Embora a CPI dos estupros nos campi da USP tenha sido um avanço ao silêncio ensurdecedor das faculdades diante das denuncias de violência, mal começou o ano já houveram denúncias dem vários casos de violência sexual na USP. Na FAU cresce a intolerância e perseguição aos “trans”, com pichações e ameaças no banheiro.
O texto da professor Nilce Aravecchia chama a atenção para a necessidade de um debate mais institucionalizado sobre essas questões dentro da própria universidade.
Na foto montagem: intolerância no cartaz da Faculdade de Medicina na Unicamp; solidariedade num cartaz em apoio a aluna vítima de tentativa de estupro na Poli-USP (9.10.2013); o cartaz da ALESP da CPI que investigou estupros e outras violências nos trotes da USP e trote racista e misógino na Faculdade de Direito da UFMG em 2013 .
CPI dos trotes: o que as Universidades têm a dizer?
Nilce Aravecchia*, especial para o Maria Frô
29/08/2015
No ano que passou a sociedade foi surpreendida por uma série de notícias a respeito dos atos de violência sexual envolvendo os alunos da Faculdade de Medicina da USP. Desde então, pôde-se ver a publicização cada vez mais intensa dos casos de abuso na mídia tradicional, em blogs e nas redes sociais, até a temática ganhar a discussão política institucional, com a abertura de CPI na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Acertadamente, a CPI tratou de forma ampla os casos de violência associados ao consumo abusivo de bebidas alcoólicas, os trotes de ingresso, e as festas estudantis em geral. Entretanto, os ecos dessa discussão parecem estar bem longe de serem ouvidos pelos interessados diretos.O ano iniciou novamente com as Universidades Públicas figurando nas páginas policiais da grande mídia, e com protestos indignados nas redes sociais, em manifestações individuais ou de pequenos coletivos. No cotidiano universitário, passado pouco mais de um mês do ano letivo, não cessam notícias de casos de violência sexual que não vêm a público.
Também é preocupante a perseguição cotidiana a toda forma de sexualidade distinta dos cânones sociais, sendo os grupos “trans” os que mais tem sofrido com o preconceito e a agressão muitas vezes covarde, porque anônima, mas cada vez mais declarada.
Não parece mero acaso que o aumento desses tipos de agressão tenha ocorrido simultaneamente ao cerceamento de direitos de ir e vir no espaço público com o fechamento dos campi, à presença da política militar e à proibição do consumo de bebidas alcoólicas nas instituições.
As festas estudantis que, nas Universidades Públicas, ocorriam na maior parte das vezes em escala quase doméstica, ao saírem dos campi se profissionalizaram, alcançaram dimensões gigantescas, tomando status de “micaretas” e sendo rapidamente incorporadas como locais estratégicos para as fabricantes de cerveja e de outras bebidas alcóolicas. É sabido (sempre dito nas conversas informais e agora veiculado nas redes sociais) que as patrocinadoras despejam seus caminhões de bebida para as versões “open bar” das festas universitárias. Esses contextos certamente potencializaram o consumo de bebidas, e muitas vezes esse consumo vem associado às drogas.
É necessário assumir que os crimes relacionados às festas universitárias foram sendo tratados com conveniente hipocrisia até que a internet e a coragem de alguns envolvidos dessem novo tom às narrativas e a seus desdobramentos. Provavelmente, as vítimas têm se sentido mais protegidas para denunciar.
Entretanto, no cotidiano da USP, a temática ainda não mereceu a devida importância, em que pese os discursos do Reitor manifestando sua disposição em apurar os fatos, e de sua presença na CPI da ALESP. Os debates sobre o assunto são muito tímidos, e a discussão nos conselhos e nas comissões universitárias restringem-se aos momentos mais críticos, quando as medidas administrativas mostram-se inevitáveis.
Há duas semanas encerrou-se a CPI, cujo relatório detalha centenas de casos de estupro, de humilhação em trotes, e de abuso no consumo de álcool e de drogas nas unidades da USP, da Unesp, da Unicamp e da Ufscar. As investigações dessa Comissão, ao menos no que diz respeito aos Campi da USP na Capital, foram pouquíssimo comentadas, merecendo parcos debates nos tradicionais ambientes de defesa dos direitos humanos. A discussão não se propaga de forma mais intensa nem mesmo nos diretórios acadêmicos ou em outras instâncias de representação discente.
O resultado do que parece quase ser uma brincadeira de surdos e de cegos é que o autoritarismo preconceituoso capilarizado na sociedade toma cada vez mais o espaço universitário, que por excelência, deveria ter papel protagonista numa direção civilizatória.
O discurso raivoso, que se tornou corriqueiro e que não tem pudores de se mostrar nas redes sociais, rapidamente vai se transformando em ação contra as chamadas “minorias”, inclusive no interior das universidades públicas.A Universidade é o lugar privilegiado para o conhecimento, exatamente porque pode se colocar na contramão dos sistemas sociais vigentes e não pode se restringir a ser um microcosmo a reproduzir o que acontece na sociedade. Mesmo porque, visto por esse ângulo, esse autoritarismo preconceituoso, manifestado em machismo, misoginia, homofobia, transfobia, e demais atitudes relacionadas ao preconceito, ao ser reproduzido e incorporado em espaços universitários, projeta-se novamente para a sociedade de maneira perversa, potencializando-se e se legitimando pelos fatos engendrados no interior dessa Instituição.
Parece já passada a hora da Universidade colocar essa discussão em pauta de forma ampla, institucional e sistemática, envolvendo docentes, funcionários e alunos. É necessário amadurecer uma reflexão sobre os vínculos estreitos entre violência e repressão. A médio e longo prazo o debate acadêmico tem potencial para se irradiar socialmente, combatendo a intolerância e o preconceito que estão no cerne de toda a prática violenta. É possível até que se desdobre na revisão de ações e de regras institucionais que representaram o cerceamento de direitos nos espaços universitários e que tem cada vez mais se revelado ineficazes, ou mesmo geradoras de mais violência cotidiana.
A Universidade, como instituição, deve assumir seu papel na propagação de uma cultural de paz, pois tem poder de incidir para além de seus muros. É sua responsabilidade debater em profundidade o assunto, com o objetivo de frear a onda conservadora e preconceituosa que vem ameaçando a boa convivência dentro e fora dos campi.
*Nilce Aravecchia é professora da FAU USP
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