publicado em 5 de novembro de 2012 às 2:43por Luiz Carlos Azenha
Enviado por Beatrice
Britânicos choram: Thatcher entregou soberania energética aos franceses!
As revistas literárias, quem diria, estão se transformando no espaço para as grandes reportagens que antes saiam nos jornais. Como o público delas é razoavelmente sofisticado, não engole qualquer lixo vendido a título de “jornalismo”. A mais recente edição da London Review of Books traz uma reportagem excepcional de James Meek, How we happened to sell off our electricity, “Como aconteceu da gente vender nossa eletricidade”, que é um raio xis do sistema elétrico do Reino Unido.
Resumo: o neoliberalismo de Margaret Thatcher entregou a soberania energética do Reino Unido logo… à França.
O equivalente ao Brasil entregar à Argentina o poder de decidir sobre as questões mais importantes do futuro de sua matriz energética — ou vice-versa.
O texto mostra como os britânicos se desfizeram da estatal Central Electricity Generating Board (CEGB) apenas para vê-la substituída primeiro por investidores norte-americanos e em seguida pela estatal francesa EDF. Mostra como, na França, a multinacional EDF enfrenta uma campanha de ativistas que trabalham para evitar cortes de energia para quem não pode pagar a conta, agindo como se fossem Robin Hoods do século 21.
Trechos (observações entre colchetes do Viomundo, para facilitar o entendimento):
O que aconteceu não é o que eles [os que promoveram a privatização] prometeram ou pretendiam quando colocaram a indústria estatal de eletricidade do Reino Unido à venda. Antes do fim deste ano, políticos, regulamentadores e corporações tomarão decisões que vão determinar a vida elétrica do país pelo próximo meio século.
Vão decidir como manter as luzes acesas e as rodas da indústria em movimento pelos próximos cinquenta anos sem afetar severamente o clima e sem nos empobrecer. Mas como resultado das ações tomadas uma geração atrás pelos conservadores de Margaret Thatcher — um partido cujo programa nacionalista prometia independência da Europa — agora as decisões não dependem apenas do Reino Unido.
Thatcher prometia menos envolvimento do Estado mas o futuro da oferta britânica de energia agora depende de companhias estatais francesas baseadas em Paris: Electricité de France, mais conhecida como EDF, e Areva, fabricante de usinas nucleares. A EDF e a Areva vão construir novos reatores nucleares no Reino Unido? Se sim, quanto isso vai custar ao público britânico e francês?.
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Em 1981, com inflação e desemprego acima dos 10%, o recentemente eleito governo conservador forçado a ceder diante de demandas dos mineiros, cortes de gastos públicos provocando protestos e a carreira de Thatcher como primeira ministra parecendo fadada a um fim ignominioso, um economista de 38 anos da Universidade de Birmingham chamado Stephen Littlechild trabalhava em formas de colocar em prática uma ideia esotérica que tinha sido muito discutido em círculos radicais dos Tory [o Partido Conservador inglês]: privatização. A privatização não era patente da Thatcher.
O economista espanhol Germà Bel liga a origem do termo à palavra alemã Reprivatisierung, primeiro usada em inglês em 1936 pelo correspondente em Berlim da revista Economist, que escrevia sobre a política econômica dos nazistas. Em 1943, em uma análise do programa econômico de Hitler no Quarterly Journal of Economics, a palavra “privatização” entrou na literatura acadêmica pela primeira vez. O autor, Sidney Merlin, escreveu que o Partido Nazista “facilitava a acumulação de fortunas privadas e de impérios industriais por seus mais importantes membros e colaboradores através de privatização e outras medidas, com isso intensificando a centralização das questões econômicas e de governo em um grupo cada vez mais diminuto, que poderia ser classificado de elite nacional-socialista.
Os caubóis livre-mercadistas que chegaram ao poder com Thatcher em 1979 talvez não soubessem do prelúdio nazista, mas com certeza sabiam das privatizações mais recentes, no Chile de Pinochet”
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A solução de Littlechild para o Reino Unido foi substituir o teto existente nos Estados Unidos para o lucro [das empresas elétricas privadas] por um teto para o preço da energia vendida ao consumidor. As companhias privatizadas só poderiam aumentar seus preços anualmente pelo equivalente à inflação menos um fator X, que a agência reguladora definiria a cada cinco anos.
Os preços deveriam cair em termos reais todos os anos: parecia um bom negócio para o consumidor. Mas o que não parecia óbvio para a maioria das pessoas eram as imensas oportunidades para as empresas privadas de energia cortarem custos e não apenas demitindo trabalhadores.
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Mas, assim que os privatistas calcularam a capacidade de produção disponível e os custos de manter as diferentes usinas, criaram um sistema para definir o preço de atacado da energia tão complicado que só era entendido pelas pessoas que dirigiam as empresas, justamente aquelas cujo interesse era manter o preço o mais alto possível.
No anos 90, os custos do petróleo, do gás e do carvão cairam e o gerenciamento agressivo tornou as usinas mais baratas de tocar, especialmente com as demissões de trabalhadores. Ainda assim o preço da energia no atacado ficou o mesmo. Os grandes players privados encontraram formas de manipular o mercado para manter os preços altos. Eles eram capazes de desvirtuar o sistema declarando, por exemplo, que uma certa usina estava temporariamente indisponível para gerar eletricidade. O preço da energia, então, aumentava — e num passe de mágica a usina voltava ao sistema.
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É uma cruel conclusão da realidade de privatizar serviços essenciais: o que está sendo vendido não é a infraestrutura, mas cidadãos pagantes de contas; o que está sendo privatizado não é a eletricidade, mas a cobrança de impostos.
De fato, o governo francês [dono da EDF] está comprando o direito de taxar clientes britânicos através de suas contas de eletricidade; o direito de usar dinheiro e espaços britânicos para financiar uma demonstração mundial de uma tecnologia francesa ainda não testada [a que seria aplicada em futuras usinas nucleares, já que o sistema elétrico britânico precisa de mudanças urgentes]. E como os impostos escondidos na conta de eletricidade não levam em conta a capacidade de quem paga, quanto mais pobre você for, maior é sua contribuição ao programa.
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Ainda assim, as luzes não se apagaram. Pelo menos é o que um deputado disse a Dieter Helm [economista britânico especializado em serviços essenciais] alguns anos atrás, quando ele prestava depoimento no Parlamento. As pessoas haviam alertado que haveria blecautes no inverno anterior, mas não houve, disse o deputado. Com paixão incomum, Helm colocou as coisas em seu devido lugar. Se você define o problema como luzes que não se apagaram, afirmou, não entendeu nada sobre como funciona o novo mundo dos mercados de eletricidade. A situação ideal para as empresas privadas de eletricidade é que exista apenas energia suficiente para o consumo.
Podem cobrar quanto quiserem que as pessoas vão pagar. ‘As pessoas pensam que insegurança no fornecimento significa que as luzes vão ou não se apagar — mas esta nem é a questão’, ele disse. ‘A questão é o que acontece logo antes das luzes se apagarem’. Mais de vinte anos depois do lançamento do grande experimento com eletricidade, dá para ver que embora tenha sido um ato de privatização — na verdade, de taxação — foi mais significativamente um ato de alienação, criando uma barreira impenetrável de complexidade, segredos comerciais e distância geográfica entre as companhias e os clientes que elas servem.
É fácil trocar fornecedores [possível no Reino Unido]. Mas os consumidores-camponeses do Reino Unido agora trazem seus dízimos até os portões trancados dos grandes latifúndios elétricos e se perguntam: afinal, quem mora lá? Estão em casa ou em alguma outra propriedade, em outra parte do mundo? Não é de surpreender que Denis Cohen [líder sindical francês], um velho comunista, herdeiro dos Communards e dos sans-culottes, odeia o que a companhia que o paga [EDF] está fazendo fora da França. “Fiquei surpreso ao saber que sindicalistas britânicos não se opuseram a isso”, ele disse, referindo-se à privatização e ao controle estrangeiro do setor elétrico. “Nós, com nossa cultura, teríamos lutado até a morte para evitá-lo”.
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