No Antigo Regime, os monarcas absolutistas impunham aos crimes de lesa-majestade as “mil mortes”: o condenado era enforcado publicamente, ou seus corpos dilacerados pela tração de cavalos instigados a ir para sentidos opostos com pernas e braços do condenado amarrados aos cavalos. A Inquisição católica queimava seus hereges nas fogueiras.
Tiradentes por ser ‘inconfidente’, conspirar contra o rei, foi enforcado em praça pública, esquartejado, os pedaços do seu corpo expostos nas vias públicas, a terra onde habitava foi salgada para nela não nascer nem erva daninha e seus descendentes foram condenados até a quinta geração: não podiam assumir cargos públicos ou ocupar qualquer cargo na hierarquia na Igreja.
As redes sociais viraram uma Vila Rica do século XXI com alcance global.
Todos são juízes, todos querem fazer Justiça com as próprias mãos.
Há racistas na rede, há homofóbicos e transfóbicos na rede, há machistas na rede. Há os que pedem intervenção militar. Mas se ao confrontá-los não nos diferenciarmos de suas agressões não nos parecemos um pouco com eles?
Vergonha em rede
Renan Dissenha Fagundes | Fotos: Erwin Wurm, Revista Trip02/06/2015
Humilhações públicas já foram uma forma de punição difundida – e agora voltam com força renovada na internet. Mas nem sempre essa estratégia é usada contra quem realmente merece
Courtesy Erwin Wurm / Outdoor Sculpture Cahors
Um homem, no mês passado, parou ao lado de um pôster de Darth Vader, vilão de Star Wars, em um shopping de Melbourne, na Austrália. A ideia era fazer um autorretrato, atitude corriqueira, diga-se, pelo menos nesses tempos de paus de selfies. Não foi, porém, o que achou a mãe de uma criança que estava nas imediações do cartaz. Preocupada, ela também fotografou o homem. E, por via das dúvidas, postou a imagem no Facebook, chamando-o de “estranho”, insinuando que ele havia fotografado seu filho e um amigo – e pedindo ajuda da polícia para localizá-lo.
A polícia não foi necessária: com o post compartilhado mais de 20 mil vezes, o homem logo foi encontrado e passou a receber ameaças e a ser perseguido nas redes sociais, tachado de pedófilo. “Eu sou um pai de três crianças e um ser humano normal. Eu nunca tinha tirado uma selfie antes”, disse ele ao Daily Mail Australia, quando foi explicar sua história. Foi aí que a fúria da internet mudou de alvo e quem passou a receber ofensas foi a mulher, que até de morte foi ameaçada. “Devastado”, “devastada”, ambos se disseram em entrevistas. Arrependida, a mulher resumiu: “Acho que o grande aprendizado disso é que não devemos postar nada que possa machucar alguém em qualquer mídia”.
Mas por que ela não pensou nisso antes de escrever o post?
Tá por fora
Essa história, da selfie com o Darth Vader, é só a mais recente de um comportamento que, em português, foi batizado de “linchamento virtual”. A palavra “linchamento” dá conta da brutalidade de alguns desses casos – centenas, milhares de mensagens de raiva sendo direcionadas para uma pessoa –, mas é o termo on-line shaming que exemplifica melhor o sentimento: shaming deriva de shame, vergonha em inglês.Vergonha, claro, não é um sentimento novo. “Vergonha é você estar fixado no olho do outro, você quer que o olho do outro veja coisa boa em você”, fala a psicanalista Anna Veronica Mautner. Assim, a vergonha (ao contrário da culpa, que é um sentimento privado) mexe com a relação entre as pessoas, é um sentimento destinado ao diferente, “algo que a gente sente quando a gente está por fora”. Mas nem todo erro causa vergonha, explica Mautner. “A vergonha tem mais a ver com surpresa, com você ser surpreendido no erro.”
Com a internet, a ideia de vexar, de envergonhar o outro, porém, retorna com ares modernos – “A internet é uma autoestrada para a humilhação”, escreve o ensaísta Wayne Koestenbaum emHumiliation. O tema é explorado por Jon Ronson em So you’ve been publicly shamed (Então você foi humilhado publicamente?), lançado em março, um livro sobre “o terror de ser descoberto”, como define um amigo do autor. O jornalista galês entrevista (muitas vezes é o único a conseguir entrevistar) algumas das principais vítimas de on-line shaming, caso da americana Justine Sacco.
Era brincs
No dia 20 de dezembro de 2013, Sacco fez uma série de piadas para seus 170 seguidores no Twitter, enquanto viajava de Nova York para a Cidade do Cabo. A última delas dizia: “Indo para a África. Espero que eu não pegue aids. Brincadeira. Sou branca!”. Quando o avião pousou, Sacco já estava em primeiro lugar nos tópicos do Twitter, sendo acusada de racista por milhares de pessoas e prestes a virar notícia na mídia tradicional. Um homem a esperava no aeroporto para fotografá-la. Entre o dia da piada e o fim do mês, seu nome foi pesquisado mais de 1,2 milhão de vezes no Google.“Justine Sacco me pareceu a primeira pessoa que entrevistei que havia sido destruída por nós”, afirma Ronson. Até então, outros casos de linchamento no Twitter pareciam ter virtude: pessoas normais se unindo para enfrentar empresas e poderosos. Havia inclusive uma narrativa assim para Sacco, em que ela seria uma branca elitista rica que merecia ser humilhada. “Mas eu não acho que isso seja verdade”, escreve o jornalista. Justine, para ele, é só uma pessoa normal que fez uma piada ruim.
E há muitos outros casos, citados por Ronson: um homem, Hank, que perdeu o emprego porque uma mulher, Adria Richards, tuitou uma foto sua, acusando-o de fazer uma piada sexista em um evento de tecnologia; e depois Adria Richards, perseguida e ameaçada por fazer Hank perder o emprego; ou a jovem Lindsey Stone, que bateu uma foto considerada desrespeitosa ao lado de um memorial de guerra. “Virou rotina. Pessoas normais passaram a ver suas vidas destroçadas por tuitarem uma piada mal escrita para seus cento e tantos seguidores”, diz Ronson.
São os outros
Para a psicóloga Andréa Jotta, que faz parte do Núcleo de Pesquisas da Psicologia e Informática, da PUC de São Paulo: “Na internet, a gente escuta as coisas muito sob o nosso prisma. Aquilo te agride e você agride de volta, sem muita preocupação de relativizar, de saber qual era a real intenção daquela pessoa”, diz, por telefone. “Não estamos acostumados com esse distanciamento.” Assim, não há nas relações virtuais uma série de elementos que usamos para nos compreender melhor ao vivo.“Se eu estou em um lugar, falo uma besteira e vejo que todo mundo se cala e me olha, eu não sigo adiante”, explica Jotta. “On-line, isso já foi. Quando você postou a besteira, ela já causou uma série de incômodos, e estes incômodos causaram outra série de comportamentos. Isso desencadeia, então, esses linchamentos coletivos, esses encadeamentos de sentimentos contrários.” Conta aqui também nossa inabilidade em separar, na rede, o que deve ou não ser dito – vivemos agora em uma “sociedade confessional”, como escreveu Zygmunt Bauman, que transformou “o ato de expor publicamente o privado numa virtude e num dever público”. Porém, não temos consciência do alcance da internet. “Normalmente, a pessoa não entendeu a amplitude daquele post, ela não entendeu que aquele post vai para muita gente, que aquilo vai tomar uma dimensão muito maior do que só a rede social dela”, diz Jotta.
Courtesy Gallery Thaddaeus Rotac, Salzburg, Áustria/Studio Wurm
Vergonha
A tecnologia também impede que coisas ditas sejam esquecidas, e permite que elas sejam reproduzidas ad infinitum. Casos como o da jornalista Milly Lacombe, que em agosto de 2006 divulgou uma informação errada sobre Rogério Ceni ao vivo na televisão. O goleiro telefonou para o programa e confrontou-a na hora. “Como o YouTube estava começando naquele ano, a coisa nunca mais parou de acontecer”, conta Milly. “É como se eu estivesse naquele filme em que o dia se repete. Eu acordava e começava tudo de novo.” Para a jornalista, isso dificulta o processo de cura porque “a vergonha fica voltando”. “Nessas redes sociais a gente é muito duro com o erro dos outros e pouquíssimo com o nosso. Se a gente invertesse isso, sabendo que todo mundo erra, seria muito mais simples pra todo mundo”, ela diz. “Hoje eu penso duas vezes antes de criticar alguém.”
Vigiar e punir
Outro aspecto importante da vergonha é a força que ela tem sobre as outras pessoas: a vergonha é um forma de punição que serve para manter normas. “Se você diz ‘mas que vergonha’, ou você dá a entender que é uma vergonha, ou você olha como uma coisa que está fora, vergonha é um dado de controle social”, afirma Mautner.Segundo Jennifer Jacquet, professora de estudos ambientais da New York University, a vergonha é uma emoção que evoluiu para aumentar a cooperação das sociedades humanas. “A vergonha é o que deve ocorrer quando um indivíduo falha em cooperar com o grupo”, escreve em Is shame necessary?: new uses for and old tool (A vergonha é necessária?: novos usos para uma velha ferramenta), lançado em janeiro. “A vergonha regula o comportamento social e serve como advertência de punição.”
Humilhações públicas já foram parte indissociável do sistema legal. As Ordenações Filipinas, leis portuguesas que se estendiam ao Brasil, listavam como pena o açoite público, o açoite público com pregão (a descrição para os espectadores da culpa do réu) e o açoite público com grinalda de cornos, além da morte civil, que incluía perda de direitos e de graduação social. Hester Prynne, protagonista de A letra escarlate, romance de Nathaniel Hawthorne, é condenada a usar um “A” vermelho bordado na roupa para ser identificada por todos como adúltera. A vergonha convida o público a participar da punição. E o público, em vários casos, ganha em troca um certo sentimento de justiça, de estar fazendo a coisa certa. Porém, há um distanciamento, uma desumanização do outro, que é bastante exacerbada on-line. Ou, como Ronson coloca: “Imagino que quando a vergonha é entregue como um ataque remoto de drones, ninguém precisa pensar sobre o quão feroz nosso poder coletivo pode ser”.
Uma arma?
Jacquet é uma das defensoras de usar para o bem este poder coletivo. Em Is shame necessary?, ela argumenta que a vergonha – expôr alguém fazendo alguma transgressão – pode ser uma ferramenta para causar mudanças positivas no mundo. “A vergonha pode machucar tanto que ela é fisicamente ruim para o coração”, escreve Jacquet. “Mas a vergonha também pode melhorar nosso comportamento.”O livro parte do uso que o movimento ambientalista fez do sentimento de culpa: a culpa que faz uma pessoa economizar água ou luz, por exemplo. Porém, há um limite nesta abordagem. “A culpa é uma emoção válida, mas que é sentida por indivíduos e, portanto, motiva apenas indivíduos”, escreve a pesquisadora. “Talvez, para solucionar esses problemas, precisemos de uma emoção de grupo. Talvez precisemos da vergonha.” A questão, para Jacquet, é usar bem a vergonha. “Envergonhar por si só é amoral, e pode ser usada para qualquer fim, bom ou mau”, argumenta.
Já Túlio Viana, professor de direito da Universidade Federal de Minas Gerais, acha que a cultura do escracho virtual pode acabar em autoritarismo. “Ao optarmos pela democracia, aceitamos o fato de que todos devemos respeitar as leis. E respeitar as leis implica deixar ao Judiciário o monopólio dos julgamentos de conflitos sociais”, afirma, por e-mail. “Se todo mundo resolver passar por cima da lei para fazer o que acha mais justo, vivenciaremos a guerra de todos contra todos.” A internet resgatou o hábito de jogar gente “suspeita” na fogueira, é o que sustenta Viana.
James Duncan Davidson/TED/Divulgação
Monica Lewinsky se diz ”paciente zero na perda da reputação pessoal em escala global quase instantâneamente”
Paciente zero
Um personagem que vem à mente neste horizonte é Monica Lewinsky, que reapareceu no começo deste ano, em uma palestra no TED intitulada “O preço da vergonha”. Nela, Lewinsky, conhecida por um escândalo sexual na década de 90 com o então presidente americano Bill Clinton, se autodeclara “paciente zero na perda de reputação pessoal em escala global quase instantaneamente”.Segundo Lewinsky, há “um mercado no qual a humilhação pública é uma moeda e a desonra, uma atividade econômica”. “Como se faz dinheiro? Com cliques. Mais vergonha, mais cliques. Quanto mais visitas, mais ganhos com publicidade”, ela afirma na palestra. “O esporte sangrento da humilhação pública precisa acabar.”
Ronson, antes um praticante da humilhação on-line, conta também em seu livro o processo no qual foi se distanciando do comportamento, e escreve ao fim que agora já não participa mais de condenações públicas de ninguém, “a não ser que eles tenham cometido alguma transgressão em que realmente exista uma vítima, e nem assim tanto quanto eu provavelmente deveria”. E termina: “Nós nos achamos inconformistas, mas acho que isso tudo está criando uma era mais conformista e conservadora. Nós estamos definindo os limites da normalidade por destruir as pessoas fora dela”.
Por que não pensamos nisto antes de postar no Facebook?
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