secou
E a varanda vive em abandono
É um destroço sem dono numa solidão
Até você que parecia ser sincera
Sem motivo abandonou meu pobre coração
O sabiá também mudou seu ninho
Eu já não ouço mais sua canção
As andorinhas foram em revoadas
Quebraram-se as cordas do meu violão
E há quem diga que isso é desumano
Que eu não mereço tanta ingratidão
Quero que volte como antigamente
Para dar sossego ao meu coração
As duas músicas foram lançadas há mais de 70 anos, quase um século.
De certa forma, retratam o que houve no Brasil, que durante uma década foi como a casinha na Marambaia em seu esplendor, mas que depois acabou destroçada pela ação de forças deletérias.
Henricão morreu em 1984, ano em que o movimento pelas eleições diretas entusiasmava o Brasil, que já havia se cansado da ditadura militar.