Publicado em 14/03/2013 por Urariano Motta*
Recife (PE) - Quis a ironia que se unissem hoje as manchetes de todos os jornais para a eleição do novo Papa e o Dia Nacional da Poesia. Pois 14 de março é o dia do nascimento do imenso poeta Castro Alves, e, neste mesmo dia, à margem se insinua a cumplicidade do Papa com a ditadura argentina. Dizia o poeta:
“Deus! ó Deus! onde estás que não respondes?
Em que mundo, em qu’estrela tu t’escondes
Embuçado nos céus?
Há dois mil anos te mandei meu grito,
Que embalde desde então corre o infinito…
Onde estás, Senhor Deus?”
Sagrada eloquência. Até parece que o poeta nos versos se refere aos jornais de hoje, que em notícias marginalizadas pela saudação ao novo Papa, de passagem dizem:
Nos anos da ditadura argentina, o novo Papa Francisco, que então atendia pelo nome de Jorge Mario Bergoglio, teria dado o sinal verde para a prisão e torturas em companheiros de sua congregação, a Companhia de Jesus. (Creiam, não há qualquer zombaria em assim reunir os nomes de Francisco, que vem do humanista São Francisco de Assis, mais a irmandade chamada Companhia de Jesus e o novo Papa. A ironia está nas notícias que correm rápido sobre a absurda trindade: São Francisco, Jesus e o velho Jorge Mario Bergoglio).
E continuam, como sussurros à margem: na última década, sinais mais claros das possíveis participações do novo Papa na ditadura começaram a aparecer na imprensa argentina. Mas foi em 2005, quando o jornalista Horacio Verbitsky acusou o então arcebispo de ter contribuído para a detenção, em 1976, de dois sacerdotes que trabalhavam sob seu comando na Companhia de Jesus, que as suspeitas ganharam força.
As denúncias iniciais da participação do Papa na ditadura foram feitas por Emilio Mignone, em seu livro “Igreja e ditadura”, de 1986, quando Bergoglio não era conhecido fora do mundo eclesiástico. Mignone exemplificou a “sinistra cumplicidade” com os militares numa operação militar em que desapareceram quatro catequistas e dois de seus maridos. Segundo o livro do fundador do Centro de Estudos Legais e Sociais, sua filha, Mónica Candelaria Mignone, e a presidente das Mães da Praça de Maio, Martha Ocampo de Vázquez, nunca mais foram encontradas.
Há outras acusações, tão ou mais graves.
Outro episódio, em que o novo Papa foi obrigado a prestar esclarecimento para a Justiça, diz respeito ao desaparecimento da bebê Ana de la Cuadra nas mãos dos militares. Bergoglio foi chamado a testemunhar quando era arcebispo de Buenos Aires, a pedido da Promotoria do país e da organização Avós da Praça de Maio - formada pelas avós de crianças sequestradas pela ditadura - mas ele pediu para dar sua declaração por escrito.
A promotoria apresentou à Justiça cartas enviadas a Bergoglio pelo avô de Ana, nas quais ele pedia ajuda para encontrar a neta e a filha, Elena - que desapareceu quando estava grávida de 5 meses. Com base nessas cartas, Estela, irmã de Elena, acusa o novo Papa de mentir ao dizer que apenas nos últimos 10 anos começou a tomar conhecimento sobre o sequestro de bebês por militares argentinos e de não fazer tudo o que estava a seu alcance para colaborar com os julgamentos sobre os abusos da ditadura.
Nas sedes das Mães e Avós da Praça de Maio, entre outras ONGs locais, seus representantes receberam com surpresa e estupor o nome do novo Papa. Para este setor da sociedade argentina, acompanhado nas redes sociais por dirigentes de esquerda, a escolha de Bergoglio foi difícil de digerir.
- Até hoje, a Igreja continua sem colaborar com as investigações da Justiça. Bergoglio nunca quis abrir os arquivos da Conferência Episcopal.
Como se fosse para tal notícia, o poeta ergueu a sua voz:
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!...
“Ó mar, por que não apagas
Co`a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão! ...
Existe um povo que a bandeira empresta
Pr`a cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?!
Enfim, talvez aqui valha o ditado popular que reza “Deus escreve certo por linhas tortas”. O que neste caso significa: foi preciso a eleição de um Papa, silencioso com a ditadura argentina, para nos fazer atualizar a eloquência de Castro Alves. Meu Deus! meu Deus! mas que bom Papa é este, que impudente no trono tripudia?
Urariano Motta* é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e Os corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997).
Enviado por Direto da Redação
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