A ‘onda conservadora’ é menos fácil de entender do que se imagina
Por RODRIGO NUNES, Ilustríssima
28/08/2015
Quanto de verdade há na ideia de que existiria uma “ascensão conservadora” em curso? As pesquisas sobre o perfil dos manifestantes nos protestos de 16/8 sugerem a necessidade de uma leitura mais nuançada, e podem lançar uma luz sobre os processos desencadeados por junho de 2013 e as escolhas do governo petista.
Desde as eleições de novembro passado, e ainda mais com os protestos deste ano, formou-se uma espécie de consenso de que estaríamos vivendo uma ascensão conservadora. Este consenso, somado a uma ideia de que as quatro vitórias eleitorais consecutivas do PT teriam ocorrido apesar da tendência conservadora da maioria da população brasileira, pintam um quadro dramático: de um país essencialmente de direita que estaria “saindo do armário”.
Quanto há de verdade aí? É inegável que seguimos, apesar de tudo, um país entranhadamente patriarcal, racista, classista, homofóbico, apegado a autoridades tradicionais. Por outro lado, se o trabalho de base da esquerda era feito em grande parte pela esquerda católica, é fato que o desmantelamento da Teologia da Libertação sob o papado de Karol Wojtyla abriu um vácuo ocupado pelo neopentecostalismo –que não é necessária nem monoliticamente conservador, mas serve de plataforma para carreiras políticas que exploram pautas socialmente conservadoras. A mobilização deste tipo de pauta, o discurso seletivo contra a corrupção e a retórica anti-comunista da Guerra Fria foram, além disso, os únicos recursos retóricos eficientes disponíveis à oposição num período em que a melhoria das condições materiais da população era incontestável. Contudo, o fortalecimento da bancada conservadora não se daria sem um relativo enfraquecimento da esquerda parlamentar, que é indissociável do desgaste do governo e da desilusão com o PT.
Isso, porém, ainda não basta para explicar o que está acontecendo. É preciso, em primeiro lugar, distinguir entre a insatisfação generalizada e os protestos deste mês: a diferença matemática entre a avaliação negativa do governo e o número dos que foram às ruas demonstra que estes últimos são um subconjunto bastante pequeno e relativamente homogêneo de um fenômeno muito mais amplo e diverso. Há muitos tipos de insatisfação, espalhados por todas as classes sociais, pelos mais variados motivos: do ódio de classe contra o Bolsa Família à deterioração da economia, da corrupção ao ajuste fiscal que Dilma afirmara ser, entre os candidatos, a única que não aplicaria.
É verdade que alguns destes motivos estavam desproporcionalmente representados em 16/8, bem como estava desproporcionalmente representado um certo segmento de renda, cor, escolaridade e preferências ideológico-partidárias. Também é verdade que os organizadores das manifestações estão claramente à direita do espectro ideológico. O erro está em pensar que são apenas estes que estão insatisfeitos, ou que seus motivos são os únicos para está-lo. Em outras palavras, em reduzir a insatisfação ampla e diversa a binarismos simples como elite contra pobres, direita contra esquerda.
Mas as pesquisas sobre o perfil dos manifestantes em São Paulo e Belo Horizonte dizem ainda mais: mesmo o grupo relativamente homogêneo que foi às ruas é mais heterogêneo que se pensa, inclusive em relação aos organizadores dos protestos. Em Belo Horizonte, mais de 50% declararam não ter partido (contra 29% de apoiadores do PSDB); em São Paulo, impressionantes 96,80% se disseram insatisfeitos com o sistema político. Em ambas as cidades, mais da metade –73,80% em São Paulo– se declarou contra o financiamento privado de campanha. (Pode-se perguntar se os resultados seriam iguais caso a pergunta falasse em “financiamento público”). Os manifestantes de São Paulo acreditam no “punitivismo” como solução para o problema da segurança, mas são liberais em relação à sexualidade. Surpreendentes 88,60% e 84,30% deles acreditam, respectivamente, na universalidade e na gratuidade do serviço de saúde; 92,30% e 86,90% na universalidade e gratuidade da educação.
Isso quer dizer que eles sejam progressistas? Também não. A narrativa da ascensão conservadora gosta de citar Antonio Gramsci para dizer que o “senso comum” do brasileiro médio seria de direita. Mas, para Gramsci, justamente o que caracteriza o senso comum não é ser um conjunto completo de crenças ou um programa consistente, mas sua incoerência: ele reúne ideias contraditórias (o desejo por serviços públicos de qualidade e a diminuição da carga tributária, o moralismo e a garantia das liberdades individuais) e mesmo mágicas (a corrupção é a causa única dos maus serviços). Logo, manifestar ideias progressistas não implica necessariamente apoiar políticas progressistas. Mas isso quer dizer, por outro lado, que a luta contra o senso comum não passa por condená-lo ou ridicularizá-lo, mas por identificar pontos de acordo –serviços públicos gratuitos, universais e de qualidade, por exemplo– e construir argumentos coerentes a partir deles.
É exatamente isso que o fantasma da irresistível ascensão conservadora impede quem nele acredita de fazer. A construção desse fantasma depende de duas operações: considerar que estar contra o governo do PT (“esquerda”) é automaticamente ser “de direita”; e que ser “de direita” é automaticamente ser leitor da “Veja”, a favor do estado mínimo, do golpe, do financiamento empresarial, da “cura gay”. Ambas as operações se baseiam em erros: pensar que “esquerda” e “direita” seriam pacotes fechados, conjuntos coerentes e homogêneos de ideias; e pensar que aquilo que é “esquerda” e “direita” na sociedade corresponde exatamente a “esquerda” e “direita” no sistema político.
O resultado dos dois erros é desastroso. Confunde-se o fortalecimento de políticos de direita com a formação de um novo consenso social de direita; com isso, arredonda-se muito para cima os números e a solidez ideológica do “bloco” adversário, e adota-se uma postura reativa que comunica, cada vez mais e a cada vez mais gente, que não há lugar para seus anseios e preocupações na “esquerda”. Não é que as pessoas então “se tornem” “de direita”, mas que elas procurem quem parece dar-lhes ouvidos. A suposta onda irresistível torna-se assim uma profecia auto-realizada: o próprio esforço de resistir a ela não faz mais que confirmá-la.
A VERDADEIRA CRISE É DE REPRESENTAÇÃO
A sociedade brasileira complexificou-se, e suas aspirações, e portanto também suas expectativas em relação ao estado, aumentaram no período que vai da estabilização da inflação às conquistas sociais da última década. No momento, porém, as duas forças que um dia foram capazes de estruturar a massa amorfa do sistema político em torno de narrativas relativamente coerentes –PT e PSDB– perderam esta capacidade.
A perda verificou-se primeiro na oposição, que, acuada pelo sucesso do lulismo, refugiou-se numa radicalização histriônica à direita. Mas tornou-se completa agora, com um governo que não tem mais condições de sustentar o jogo de soma um que foi o “pacto lulista”, e que, sem saber formular um novo projeto, cada vez mais identifica a implementação do programa de seus adversários como condição de sobrevivência política. A incoerência do senso comum nada mais faz que refletir a incoerência da classe política e seu paupérrimo debate público. A pantomima irresponsável de uma “crise política” fabricada para arrancar concessões de um governo fraco é como o espetáculo no convés de um navio que ruma de encontro ao iceberg que os radares menos atentos captaram pela primeira vez em junho de 2013: uma crise de representação.
Não se trata de repetir o velho acacianismo segundo o qual não existem mais esquerda e direita, mas de dizer que a clivagem entre “esquerda” e “direita” no sistema político não dá mais conta das clivagens na sociedade. Quem deseja liberalismo em economia e em questões morais, por exemplo, ficou sem casa. Quem quer desenvolvimento social com preocupação ambiental e expansão dos direitos das minorias, também. O mesmo vale para quem deseja não só ciclovias, mas uma política radical para o transporte público. A política brasileira caminha para não ter mais que meia dúzia de tons de cinza, com pequenos laivos azuis, vermelhos e lilás em questões pontuais.
Mas a crise de representação vai além das distorções do sistema político, e tem a ver com a falta de controle sobre as instituições em geral. O maior movimento de massas do país em décadas veio e se foi há dois anos sem que as instituições se movessem um centímetro; por que se acreditaria em sua responsividade? Daí, talvez, que se volte a cogitar soluções para-institucionais que pareciam haver ficado no passado. Ignorar a crise de representação é ignorar um iceberg no sentido em que o descrédito institucional generalizado pode ter resultados imprevisíveis.
O COMPLEXO DE KATECHON
Costuma-se chamar o fenômeno de governos de esquerda que abraçam a agenda de seus opositores de Síndrome de Estocolmo, termo que descreve situações em que reféns se identificam com os sequestradores a ponto de defendê-los. A descrição, no entanto, é inexata. O que define a posição dos reféns é sua falta de poder; eles se identificam com os sequestradores por temer os riscos de uma intervenção policial. Um governo, por mais fragilizado que esteja, nunca é tão indefeso.
“Complexo de katechon” talvez seja mais exato. A palavra grega katechon (“aquilo que impede ou retarda”) é uma das mais misteriosas da Bíblia; ocorre numa passagem da Segunda Epístola aos Tessalonicenses em que Paulo adverte que o Fim dos Tempos só chegará após a vinda do Anticristo, e esta não ocorrerá até que desapareça “aquilo que a impede ou retarda”. Paulo lembra a seus destinatários –a comunidade cristã da cidade grega de Tessalônica– que eles sabem a que ele se refere; a referência, contudo, perdeu-se no tempo, fazendo com que proliferassem interpretações inconclusivas. No século XX, o conceito foi retomado pelo jurista e teórico político nazista Carl Schmitt, para quem o permanente risco de colapso da ordem internacional justificava a existência de um poder imperial que o impedisse ou retardasse.
“Complexo de katechon” designaria, então, a lógica pela qual estes governos e seus militantes racionalizam certas escolhas como inevitáveis, mesmo que elas impliquem fazer o contrário do que se propunha, em doses maiores e com mais convicção. Tudo se justifica na medida em que eles se enxerguem como katechon: não mais que um frágil intervalo entre uma anomia e outra, entre o império de seus adversários e o Fim dos Tempos.
Eterno hóspede numa casa que não sente como sua, o complexo de katechon não projeta outro horizonte futuro que não a gestão continuada do estado de coisas. Vendo-se como uma delicada barreira contra uma tendência conservadora atávica, não só superestima a dimensão e solidez do conservadorismo, como o supõe uma quantidade fixa e imutável. Com isso, vai abrindo mão da iniciativa de abrir debates na sociedade: se no essencial as coisas são imutáveis, não há alternativa fora a conciliação. Passa que, quanto menos se disputa, mais se aceita os termos do adversário –logo, cada vez mais há o que conciliar.
Quanto mais terreno se cede, mais estreita se torna a compreensão do próprio projeto. Foi o que ocorreu quando o governo passou a definir-se apenas pela binômio crescimento econômico com aumento do poder de consumo. Ao abandonar-se uma narrativa mais ampla (que incluísse meio-ambiente, cultura livre, defesa de minorias, diversidade sexual, criação de direitos, qualificação de serviços), hipotecou-se o apoio popular exclusivamente sobre a manutenção deste binômio. Quando este deixou de funcionar, não havia argamassa discursiva que oferecesse à população outras razões para um voto de confiança.
Quanto mais estreita a compreensão do projeto, mais estreita a própria definição de “esquerda” –e, por conseguinte, mais amplo o conjunto de tudo que se hostilizará como “de direita”. O complexo de katechon justifica toda concessão como inevitável enquanto o povo não se mobiliza; mas quando o povo se mobiliza, ele é incapaz de compreendê-lo. Não foi o que ocorreu em junho de 2013? Neste momento, o katechon muda de sinal: não mais aquilo que busca conciliação com o sistema político a fim de evitar a hecatombe, mas aquilo que blinda o sistema de desejos e demandas emergentes, desqualificados como inválidos ou “fazendo o jogo da direita”.
Uma vez fechadas inúmeras portas de diálogo com a sociedade, uma vez reduzidos ao máximo o escopo e o poder de persuasão do projeto, é o próprio argumento da união contra o inimigo comum que começa a fazer água: potente força motivadora, seu apelo se esgota quando serve para justificar somente recuos, nunca avanços. Foi o que se viu no primeiro turno das eleições passadas, e mais ainda depois que se substituiu a “guinada à esquerda” acenada no segundo turno pela lógica de que ceder mais e mais à direita é o único jeito de mantê-la longe do poder.
Não se trata, é claro, de crer que qualquer coisa é possível a qualquer momento, bastando que se tenha ousadia; mas de entender o preço que se paga por optar invariavelmente pela cautela. O problema da lógica do katechon é que ela acaba criando exatamente o que pretendia evitar. Ela funciona –até que, um dia, não funciona mais. A seguir neste ritmo, este governo terá sido não apenas o fim dos 16 anos de PT, mas o início do desmanche de avanços conquistados na última década e o último da esquerda brasileira por um bom tempo. Pior: aprovada, a Lei Anti-Terrorismo tende a voltar-se contra o tipo de mobilização social de que nasceu o PT e tornar ainda mais distante o sonho de controle sobre as instituições. Preço alto a pagar para impedir uma perfeitamente resistível “ascensão conservadora”.
RODRIGO NUNES é professor de filosofia moderna e contemporânea na PUC-Rio. É autor de “Organisation of the Organisationless” (Mute) e editou um dossiê sobre as manifestações de 2013 para a revista “Les Temps Modernes”.
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