A difusão das novas tecnologias digitais de comunicação vai deslocar o poder, hoje concentrado nas mãos de Estados e instituições, em direção aos indivíduos. Essa é uma das hipóteses centrais de A Nova Era Digital, de Eric Schmidt e Jared Cohen, executivos do Google. O livro foi concluído no início do ano, meses antes das manifestações de junho no Brasil, turbinadas pelas redes sociais. Mas não seria impróprio supor que a voz das ruas ouvidas em grandes cidades do país tenha sido uma manifestação da tendência vislumbrada pelos autores. A internet amplamente acessível é o pilar dessa transferência de poder. No mundo, o número de usuários saltou de 350 milhões para 2 bilhões na primeira década deste século. Em uma geração, a maioria estará conectada.
A massa crescente de informação disponível, acreditam Schmidt e Cohen, resultará em uma “era de pensamento crítico”. Governos autoritários terão maior dificuldade em controlar esses novos cidadãos; governos democráticos incluirão suas demandas na agenda política.
Os limites da difusão do poder serão dados pelos filtros dos governos impostos à internet. Os autores identificam três modelos de controle: o ostensivo, praticado pela China, que censura o conteúdo da rede; o discreto, utilizado certa vez pela Turquia, que proibiu o YouTube de divulgar vídeos considerados ofensivos a um herói nacional; e o aceitável, como o da Alemanha, que proíbe a retórica neonazista.
Crítica ao “poder arbitrário”
A conversa sobre liberdades individuais de Schimdt e Cohen não é ideologicamente isenta. Ela é informada pela perspectiva americana, segundo a qual são positivas mudanças que possam impregnar culturas de qualquer quadrante dos valores caros aos Estados Unidos. Tal viés está presente na própria gênese do livro. Os dois se conheceram em 2009, em Bagdá, quando, trabalhando em um documento para o Departamento de Estado, participaram de conferências sobre como a tecnologia poderia ajudar na reconstrução do Iraque.
A associação de interesses entre o governo americano e o Google deixou o flanco aberto para críticas à esquerda. Num artigo recente no jornal The New York Times, Julian Assange, cofundador do WikiLeaks, considerou o livro “um projeto para o imperialismo tecnocrata [...] que faz proselitismo sobre o papel da tecnologia na reforma de povos e nações ao gosto do superpoder dominante”.
O proselitismo, aliás, às vezes resvala em ingenuidade dos autores, embora Assange não faça essa observação. Ao abordar a situação de países que passaram por conflitos recentes, por exemplo, o livro defende a tese de que ex-combatentes aceitariam trocar armas por smartphones e as oportunidades que esses celulares representam, argumentando que esse seria um recurso-chave de qualquer programa de desarmamento. O texto de Assange é um troco a Schmidt e Cohen. Ele foi entrevistado pelos autores em 2001, quando se encontrava em prisão domiciliar no Reino Unido. Sua posição é retratada com equilíbrio. O livro registra que sua luta não é contra o sigilo em si, mas “contra o sigilo que encobre ações que não ocorrem em nome do interesse público”. Mas critica o “poder arbitrário” de pessoas como ele. “Por que é Julian Assange, em particular, a pessoa que escolhe o que é relevante para o interesse público?” Os autores imaginam que a maioria das pessoas concordaria que algum nível de supervisão é necessário para qualquer projeto que implique denúncias visando o bem da sociedade, mas são céticos em relação à possibilidade de que isso vá acontecer.
Arquivos apagados
A Nova Era Digital se debruça sobre a fronteira entre privacidade e segurança. O livro parte da premissa de que, quanto maior o grau de segurança do Estado, menor a privacidade dos cidadãos, e vice-versa. E constata que empresas do setor estão pressionadas dos dois lados. “Se elas não superarem as expectativas em termos de privacidade e confiança, o resultado pode ser a rejeição e o abandono do produto”, dizem os autores. Por outro lado, “alguns governos considerarão muito arriscada a existência de milhares de cidadãos anônimos, não rastreáveis [...], e vão querer saber quem está associado a cada conta online”.
Embates como esse colocarão intensa pressão sobre os gigantes da tecnologia digital, que “precisarão contratar mais advogados”. É o caso do próprio Google, que, depois da publicação do livro, enfrenta um processo em um tribunal federal dos Estados Unidos por ter capturado dados de redes wi-fi em 30 países ao fazer o mapeamento do Street View.
Schmidt e Cohen querem dividir essa conta. Argumentam que os internautas devem ser responsáveis pela utilização adequada das ferramentas disponíveis, como senhas e criptografias, para garantir maior segurança. A opção “delete”, por exemplo, embora muito usada, não passa de pura ilusão, dizem eles, pois arquivos apagados podem ser facilmente recuperados. O livro adverte que as pessoas precisam se conscientizar de que já nasceu a primeira geração a ter um registro indelével – para o bem e para o mal.
Inclusão tecnológica
Há em A Nova Era Digital uma menção ao “admirável mundo novo”, mas não no sentido distópico descrito na ficção de Aldous Huxley. Os autores parecem achar realmente admirável a perspectiva de um mundo em que parte do prazer seja proporcionada por visões holográficas que emulem a realidade física, um mundo em que, em nossas casas, seremos o maestro de uma “orquestra eletrônica” de aparelhos que cuidarão de nosso cotidiano, de nossa saúde, de nossa vida.
Schmidt e Cohen são otimistas. Mesmo ressalvando que a internet não é uma panaceia para todos os males, eles atribuem à rede o poder de contribuir para a prosperidade econômica, a defesa dos direitos humanos e a promoção da justiça social. Talvez seja um exagero, resultado provável da visão determinada pelo meio em que vivem. Mas isso não diminui o mérito da defesa da inclusão tecnológica como fator de transformação.
Por Oscar Pilagallo.
Com informações do Observatório da Imprensa.
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