O coração tirano do PL 4330
Por Helder Santos Amorim , Valor Econômico
24/04/2015
O PL 4.330 visa regulamentar a terceirização para oferecer segurança jurídica aos trabalhadores terceirizados? Nem de longe. Seu objetivo clarividente é estender a terceirização a todas as atividades empresariais para radicalizar um modelo de emprego rarefeito, mais barato e de baixa proteção social, como um novo padrão trabalhista dirigido a todos os trabalhadores brasileiros. É fácil entender a razão.
Desde a década de 1990 a terceirização se expandiu nos diversos setores da economia, atingindo hoje 12 milhões de trabalhadores terceirizados, quase um terço dos 45 milhões de empregos registrados no país, segundo o Dieese. Há mais de vinte anos a terceirização é amplamente praticada nas atividades-meio das empresas, assim consideradas as atividades de apoio administrativo, autorizada pela Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho (1993), e também nas atividades-fim, mesmo sob forte resistência da Justiça do Trabalho e dos órgãos de defesa dos direitos dos trabalhadores.
Nessas duas décadas, a terceirização demonstrou ser uma técnica infalível para fragmentar e enfraquecer o movimento sindical, reduzindo o padrão de proteção social dos trabalhadores, conquistado num longo processo histórico de lutas operárias.
Por força da lógica concorrencial do menor preço imposta pelo livre mercado de mão de obra, a terceirização se mostrou mecanismo eficiente para rebaixar a remuneração dos trabalhadores terceirizados (o Dieese aponta redução média de 27%), reduzindo por tabela todos os demais direitos incidentes sobre a remuneração; para aumentar a jornada de trabalho e reduzir o investimento em medidas de saúde e segurança no âmbito das empresas de terceirização, submetendo os trabalhadores a um maior nível de adoecimentos e acidentes de trabalho; para fragmentar os contratos de trabalho, aumentando a rotatividade no emprego, ao custo da maior inadimplência de direitos rescisórios dos terceirizados.
Terceirização provou ser a estratégia perfeita da revolução patronal que debilitou a força do direito do trabalho
Provou ser a estratégia perfeita de uma revolução patronal que debilitou a força normativa do direito do trabalho, arremessando trabalhadores de uma empresa para outra ao final de curtos períodos contratuais, num tormentoso mosaico contratual que reduz a eficácia de seus direitos, retalhando tempos de contribuição ao INSS que tornam ainda mais difícil sua aposentadoria.
Enfim, esse modelo de terceirização predatória instituiu um regime de emprego de segunda classe, mais barato, mais frágil e dotado de reduzido nível de proteção social ao trabalhador, que funcionou como verdadeiro balão de ensaio sobre o qual o empresariado financiador de mandatos parlamentares, na carona oportunista da crise política, agora quer instituir o novo padrão reduzido de tratamento social próprio da terceirização, como regime destinado todos os que vivem do trabalho assalariado no país.
Por isso os defensores do projeto não aceitam negociar o que denominam de coração do PL: a possibilidade de terceirizar todas as atividades empresariais, quebrando a estrutura sindical que gravita em torno da empresa-mãe. Esse é o pulo do gato, em troca do qual oferecem alguns bônus ao trabalhador terceirizado, tais como a responsabilidade subsidiária da empresa tomadora, convertendo-se em solidária quando for omissa em fiscalizar os contratos de terceirização; alimentação, transporte e condições de segurança, higiene e salubridade a cargo da empresa contratante.
O problema é que essas garantias nem de longe compensam as perdas impostas pela intermediação da mão de obra, já que não recompõem a remuneração e a jornada de trabalho ao patamar do emprego direto, não asseguram os direitos negociados pela categoria de origem, não garantem mínima estabilidade e integração do trabalhador à vida da empresa, nem permitem sua evolução remuneratória numa carreira profissional. E ainda que o PL previsse a isonomia remuneratória entre empregados diretos e terceirizados que exerçam a mesma função, que utilidade teria isso num cenário em que a empresa possa terceirizar tudo, expulsando aqueles empregados que serviriam de paradigma para os terceirizados?
Além disso, os grupos empresariais do ramo da terceirização se especializaram em instituir pessoas jurídicas com os mais diversos objetos sociais ditos “especializados”, não raro em nome de laranjas, mas que desenvolvem quaisquer atividades genéricas que lhes forem demandadas, montando e desmontando empresas que já nascem destinadas a quebrar, descumprir contratos e abandonar os trabalhadores à própria sorte.Se o objetivo dos patrocinadores do projeto fosse, como gazeteiam, a regulamentação da terceirização para segurança jurídica dos 12 milhões de trabalhadores terceirizados, o PL 4.330/2004 preveria um terceirização restrita a serviços especializados nas atividades-meio do tomador; a incondicional solidariedade jurídica entre as empresas contratante e contratada; a isonomia de direitos entre empregados diretos e terceirizados e a representação dos terceirizados pelo mesmo sindicato vinculado à empresa tomadora. Essa era a proposta prevista no PL 1.621/2007, do deputado Vicentinho, que foi defenestrada pela classe empresarial.
O objetivo ambicioso do PL 4.330 não tem nada a ver com os 12 milhões de trabalhadores atualmente terceirizados. Seu propósito é conceder ao grande capital um poder tirano, de lançar no regime de emprego rarefeito da terceirização os outros 33 milhões de trabalhadores que hoje ainda se encontram diretamente empregados; o poder, inclusive, de não terceirizá-los, mas de mantê-los submetidos à afiada espada da terceirização que se empunhará como uma ameaça permanente sobre suas cabeças, criando o estado de temor que imprimirá a nova face do trabalhador brasileiro, o dócil “colaborador” subserviente e acuado em reivindicar direitos e respeito à sua dignidade, pronto a firmar qualquer acordo em troca da manutenção desse emprego à margem do precipício. Simples assim. Se é que o possui, esse é o coração tirano do PL 4.330/2004.
*Helder Santos Amorim é procurador do Ministério Público do Trabalho.
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