Na semana passada, os americanos tomaram conhecimento de um impressionante conjunto de programas de monitoramento até então mantidos sob sigilo. São programas que fazem parte de uma estrutura de segurança secreta, criada com o pretexto de impedir que atentados terroristas em solo americano voltem a ocorrer.
A reação dos analistas tem variado: há os que se mostram extremamente indignados, os que demonstram preocupação equilibrada e os que não dão a mínima para as implicações desses programas. Desse último grupo vêm críticas severas a Edward Snowden, ex-funcionário da Booz Allen Hamilton que vazou os documentos da Agência de Segurança Nacional (NSA, na sigla em inglês), provocando uma discussão acalorada sobre o equilíbrio entre privacidade e segurança na era digital. Há também quem o considere apenas um narcisista desequilibrado ou um nerd com tendências sociopatas.
Pode-se questionar se suas ações são morais ou justificáveis, mas, nos e-mails que trocou com o repórter Barton Gellman, do Washington Post, Snowden deixou seus motivos bem claros. Em sua opinião, o aparato estatal de segurança cresceu em demasia e tornou-se excessivamente intrusivo diante da ameaça até certo ponto reduzida do terrorismo. “Em nossa história, já vencemos ameaças maiores do que as que nos oferecem grupos terroristas desorganizados e Estados párias sem precisar recorrer a esse tipo de programa”, disse ele a Gellman.
Aumento da vigilância e assédio policial
São palavras fascinantes. No entanto, deve-se indagar se a afirmação mantém-se em pé após submetermos a história dos EUA a análise. Exatamente a quais situações Snowden se refere ao dizer que ameaças maiores do que as de hoje foram evitadas sem que fosse cometida nenhuma infração grave à liberdade? Houve mesmo situações assim?
Recuando no tempo, podemos desconsiderar sumariamente os últimos 12 anos. Depois do 11 de setembro, o governo de George W. Bush decretou medidas que ainda serão usadas como sinônimo de abuso de poder do Executivo – medidas que muitos dos admiradores de Barack Obama lamentam que o atual presidente não tenha se empenhado mais em restringir.
Entre elas está incluído o programa que autoriza a NSA a grampear, sem mandado judicial, ligações telefônicas de americanos. Revelado pela primeira vez em 2005, é em virtude desse programa que algumas pessoas hoje temem que a NSA tenha se habituado a usar sua vasta infraestrutura para identificar e armazenar qualquer informação que seus funcionários obtenham sobre os milhões de pessoas que vivem nos EUA. Os muçulmanos do país também se consideram vítimas frequentes de investidas contra as liberdades civis e sofrem com o aumento da vigilância e com o assédio frequente por parte das autoridades policiais.
Violação de correspondência e repressão a manifestações
Não é menos improvável que, ao falar com Gellman, Snowden estivesse pensando nas décadas de 60 e 70. Como é próprio de um período marcado por turbulências e transformações sociais, muitas das ameaças que o governo americano enfrentou ao longo desses anos eram de natureza interna. Também foi uma época em que as agências de segurança dos EUA, tanto as que atuavam internamente como as que operavam em âmbito internacional, detinham poderes extraordinários, mais amplos do que os que jamais lhes haviam sido concedidos, pois o Congresso, com frequência, deixava de exercer suas responsabilidades supervisoras.
A ação do FBI se notabilizou pela perseguição aos que participavam do movimento pelos direitos civis ou de outras atividades consideradas subversivas. Até um célebre defensor da paz como Martin Luther King foi alvo de agentes da polícia federal, que o espionaram com o intuito de reunir informações que pudessem ser usadas contra ele e seu movimento. O Programa de Contrainteligência do FBI – mais conhecido como Cointelpro – atingiu pessoas de todo o espectro ideológico, dos Panteras Negras à Ku Klux Klan, sempre em nome de garantir a segurança.
Foi preciso que o escândalo de Watergate eclodisse, levando o Congresso a intervir, para que o FBI e outras agências voltassem a ser melhor controladas. Os trabalhos de uma comissão do Senado para a análise de operações de inteligência – conhecida como Comissão Church – revelaram uma série de ações ignoradas pela sociedade americana, da violação de correspondências à repressão a manifestações contra a Guerra do Vietnã, além dos projetos Shamrock e Minaret.
Reformas foram sendo enfraquecidas
No Shamrock, todas as comunicações via telégrafo dos EUA com o exterior era grampeadas, fosse qual fosse sua origem ou seu destino. No auge do programa, eram interceptados 15 mil telegramas por mês.
Cabia aos agentes do Minaret analisar essas comunicações eletrônicas e repassar para outros órgãos de inteligência e autoridades policiais informações sobre cidadãos americanos predeterminados. O Minaret operou de 1969 a 1973, ao passo que o Shamrock, iniciado em 1945, continuou funcionando até 1975, quando o então diretor da NSA, Lew Allen, o encerrou.
As atividades reveladas pelas investigações da Comissão Church compõem uma analogia histórica quase perfeita com os programas de monitoramento digital que hoje despertam preocupações – com o agravante de que, em vez de se restringir ao armazenamento de dados identificando remetente e destinatário, na época, o conteúdo dos documentos era analisado.
As revelações da comissão desencadearam uma série de reformas, incluindo a aprovação da Lei de Vigilância de Inteligência Estrangeira (Fisa), que instituiu o Tribunal de Vigilância de Inteligência Estrangeira (Fisc), a fim de garantir uma supervisão bem mais rígida das ações do Executivo. Infelizmente, de lá para cá, essas reformas foram sendo enfraquecidas por sucessivos governos e o Fisc autorizou a compilação de dados pela NSA.
Um regime de censura postal
Nos anos 50, a União Soviética representava uma ameaça à existência dos EUA e uma guerra nuclear parecia uma possibilidade real. Nesse contexto, o governo americano recorria a todos os instrumentos que tinha à disposição para identificar subversivos – com frequência ferindo e até esmagando os princípios constitucionais que encontrava pelo caminho.
Num exemplo dos excessos cometidos pelo Legislativo, que deveria ser a esfera de poder mais alinhada com os interesses da população, a Comissão de Atividades Antiamericanas da Câmara e a Subcomissão Permanente de Investigações do Senado usaram os amplos poderes que o Congresso concedera a si próprio para realizar inúmeras audiências sobre a ameaça comunista ao país, incluindo a investigação de roteiristas e atores de Hollywood e as infames acusações do senador Joseph McCarthy sobre a presença generalizada de agentes comunistas em órgãos governamentais. As investigações levaram a graves violações dos direitos à liberdade de expressão e à livre associação.
Recuando ainda mais no tempo, chegamos à 2ª Guerra, quando nem os pais de Snowden eram nascidos. Enquanto durou a guerra, os EUA cometeram infrações ao direito à privacidade dos americanos que eram no mínimo tão graves quanto as transgressões que observamos hoje. Nos dias que se seguiram ao ataque a Pearl Harbor, a legislação de emergência aprovada pelo Congresso criou um Departamento de Censura, concedendo a seu diretor “autoridade ilimitada” para censurar as comunicações internas. Com isso, instalou-se nos EUA um regime de censura postal, submetendo toda a correspondência a procedimentos de abertura, verificação e acompanhamento investigativo. O programa operava em estreita cooperação com o Departamento de Serviços Estratégicos, que, posteriormente, daria origem à CIA e era visto como necessário para impedir que espiões instalados no país se comunicassem livremente.
Lincoln suspendeu direito ao habeas corpus
Com o fim da guerra, veio a criação da NSA, a recriação da Agência de Segurança das Forças Armadas e a implantação dos programas Shamrock e Minaret. E, enquanto durou a guerra, num dos casos mais repulsivos de violação das liberdades em nome da segurança, milhares de americanos de ascendência japonesa foram detidos e transferidos para campos de concentração. As famílias levadas para esses campos não foram acusadas de nada: o país de origem de seus parentes era evidência suficiente de sua culpabilidade.
Snowden também dificilmente aprovaria o comportamento do governo americano durante a 1ª Guerra, quando o presidente Woodrow Wilson e o Congresso somaram forças para aprovar a Lei de Espionagem, de 1917, que tornava um crime interferir em operações militares, e a Lei de Sedição, de 1918, que ampliava a lei anterior e criminalizava qualquer pronunciamento que pusesse o governo ou o esforço de guerra sob uma luz negativa e autorizava o diretor dos Correios a deixar de entregar qualquer correspondência que, em sua avaliação pessoal, tivesse o potencial de prejudicar a situação dos EUA na guerra – se o governo processar Snowden, é provável que o faça com base na Lei de Espionagem.
A Guerra Civil tampouco viu a liberdade triunfar sobre a segurança. Pelo contrário, foi então que o Executivo começou a consolidar o controle que modernamente viria a exercer sobre a área de segurança nacional. Abraham Lincoln não titubeou ao suspender o direito ao habeas corpus, provisão constitucional que permite um processo judicial mais célere, a fim de promover o esforço de guerra – uma investida contra os cidadãos que, de lá para cá, nenhum outro presidente tentou repetir.
Lembrança falsa de um tempo que nunca existiu
Lincoln também encarregou seu diretor dos Correios (cargo que então tinha status ministerial), Montgomery Blair, de examinar as correspondências com o objetivo de identificar simpatizantes dos confederados. Como na 1ª e na 2ª Guerras, qualquer correspondência era considerada alvo legítimo das atividades de inteligência.
Até os fundadores dos EUA, que deveriam servir de modelo para os americanos em tempos difíceis, saem-se mal na questão. O presidente John Adams promulgou a Lei de Sedição, de 1798, em razão de uma “quase guerra” contra a França. Com esse dispositivo, o governo suspendeu a 1ª Emenda da Constituição, restringindo o direito dos americanos de publicar documentos ou fazer discursos vistos como antigovernamentais – tudo em nome de proteger o país de uma ameaça que jamais se materializou e de que poucos americanos hoje se lembram.
O fato é que a época em que nós vivemos não tem nada de anômala. Pelo contrário, a história está repleta de situações em que o governo dos EUA suprimiu e até mesmo violou os direitos dos americanos em nome de garantir a segurança nacional. Em todos esses casos vemos evidências que contrariam a noção de um passado utópico, em que as liberdades permaneciam intactas, enquanto os americanos se mantinham sãos e salvos dentro de suas fronteiras. Isso não quer dizer que a NSA e o governo Obama devam ser deixados à vontade para promover a expansão de seus programas de monitoramento. Tampouco significa fazer pouco do fato de que agora o governo tem condições de copiar e armazenar os bilhões e mais bilhões de dados que as agências de inteligência interceptam, mantendo-os indefinidamente em seus bancos de dados para consultas futuras, algo com que os governos do passado só podiam sonhar.
Ainda é incipiente o debate que começamos a travar, à dura luz do dia, para saber de quais liberdades estamos dispostos a abrir mão em troca de mais segurança. Mas, ao travar esse debate, seria importante que não nos iludíssemos com a lembrança falsa de um tempo em que os EUA eram inocentes. Esse tempo nunca existiu.
Com informações de Observatório da Imprensa.
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