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Um conto sobre a Guerra do Paraguai

13 de Dezembro de 2014, 10:06 , por Eduardo Freitas - | No one following this article yet.
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LAS CHIVITAS (UM CONTO DE GUERRA)

Numa colina, ao longe, a fumaça negra de uma batalha subia alheia aos homens e animais mortos e a toda destruição. Passava pouco do meio dia, não havia vento nem nuvens, o sol a pino no céu profundamente azul não deixava pairar sombra de dúvida: a guerra continuava mais viva do que nunca.

O único ruído, além daquele ensurdecedor produzido pelas cigarras, provinha de um cavalo ensanguentado que corria sem rumo quase atropelando os homens do Tenente Rodrigo Aguiar e assustando as suas montarias.

Talvez fosse a única testemunha do horror que se passara lá naquela colina. Apesar da velocidade incrível que o cavalo cruzou pelo pequeno pelotão, Rodrigo ainda conseguiu identificá-lo, pelo tipo de sela que levava, como montaria do Exército Imperial Brasileiro.

O espectro da morte rondava.

Provavelmente, um grupo avançado fora pego de surpresa e destroçado pela aguerrida resistência paraguaia. Passados cinco anos do início da mortandade ainda os paraguaios resistiam e não entregavam facilmente a vida perante o avanço arrasador do inimigo brasileiro.

“Devem ter sido os homens do Silva Corrêa”, disse um cabo negro, “que Nossa Senhora tenha piedade”.

Rodrigo olhou fixamente para o filete negro de fumaça que começava a se dissipar além da colina e apenas murmurou entre dentes: “Que tenha piedade de todos nós, mesmo não merecendo”.

Agora era preciso observar de perto o que havia acontecido, desviando por algumas horas da ronda que estavam realizando naquela região montanhosa. Sempre havia a possibilidade da existência de sobreviventes.

Fazia dois dias que caminhavam sem descanso, em busca de um grupo que estava atacando de forma sorrateira as tropas brasileiras e sumindo logo em seguida. Uma guerra de guerrilha, que certamente contava com o apoio de famílias paraguaias que davam abrigo a estes combatentes invisíveis de Solano Lopez.

Notícias davam conta de que andavam escondidos por ali e a missão do Tenente Rodrigo era dar cabo destes homens de uma vez por todas, antes que provocassem mais baixas do lado brasileiro. Pelo visto estavam na iminência de encontrá-los.

Rodrigo Aguiar ordenou aos seus homens que avançassem em direção à colina, atentos a qualquer movimentação. Se os homens de Silva Corrêa, conhecidos por sua bravura, foram dizimados da forma como aparentava ter acontecido, toda a atenção era necessária para evitar o encontro com a morte logo mais à frente.

O céu permanecia de um azul luzidio, nenhuma nuvem como testemunha daqueles 14 homens que cavalgavam em direção ao mistério, aqueles homens que faziam a guerra tão longe do Rio de Janeiro e do Imperador.

Rodrigo pensava em quanto tudo isso podia ser irônico, ter de enfrentar um homem que até então jamais ouvira falar, até a morte de um ou de outro. Às vezes de ambos. Não parecia ter lógica. Na distância dos centros de poder eram tomadas decisões que afetavam a vida não só de um homem, mas de toda a sua descendência.

“Se um paraguaio me mata aqui hoje, não terei filhos, netos e estes também não terão. Não terão nem a chance, porque não existirão”, pensava rapidamente enquanto seu cavalo trotava devagar.

Quem mata um homem mata também toda sua geração. Este era o trágico saldo das guerras.

Quando já se passavam 30 minutos de cuidadosa cavalgada em direção à colina os homens que se encontravam mais a frente do grupo informaram seu tenente que um casebre fora avistado. Os homens ficaram eriçados, ali estava a oportunidade de revistar um possível esconderijo do inimigo.

“E se eles estiverem escondidos lá?” perguntou idiotamente um deles.

“E se for uma emboscada?” questionou outro mais previdente.

Rodrigo simplesmente disse que as respostas seriam dadas assim que invadissem o casebre.

Destacou dois homens para que o acompanhassem até o local; ordenou que os outros seguissem pelos flancos. Quando chegaram a apenas dez metros do casebre Rodrigo viu que se tratava de uma construção toda de madeira, muito rústica. Ladeada por cochos e com um pequeno lago para os patos logo adiante. Se tratava obviamente de uma pequena propriedade de criação de animais. Não havia sinal de viva alma. Se alguém ainda vivesse ali ou estaria muito longe ou estaria dentro da casa. As janelas estavam fechadas e a porta também.

Fazendo o reconhecimento em torno da casinha velha, Rodrigo e mais os dois homens que o acompanhavam depararam-se com uma cena tétrica.

Atrás do casebre estavam vários animais mortos. Galinhas, patos, porcos, um cachorro e duas vacas. Por um momento o sangue dos três homens ficou congelado nas veias, mesmo com o sol quente do começo da tarde.

Algumas moscas-varejeiras já desfilavam sobre as carcaças dos animais, que apresentavam ferimentos de espada.

"Foram todos trucidados, provavelmente pelos mesmos homens que acabaram com o pelotão de Silva Corrêa nos arredores na colina", era o pensamento daqueles homens, embora quase pudesse ser ouvido, quase mais alto que o zumbido das varejeiras.

Havia ainda outra hipótese ainda mais dantesca: os próprios brasileiros teriam cometido esta barbárie e recebido o castigo antes mesmo de conseguirem se distanciar do palco do crime. Era quase certo que quem quer que habitasse aquele casebre tivesse passado pelo mesmo tratamento.

“Os corpos devem estar dentro da casa”, foi o pensamento sombrio de Rodrigo.

Não sendo mais possível adiar o momento crucial e passado o espanto inicial com os corpos dos animais que jaziam ao fundo do casebre, Rodrigo ordenou que os homens ficassem um de cada lado da porta, que, estranhamente, estava fechada por dentro.

Tentou abri-la empurrando. Não cedeu. Por fim decidiu arrombá-la, o que fez aplicando um golpe violento com o pé. A velha porta de madeira não resistiu ao primeiro golpe e tombou. Lá de dentro ouviu murmúrios.

No canto da casa estava uma mulher, com duas crianças pequenas e duas cabritinhas. A mulher chorava e abraçava as crianças e os animais com o mesmo ímpeto de proteção, como se os seus braços de mãe pudessem evitar qualquer mal; como se as suas lágrimas pudessem formar um véu que os protegesse de toda brutalidade.

Rodrigo, instintivamente - e apesar de ter passado pelo processo desumanizador da guerra -tentou acalmá-la, porém a mulher parecia estar em choque e repetia sem parar “No mate las chivitas señor! No mate las chivitas señor! Ellas dan la leche de los niños”!

Rodrigo não conseguiu mais ficar dentro do casebre. Parecia que todo o peso, de todos estes anos de sangue e morte estava sobre suas costas. Ordenou que o restante da tropa se aproximasse e que a porta do casebre fosse consertada e colocada no lugar. Mandou que queimassem os cadáveres dos animais ao fundo do casebre e que os homens se reabastecessem de água no poço da propriedade.

Tão logo fosse isso feito se colocariam novamente em marcha até a colina.

A guerra ainda não acabara, embora um bom pedaço da humanidade de Rodrigo Aguiar tivesse ficado naquele lugar.


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