Ouverture
Sábado à noite. Os jovens - e os coroas também - procuram diversão. Há uns anos atrás isto significava sair, jantar, beber e dançar até o chão, como se não houvesse amanhã. Hoje em dia, uma boa parte prefere ficar em casa, com a cara iluminada pelas maravilhas da internet. De qualquer forma, sábado é a noite mais esperada da semana.
No último sábado deixei a internet de lado e enveredei pelo submundo da Voluntários da Pátria, com suas calçadas esburacadas e enlameadas. Chegamos a quadra de uma famosa escola de samba, onde estava rolando uma festa do tipo "som Brasil". Tudo muito bem até aí, porém nesse instante começa a tragédia: atualmente divertir-se é sinônimo de esperar, esperar, esperar e esperar mais um pouco em imensas e insalúbres filas.
1º ato: A fila para entrar
Ela estava enorme. Muito mais comprida que aqueles dragões chineses e, logicamente, com muito menos charme. Pessoas felizes, bebendo, fumando, tagarelando e... incrivelmente conformadas com o fato de esperarem por uma hora em uma fila somente para entrar no local da festa. A apatia é a cara desta geração. Entramos na fila à meia-noite. Perceberam que eu estava um pouco contrariado. Respondi: "Nada disso, até a uma hora conseguiremos entrar. Alegria! Alegria". Minha previsão não se concretizou e conseguimos entrar faltando 5 minutos para a uma hora da manhã.
2º ato: A fila para comprar bebida
Entramos. O lugar ainda estava meio vazio e confesso que senti uma certa pontinha de decepção com isso. Algo que eu me arrependeria amargamente em torno de uma hora depois. O "som Brasil" que estava rolando provavelmente era o menos menos menos conhecido de todos os tempos. Música para iniciados. Mas iniciados muito iniciados. Tipo, nível 33 da maçonaria. Músicas que são conhecidas somente pelos grão-mestres do hipsterismo cotidiano. Muitas pessoas barbudas. Mas muitas mesmo. Barba é acessório obrigatório nos tempos atuais. Senti-me em meio a uma convenção regada a álcool dos cursos de ciências sociais. Decidi que vou tirar a barba e fazer administração. Ok. Vamos beber. Onde compra a bebida? Ali. Ali? Sim, ali, naquela... fila! Encaramos a segunda fila da noite, depois da fila para entrar, a fila para beber. Mas, peraí... Ainda não era a fila para beber. Era apenas a fila para comprar o tíquete para retirar a bebida em... outra fila.
3º ato: A fila para retirar a bebida
Tíquetes na mão. Garganta seca. Encaremos a fila para retirar a bebida. Agora a DJ já parecia ter esgotado (ou se dado conta de que estava bem chato) seu repertório "amodoro esses carinhas doidivanas da MPB do B" e começara a tocar coisas mais conhecidas, tipo Jorge Ben Jor etc e tal. Eis a fila para retirar a bebida: pessoas desejando ansiosamente beber, bloqueadas por uma pessoa à sua frente também muito desejosa de álcool. Imaginem que tragédia. Você quer beber e não consegue pois na sua frente existem várias pessoas querendo beber que atrasam o seu acesso à bebida. A fila é um sofisticado instrumento de tortura. Além de fazer você ter mais vontade de beber, para esquecer as agruras de estar na terceira fila da noite. Mas tem mais.
4º ato: A fila do banheiro
A essa altura, depois das primeiras bebidas, depois de ter ido buscar a cerveja no balcão que só entregava outros drinques (ou seja, para retirar a bebida as filas eram duas: uma para cerveja, outra para os drinques) a casa estava lotada. Os barbudos se beijavam loucamente. Os coroas sambavam como se não existisse amanhã. Meninas vomitavam pelos cantos. A DJ fora descansar e uma banda bizarra tocava maluquices sem sentido. Arrependi-me amargamente de ter sentido aquela pontinha de decepção de quanto entramos e percemos a casa um pouco vazia. Agora ela estava cheia. Muito cheia. E todos já estavam suficientemente bêbados e com vontade de urinar. Havia 4 banheiros químicos, essas casinhas azuis, nojentas, mas funcionais. Quatro casinhas para, sei lá, mais de mil pessoas. As filas estavam enormes. Recomeça a tortura. Você está com a bexiga estourando e impedido de esvaziá-la pois muitas outras pessoas chegaram antes e a esvaziam bem ali, a alguns metros de ti, ostentando. É a ostentação da bexiga vazia. Pronta para outra rodada. Chegou minha vez. Uma lata de Polar entope o mictório. Ok. Consegui fazer o que precisava mesmo assim. Voltemos à pista. Hora de fumar um cigarro.
5º ato: A fila para fumar
A vontade de fumar vinha desde o momento que entramos. Antes das filas da bebida, da retirada da bebida e do banheiro. Mas, estranhamente ninguém fumava lá dentro. Não havia o menor cheiro de cigarro. Não havia nenhuma luzinha laranja no raio de 100 metros. Eu estava achando isso tudo muito estranho. Estão todos bêbados, 15% da população é fumante, embora ali o percentual devesse ser maior, pois os boêmios fumam costumeiramente e mesmo assim ninguém, ninguém, ninguém fumava? Ok, a lei é dura, só se pode fumar na rua e em casa, mas mais surpreendente do que a proibição é o fato de nenhuma viva alma desobedecer a regra. O jeitinho brasileiro foi para o espaço. E agora começa o verdadeiro horror. Onde fica o fumódromo? Ali, está vendo, aquela placa escrita à mão: FUMÓDROMO. Beleza, vamos lá. Encontramos um corredorzinho que levava a uma porta para a rua. Ali um "cercadinho", feito com aquele material que usam para proteger os pedestres em relação às obras, à céu aberto (obrigado Deus, não chovia) que contava com uns 10 metros quadrados onde se aglomeravam umas 80 pessoas, cigarrinhos na boca, entre os dedos, ombro a ombro, no infortúnio de possuir um hábito inaceitável. Era impossível se mexer. Se você entrasse com o cigarro entre os dedos ele queimaria até o final sem ser possível levá-lo à boca. Dica: quando fores ao fumódromo entra com o cigarro na boca. Caso contrário, não fumarás. Para sair era mais difícil, pois as levas de fumantes não paravam de chegar e o espaço ficava cada vez menos. Preciso de mais uma bebida. E o ciclo continua, fila para comprar, fila para retirar, fila para mijar, fila para fumar...
Grand finale
Mais uma dose, é claro que eu tô a fim. Fila novamente. Mas, a essa altura da madruga, com aquele exército de bêbados e com a fila para a entrada ainda colocando gente para dentro, a situação tornou-se complicada. O que era uma fila quase organizada no início da festa agora tornara-se um bloco homogêneo de cabeças à minha frente, movendo-se todas em direção à bebida, como aqueles zumbis de Walking Dead que encurralam alguém atrás de uma cerca de tela. Era a visão do inferno. A massa movimentava-se cadencialmente: cabecinhas para a esquerda, cabecinhas para a direita. Um murmúrio se elevava a partir delas, eu quase podia ouvir, em vez de "braaaains", "bebiiiiidaaaa". O apocalipse zumbi já aconteceu. E torna a acontecer. Vá numa fila, ops, numa festa em qualquer sábado desses e veja com seus olhinhos que a terra há de comer.