A crise neoliberal é a crise do capitalismo financeiro
François Chesnais, economista e professor da Universidade de Paris, em seu livro mais recente “A Finança Mundializada” (Boitempo Editorial) distingue dois tipos mais destacados de empresas capitalistas: os grandes grupos industriais transnacionais (ou multinacionais) e ao seu lado menos visíveis e menos analisadas estão as instituições financeiras. Este último capital, também chamado por ele de “capital portador de juros” busca “fazer dinheiro” sem sair da esfera financeira, sob a forma de juros de empréstimos, dividendos e outros pagamentos recebidos a título de posse de ações. Os investidores institucionais atuam com fundos de pensão, fundos coletivos de aplicação, sociedades de seguros, bancos que administram sociedades de investimento, bônus do Tesouro e outras formas de títulos da dívida pública, obrigações das empresas e ações. Buscaram suas bases na centralização dos lucros não reinvestidos das empresas e das rendas não consumidas das famílias (especialmente os planos de previdência privada e a poupança salarial) formando um trampolim de uma acumulação financeira de grandes dimensões. Foi necessário que os Estados mais poderosos decidissem liberar o movimento dos capitais e desregulamentar e desbloquear seus sistemas financeiros a partir de 1979-81, dando início ao sistema de finança mundializada e interconectada internacionalmente. Os investidores institucionais foram os primeiros beneficiários da desregulamentação monetária e financeira e ao longo dos anos 80, eles tiram dos bancos o primeiro lugar como pólo da centralização financeira. O mercado de câmbio com taxas flexíveis e o colapso do sistema de Bretton Woods foi o primeiro a entrar na mundialização financeira, junto com a abertura externa e interna dos sistemas nacionais (o livre comércio internacional) antes fechados e compartimentados, conduziram à emergência de um espaço financeiro mundial.
As consequências mais dramáticas desta liberalização foi a crise da dívida externa do Terceiro Mundo. Estes países pegaram muito dinheiro emprestado a juros baixos nos anos 70 (Brasil pra financiar grandes projetos) e aí veio o golpe de 1979 quando as taxas explodiram, multiplicando por 3 e até por 4 os juros a serem pagos por estes países. A crise foi dramática e o FMI e Banco Mundial (por imposição americana) impôs ajustes estruturais (para garantir o pagamento da dívida) provocando crises econômicas e sociais, privatização de estatais, bancos e até de serviços públicos na AL (água, gás, telefone, eletricidade) e desindustrialização, aumentando a dominação da periferia pelo centro. O Brasil recorreu ao FMI e sua dívida cresceu como uma bola de neve, quanto mais pagava mais devia – houve queda do PIB e até quedas das taxas sociais de desenvolvimento (como aumento do índice de mortalidade infantil devido ao enxugamento de recursos pelo Estado para pagar os juros). A violência da crise financeira na América Latina ocorreu na proporção da desindustrialização, do desemprego e da pobreza provocada pela abertura ultraliberal. Mas em termos de valores absolutos de transferências financeiras, a dívida pública decisiva não foi a do Terceiro Mundo, mas a dos países mais avançados : EUA e Europa. Investidores financeiros estrangeiros financiaram déficits orçamentários dos grandes países industrializados pela aplicação de bônus do Tesouro e outros compromissos da dívida sobre o mercado financeiro.
Mas o mais importante da análise de François Chesnais é que ele aprofunda a análise sobre como o capital financeiro passa a dominar o sistema econômico como um todo e a partir daí o declínio econômico resultante desta supremacia financeira e as consequentes crises neoliberais, até hoje acontecendo. A partir dos anos 80 o capital financeiro transforma o sistema, inclusive juridicamente, despendendo energias consideráveis para subordinar os administradores industriais aos interesses do mercado bursátil, transformando seus agentes, interiorizando valores e códigos de conduta. O administrador financeiro passa a ser sujeito em vez de objeto em relação ao administrador industrial. As prioridades se invertem, juros dominam lucros e os grupos são dirigidos por pessoas para as quais a tendência da Bolsa passa a ser mais importante e os valores da finança triunfam. Os assalariados foram as principais vítimas da chegada dos proprietários acionistas. É contra eles que se exerce o novo poder administrativo. A flexibilização do emprego e o recurso sistemático ao trabalho barato e pouco protegido dominam o ambiente por meio da deslocalização e da subcontratação internacional. Ou seja os empregos se deslocam para o Terceiro Mundo onde o trabalho é precarizado e pouco protegido e os salários muito mais baixos, devido à ausência de regulamentação do trabalho. As filiais no exterior e as redes de subcontratação sustentam os lucros e os valores acionários. E criam nos países de origem dos grupos as condições de forte pressão para impor “reformas” que organizam o retrocesso social. A fuga de cérebros para os EUA também é resultado desse processo na área de P&D.
As promessas neoliberais em matéria de crescimento econômico, de emprego e de bem estar social resultaram em desastre completo, apesar do apoio da imprensa (quase totalidade da grande mídia reza na cartilha neoliberal) dizendo que a economia “está cada vez melhor”. Segundo o autor se se usa o indicador de taxa de crescimento per capita do PIB (indicador de produção e riqueza) constata-se que: a) uma taxa de 4% no período 1960/1973; b) 2,4% entre 1973/1980; e c) e uma queda para 1,2% entre 1980/1993, não aumentando depois disso. Já o PIB mundial não superou 2% ao longo da década de 1990, enquanto que foi de 7% no período keynesiano 1963/1973, caindo para 3% entre 1973/1990. Outro indicador importante é a taxa de crescimento do produto industrial: nos países da OCDE, ela passou de 6% no início dos anos 60 para 2% ao longo dos anos 90. O crescimento econômico cai devido à queda no nível dos investimentos e estes caem porque uma parte cada vez maior dos lucros está sendo direcionada ao capital financeiro e não sendo reinvestida na produção e também uma parte cada vez menor direcionada aos salários. Como resultado deste processo : a taxa de crescimento é lenta e o desemprego aumenta, junto com as desigualdades sociais.
Um relatório recente da OCDE (2014) — sugestivamente intitulado “Divididos estamos: porque aumenta a desigualdade”, indica que “a renda média de 10% das pessoas mais ricas representa nove vezes a renda dos 10% mais pobres” nos países (ricos, em sua maioria) que integram esta organização. A distância aumenta em dez para um na Grã-Bretanha, Itália e Coreia do Sul; chega a quatorze para um em Israel, Estados Unidos e Turquia, diz o informe. O Relatório reconhece que houve aumento da desigualdade entre seus membros - ”O número de famílias sem renda de trabalho dobrou em Grécia, Irlanda e Espanha; e subiu 20% ou mais em Estônia, Itália, Letônia, Portugal, Eslovênia, Estados Unidos, Inglaterra e País de Gales.”
Nos últimos 30 anos, mostra o estudo, as reformas tributárias em todas as nações da OCDE cortaram de forma substancial os impostos cobrado aos mais ricos. A média de taxação caiu de 66%, em 1981, para 43%, em 2013. E as taxas cobradas de dividendos sobre lucros recuaram de 75% para 42%. É o capital financeiro dominando ideologias e valores, formando o pensamento único (vide Consenso de Washington) e conquistando a superestrutura política , nos meios políticos dos EUA e Europa. O pensamento único decreta o fim da política e dos partidos, não existe mais “esquerda e direita”. Na verdade o pensamento único consegue transformar os partidos de esquerda em partidos neoliberais, não havendo muitas diferenciações hoje entre democratas e republicanos (nos EUA) e nos partidos de esquerda e de direita na Europa.
Os dados sobre os Estados Unidos mostram que “a renda por família, após o pagamento de impostos, mais do que dobrou entre 1979 e 2007, entre o 1% mais rico. Na fatia dos 20% mais pobres, caiu de 7% para 5% no mesmo período. Um quarto de todos os lares da Inglaterra e País de Gales, cerca de 20 milhões de pessoas, vivem em estado de pobreza atualmente, um sólido legado de sucessivos governos neoliberais, desde Thatcher, passando por Blair ... Pesquisas indicam que em pleno inverno, um número crescente de famílias inglesas vive o pior quadro de aperto financeiro desde a II Grande Guerra.
Robert Reich, ex-secretário do Trabalho do Governo Clinton, filmou um documentário mostrando o agravamento das desigualdades nos EUA, com o título Inequality for All (Desigualdade para Todos). Em 1978, o salário médio atingia US$ 48 mil, enquanto hoje despencou para US$ 34 mil com condições de poder aquisitivo equivalentes.....Já ao contrário, o rendimento médio para cada família que compõe o 1% da parcela mais rica da população norte-americana, de US$ 393 mil, em 1978, passou para US$ 1,1 milhão.
A ditadura dos “mercados financeiros” sobre todo o processo de acumulação de capital revela o caráter insaciável do apetite dos acionistas administradores e das sociedades especializadas da indústria financeira e que se encontra na base dos escândalos financeiros desde então : da Enron até o Lehmann Brothers na crise atual, a partir de 2008; tendo estas sociedades impelidas a assumir mais riscos e comportamentos de altos riscos.
Americanos de classe média foram ativamente incentivados a se endividar continuamente (devido à perda de poder aquisitivo nas últimas décadas), oferecendo suas casas em garantia, ou a canibalizar seus fundos de aposentadoria, confiando em que os preços dos imóveis e as bolsas de valores desafiariam permanentemente a lei gravidade - um grande número de famílias operárias, endividada e sem renda, entraram na fila dos despejos e amargaram a perda de suas residências.....As coisas pioraram com a recessão iniciada no final de 2007, que destruiu cerca de 9 milhões de empregos, degradou um pouco mais as condições de trabalho e rebaixou salários (menos de um décimo dos trabalhadores do setor privado americano pertence a um sindicato). A indústria agora representa somente 12% dos postos de trabalho nos EUA e boa parte dela se transfere para países do Terceiro Mundo.Os sindicatos perderam seu poder de barganha com a crise neoliberal, contribuindo para a depreciação dos salários.
Em 2007, a taxa de desemprego para a faixa etária de 20 a 29 anos foi de cerca de 6,5%. Hoje (2012), a taxa de desemprego para esse mesmo grupo de idade é de cerca de 13% (Michael, no The Economic Collapse). Desde o ano de 2000, os rendimentos dos lares americanos liderados por pessoas entre as idades de 25 e 34 anos caíram em cerca de 12% depois de descontada a inflação. A renda familiar média para as famílias com filhos caiu bastante, em cerca de US$ 6.300 entre 2001 e 2011. Mais de uma em cada cinco crianças nos Estados Unidos está atualmente vivendo na pobreza. Cerca de 48,7 milhões de norte-americanos vivem hoje na pobreza, constituindo-se na taxa mais elevada dos últimos 17 anos: 15,1%.. De acordo com o Departamento de Agricultura, em 2012, 46 milhões de pessoas usufruíram de algum tipo de subsídio alimentar mensal (os chamados foodstamps), crescimento espantoso se comparado aos 17 milhões contabilizados em 2001 e aos dois milhões em 1969.
As tent-city (cidade-acampamento) é o correspondente às favelas brasileiras, com os mesmos problemas, é resultado da precarização das condições de vida e trabalho nos Estados Unidos e seu surgimento se deu em várias partes do país, especialmente a partir de 2005. Existe cerca de 30 cidades deste tipo nos EUA. Detroit é uma delas – a cidade pediu falência em 18 de julho de 2013 (para se proteger contra credores). Detroit já foi a capital da indústria automobilística americana – sede das Big Three – as “Três Grandes” : General Motors, Ford e Chrysler ; foram atingidas pela crise atual. A crise diminuiu os consumidores de automóveis e transferiu as indústrias para outros países. O desemprego, a miséria e a fome é pior em Detroit que a média americana : 36% da população vivem abaixo da linha de pobreza. É uma cidade abandonada: possuia 2 milhões de habitantes nos anos 50, hoje possui 700 mil. A profunda e progressiva desindustrialização pela qual os Estados Unidos passou a partir dos anos 1980 e seu caráter crônico depois da crise financeira de 2007, atacou a cidade-automóvel em cheio. Virou uma cidade-fantasma:35% do território do município está desabitado: prédios, hotéis, delegacias de polícias, igrejas, bibliotecas e teatros completamente vazios e destruídos - cerca de 40% da iluminação pública não funciona, mais de metade dos parques da cidade fecharam e apenas um terço das ambulâncias estão operacionais.
O capital portador de juros, especulativo e predador, domina o mercado econômico mundial, gozando de toda liberdade que conseguiu a partir das desregulamentações dos sistemas financeiros nos anos 80 e é exatamente esse ambiente neoliberal que lhe deu as condições necessárias para adquirir sua hegemonia internacional – condições essas que propiciaram e detonaram as crises atuais, provocando as bolhas financeiras, os ganhos espetaculares de altos riscos e a supremacia sobre o capital produtivo. O caso de algumas estatais brasileiras que foram privatizadas são exemplos desses comportamentos – CEMIG, por exemplo, era uma estatal até início dos anos 2000. Depois que entrou o governo neoliberal em 2002, desde então está sendo privatizada. Hoje a maioria das ações da estatal, cerca de 70% pertencem a acionistas internacionais e as prioridades mudaram. A maior parte dos lucros são transformados em dividendos pra remunerar seus acionistas e os níveis de investimentos caíram. Pra pressionar o aumento dos lucros os acionistas pressionam a direção da empresa para reajustar os preços acima da inflação, transformando a energia desta empresa numa das mais caras do país. A prioridade deixa de ser o usuário e passa a ser o acionista.
O jornalista James Shaft observou no NYT que, “ao que tudo indica, as empresas estão muito mais dispostas a acumularem papel-moeda ou utilizá-lo para compra de ações do que promoverem a criação de nova dinâmica produtiva”. Enquanto, na década de 1970, as improdutivas imobilizações de capital constituíam, em média, cerca de 5% do ativo das empresas norte-americanas, em 2010 este patamar passou a 60%. Apesar do fato de disporem de grandes volumes de liquidez em suas caixas, as grandes empresas não investem.Quando a fortuna dos mais ricos não é aumentada graças às atividades produtivas, mas apoderando-se de cada vez maior percentual do valor agregado, então o crescimento econômico desacelera.Existe, portanto, uma economia que recusa-se a recuperar-se, apesar de todos os generosos fluxos de papel-moeda. O problema é conhecidíssimo: trata-se da “armadilha de liquidez”, descrita por Keynes na década de 1930. Para ser enfrentada existe apenas uma única solução: recorrer ao uso da segunda ferramenta da política econômica, o gasto fiscal....
Daniel Miranda Soares é economista e EPPGG aposentado, Mestre pela UFV e ex-professor de Economia.
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