Navios negreiros, versão 2015
Por Jaques Delgado*
20/04/2015
Desde ontem, a Europa fala de uma tragédia incomensurável, de uma hecatombe, de uma desgraça: o naufrágio de quase 1000 imigrantes, saídos da Líbia com destino à Itália. Salvaram-se vinte e oito. Todos os outros viraram Mar Mediterrâneo, a maior fossa comum da historia.
Talvez se possa começar uma reflexão dando um nome às vítimas: eram pessoas, seres humanos, homo sapiens, eram ‘quase como nós’. Lembrei-me da canção Haiti, de Caetano Veloso, em dois trechos, quando ele diz : “ninguém é cidadão… quase todos pretos”.
Essa é uma das chaves do cinismo e da indiferença da Europa, branca e rica, em relação à cotidianidade do mal, que aflige milhares de pessoas, seres humanos, homo sapiens, ‘quase como nós’, isto é, a cor da pele! As pessoas, mais ou menos 700 homens, 200 mulheres, 50 crianças, eram quase todos pretos – e isso já nos faz olhar para o outro lado.
São desesperados, que escapam da guerra e sonham com a vida, com a sobrevivência. A grande maioria busca somente escapar da morte certa e das violências perpetradas pelo estado islâmico que mata sem compaixão os cristãos ou os muçulmanos que não aderem a sua causa.
Nesta enorme tragédia – não última, pois já hoje outras pessoas morreram em mais um naufrágio – havia centenas de pessoas trancadas no porão do barco, trancafiadas como ratos, pois provinham de regiões abaixo do deserto do Saara e, portanto, valiam ainda menos, nessa escala imoral de vidas mais dignas de serem vividas do que outras. Essas pessoas se deram conta que algo de errado aconteceu quando perceberam a nave virada e afundaram, talvez sem tempo para uma oração, sem escapatória, precipitando ao fundo do mar. Afogados, explorados por traficantes de carne humana, que vendem a ilusão de uma viagem que quase certamente lhes conduz à morte.
Escravidão reloaded!
A Europa é capaz de parar pelos cartunistas de Charlie Hebdo, o que é absolutamente louvável, mas se mantém indiferente diante desse massacre que apenas em 2015 ceifou 1.600 vidas, número subestimado, pois muitos corpos jamais aparecem e não fazem sequer parte das estatísticas neste breve trecho que separa a Líbia da Itália. São todos pretos, são todos pobres, ninguém é cidadão.
O cinismo da política grita proclamas, propõe soluções das mais estapafúrdias, todos querem resolver o problema. Quase nenhuma voz fala da emergência humanitária que empurra os refugiados para cima, para fora da generosa África, um continente que gera riquezas para o mundo, mas que subjuga os donos da terra, que permanecem miseráveis e morrem à míngua. Embarca-se para escapar de estupros, violência, fome, guerra, tiros, massacres. A solução exige uma leitura clara do problema e uma decisão conjunta da Europa.
A Tunísia acolhe hoje um milhão de refugiados, o que equivale a dez por cento da sua população, a Jordânia recebe atualmente uma quantidade impressionante de refugiados, e pode-se seguir adiante enumerando países que devem conviver com essa catástrofe. A Europa, continente mais rico do planeta, com seus 500 milhões de habitantes, por enquanto tenta fechar as portas, as janelas e as consciências.
Enquanto isso, bebemos cinicamente nosso aperitivo de cada dia.
Eram pessoas, seres humanos, homo sapiens, quase como nós, porém com a pele mais escura.
Pessoas. Hoje já são estatística.
*Jaques Delgado é psicólogo, vive em Trieste, Itália.
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