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Um país que se nega a pensar soberanamente

16 de Janeiro de 2017, 10:24 , por Feed RSS do(a) News - | No one following this article yet.
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Essas instituições são pressionadas a construir mais e melhores nexos entre as demandas sociais e as pesquisas científicas
 
 
Universidade de São Paulo/Divulgação
USPAs universidades são uma das principais conquistas do processo civilizatório

Dois cientistas conversam. “Você já conseguiu a pontuação?”, pergunta o primeiro. “Já, esse ano foi tranquilo, eu tinha vários projetos com doutorandos. Foi fácil. Aliás, eu devia ter segurado um pouco. Tive mais produção do que eu precisava”, responde o interlocutor.

Numa versão para não iniciados, a pergunta seria: “Você já atingiu sua meta de publicação de artigos?”, e a resposta, “sim, claro, meus orientandos desenvolveram vários artigos, que eu assinei como coautor. Até ultrapassei a meta. Devia ter administrado as publicações para deixar um pouco para o ano que vem”.

Cabe explicar aos interessados que as universidades são uma das principais conquistas do processo civilizatório. Elas têm como principais focos de atuação a preparação de quadros profissionais e de cidadãos, por meio do ensino, e o aporte de conhecimento, por meio da pesquisa, para ajudar a sociedade a enfrentar seus desafios.

Poucas décadas atrás, observadores mais atentos notaram que as universidades públicas brasileiras, embora crescessem e absorvessem parte considerável dos recursos públicos destinados à educação, exibiam fraquezas em sua missão de gerar conhecimento. Instalou-se uma ampla e bem-intencionada iniciativa que passou a monitorar e avaliar, entre outros fatores, a produção científica nacional, medida em número de artigos publicados em periódicos qualificados. O sistema fomentou a produção, que expandiu consideravelmente.

Nos últimos anos notou-se, entretanto, que muito do publicado não é citado em artigos posteriores, ou seja, provavelmente não tem utilidade significativa para a ciência. Com isso, esforços consideráveis empreendidos pelas melhores mentes do País, a partir de recursos escassos, são desperdiçados. 

Esse quadro paradoxal não é particular dos trópicos. A crise acadêmica de produção de artigos sem consumo do conhecimento neles contido transcende fronteiras. Em texto veiculado em outubro no blog Intellectual Takeout, Daniel Lattier observa que um trabalho acadêmico, que pode levar meses ou anos para ser elaborado e passa por um período longo de revisões até ser publicado, é lido em média por só dez pessoas.

Em menção a um estudo sobre o tema, o autor registra que 82% dos artigos científicos publicados em periódicos acadêmicos da área de ciências humanas não chegam a ser citados em outros trabalhos. Dos artigos referidos, só 20% são lidos e metade destes é apenas pelos seus autores, revisores e editores dos periódicos nos quais são publicados.

O que explica esse triste estado das coisas? Lattier sugere duas causas. A primeira é a pressão que condiciona a empregabilidade e a carreira dos pesquisadores à produção científica medida em quantidade de artigos publicados.

Tal requisito leva à maximização da produção com base no que o autor denomina de plágio criativo, o rearranjo de pesquisas anteriores com pequenas variações adicionadas. O segundo fator é o caminho aparentemente inexorável da especialização, com a multiplicação de grupos com interesses de pesquisa cada vez mais estreitos. O fenômeno cria um fosso entre pesquisadores e a sociedade e entre pesquisadores de clãs hiperespecializados e os demais.

Práticas que estimulam a produção científica desvinculada do consumo e do uso do conhecimento podem gerar efeitos infaustos.

Primeiro, fomentam comportamentos centrados em interesses individuais e inibem o altruísmo, pedra fundamental da ciência.

Segundo, tendem a corromper jovens pesquisadores cuja abnegação se transforma, com o tempo, em mercantilismo.

Terceiro, frustra a sociedade, que tem o direito de esperar contribuições para o tratamento das suas questões mais importantes, seja por meio de uma voz de autoridade, capaz de prover perspectivas amplas, bem informadas e desapaixonadas sobre os temas em pauta, seja por intermédio de modelos, práticas e soluções para problemas reais.

Significativamente, começa a ser mencionada, nos debates internacionais sobre o papel da universidade, a figura do “tradutor”, profissional ambidestro capaz de estabelecer conexões entre a universidade e a sociedade.

O debate é representativo do aumento da expectativa sobre a universidade e começa a indicar caminhos para se construirem pontes sobre os abismos entre as modernas torres de marfim e o restante da sociedade.

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Fonte: http://blogoosfero.cc/news/blog/um-pais-que-se-nega-a-pensar-soberanamente

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