Zoroastro Sant’ Anna - Jornalista e cineasta
Texto enviado pelo autor
Retornei ao Brasil pela primeira vez, em outubro de 1979.
No oitavo mês de gravidez da minha mulher, último mês que as companhias aéreas permitiam grávidas à bordo. Ela queria ter nosso filho no Brasil.
Agora havia o Aeroporto Internacional do Galeão, que quando saí daqui era um galinheiro de chão de cimento vermelho perto da ponte da Ilha do Fundão. Não saíra do Brasil via aeroporto, pegamos um ônibus de dias até Porto Alegre, um carro até Buenos Ayres, um avião até Santiago, outro até Cidade do México, mais um até Cuba e de lá para Paris e finalmente Londres, onde ficamos.
Ao chegarmos ao Galeão, comecei a desfrutar das delícias do país. No salão de desembarque, um federal negro, barrigudo, com o último botão da camisa a explodir na cintura gorda, uma gravata preta, curta, colarinhos esparramados para os lados, ele gritou:
-- Brasileiros pra cá, estrangeiros para lá!
Os brasileiros foram para o lado direito apontado, mas os estrangeiros se mexiam como baratas no meio do salão sem saberem para onde ir. Alguns, mais safos, entendiam “estangeiro”, “stranieri”, “stranger”, etc. e se moviam para o outro lado, mas a maioria rodava em círculos no meio do salão.
Quando chegou minha vez no guichê da Federal o homem olhou para mim, para o passaporte, para mim, para o passaporte, para mim para o passaporte, chamou um colega que pediu que eu o acompanhasse. Era manhã cedo, não sei que horas. Fui conduzido a uma sala onde fiquei isolado, sozinho por algum tempo. Depois chegaram dois homens com a minha bagagem, duas malas simples de roupas e livros em inglês.
-- O que o senhor está fazendo aqui?, perguntou um engravatado.
-- Voltando para casa, respondi.
-- E essa mulher, está lhe acompanhando?
-- Sim, nosso filho está para nascer.
-- Você veio fabricar mais um comunista aqui no Brasil?
-- Desculpe, não entendi...
-- Entendeu sim! Sua mulher veio parir mais um filha da puta de um comunista no meu Brasil!
-- Não, não senhor. Estamos só voltando pra casa. Nosso filho nasce agora em novembro e não tem nada de comunismo não senhor, é só um parto.
Depois de algumas bofetadas, parece que convenci os dois federais de que era apenas um sentimento de pertencer a alguma coisa que minha mulher sentira e que decidira ter o filho aqui. Por mim, não estaria aqui. Não devo nada a esta terra, esse país me execrou, torturou, puniu e expulsou. Mas eu estava feliz em estar de volta. Brasileiro é sem-vergonha.
Um dos federais abriu as malas, tirou peça por peça, livro por livro e jogou tudo no chão. Depois, pegou um canivete e rasgou todos os forros das duas malas, tudo ficou um trapo, arregaçado. Eu respirava fundo, olhos baixos, era minha volta ao meu país.
Eu não sabia que ainda haveria muito a engolir. Era fim da tarde, fui liberado, peguei meus panos de bunda, refiz minhas malas rotas e saí no desembarque onde, até aquela hora, minha mulher barriguda, meu cunhado e minha sogra me aguardavam com o coração apertado.
Vivi mais alguns anos aqui, mas a vida me levou novamente para lugares onde nunca pretendi estar.
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