Enquanto existirem Barbosas e Saletes – Parte 6
4 de Junho de 2015, 10:06Parte 6
José Arbex Júnior, in revista Caros Amigos, fevereiro de 1999
Deuses comuns no esgoto Tamanduateí
Familiares, colegas e vizinhos dizem que Barbosa era um homem sério, obcecado pelo trabalho. Sandra, que conheceu Barbosa aos quatorze anos, quando se tornou sua primeira namorada, confirma. “Uma vez estávamos passeando de carro e ele quis parar para apartar uma briga. Eu o impedi.” Ainda segundo sua mulher, ele sempre quis ser soldado da PM (onde foi admitido em 1994). E o major Marcos Cabral conta que Barbosa havia sido merecedor de vários elogios oficiais na corporação, por atos de coragem e bravura. Apesar de todas as qualidades, Barbosa passava por um momento economicamente difícil. Metade de seu salário na PM era destinada ao pagamento do aluguel (350 reais). Para complementar a renda familiar, tinha de fazer serviços extras, como segurança de empresas privadas. Em outubro, perdeu o “bico” em uma distribuidora de leite, justo quando sua filha Amanda foi acometida de uma grave pneumonia, que provocou derrame pleural.
Se a vida de Barbosa estava solidamente ancorada em suas relações com a família e com o trabalho, Salete tinha uma vida pessoal muito triste, completamente destroçada. Como conseqüência de uma sucessão insuportável de conflitos com seus irmãos e filhas, ela passou a vagar pelas ruas de São Paulo, como catadora de papelão, em setembro. Lúcida, apesar da miséria e da tristeza, disse no hospital duvidar que seus irmãos fossem manifestar qualquer gesto de solidariedade para com ela. “Foram muitas mágoas, muitas brigas. Eu acho que é sem chance, eles não devem aparecer.” E nisso ela estava certa. A amargura de se sentir completamente só foi agravada pela culpa, obviamente sem sentido, mas ainda assim muito compreensível, da morte de Barbosa. A culpa de, apesar de tudo, continuar existindo graças à morte de um total e completo desconhecido. É uma dívida grande demais, impossível de ser saldada.
Essa pequena história reproduz todos os elementos presentes nas mitologias de todos os povos de todas as épocas. O heroísmo do guerreiro-soldado, o zelo do pai de família, o amor da mulher, a revelação inesperada do trágico fato consumado pelo oráculo-televisão, a ira impotente dos familiares face ao destino, o sentimento de culpa e desalento da vítima em nome do qual foi feito o sacrifício, o ritual póstumo em homenagem ao herói morto. Os personagens da história são, todos, seres absolutamente comuns que, diante do acaso, revelam a grandeza dos deuses, cujas ações só podem ser corretamente medidas e só adquirem algum sentido se analisadas à luz da maravilhosa e infinita epopéia humana, a qual se manifesta, de maneira surpreendente, nos fatos conjunturais e prosaicos da vida cotidiana. E todos somos assim. Trazemos isso, que é humano, dentro de nós só à espera da ocasião adequada para se manifestar. O ser humano que somos não cabe nas infovias.
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Enquanto existirem Barbosas e Saletes – Parte 6
Enquanto existirem Barbosas e Saletes Parte Final
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Enquanto existirem Barbosas e Saletes – Parte Final
4 de Junho de 2015, 10:05Parte Final
José Arbex Júnior, in revista Caros Amigos, fevereiro de 1999
Neoliberalismo, utopia reacionária
E porque o ser humano é tudo isso, a história jamais terá fim. Enquanto existirem Barbosas e Saletes, tudo o que é humano continuará a surpreender, a escapar a toda lógica, a desafiar os mais cuidadosos cálculos, estratégias e prognósticos. É, precisamente, essa percepção que assusta as elites. A condição para que o neoliberalismo continue a prevalecer é manter os indivíduos atomizados, fragmentados, convencidos de que vivemos o “fim da história”, a consagração de uma certa concepção de mundo que elimina a busca de sociedades mais justas, mais democráticas, mais solidárias, menos cruéis. A busca do melhor sistema social e político, dizem os ideólogos neoliberais, foi encerrada com a queda do Muro de Berlim, em 1989. O fracasso do socialismo demonstrou a superioridade do sistema baseado na crua disputa entre os homens, também conhecido como economia de mercado. A natureza humana é necessariamente cruel – dizem os darwinistas sociais de nossa época – e nada há que possa ser feito para remediar esse fato.
Mas o gesto sacrifical de Barbosa, tanto quanto a dor de estar viva de Salete, nada têm a ver com o cinismo do salve-se-quem-puder. Subvertem a lógica do mundo reagan-thatcherista em que cada um cuida de seus próprios interesses, sem se importar com a precariedade dos outros. A compaixão, a generosidade, o sentimento de honra e dignidade, senhores ideólogos, existem, não dependem do tamanho da conta bancária e não raro falam mais alto do que a disputa pela sobrevivência individual. O fim da história não passa de uma utopia reacionária, que tenta congelar, controlar o ser, eliminar aquilo que escapa ao controle. Há um espaço que não pode ser e jamais será privatizado ou colonizado, o espaço em que se dá a troca dos valores perenizados pelo estatuto do humano. Mesmo porque o jogo de dados – dizia Mallarmé – jamais eliminará o acaso. Isso será assim, enquanto o ser humano existir.
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Enquanto existirem Barbosas e Saletes Parte Final
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Enquanto existirem Barbosas e Saletes – Parte 5
4 de Junho de 2015, 10:00Parte 5
José Arbex Júnior, in revista Caros Amigos, fevereiro de 1999
O acaso e o trágico na cidade
A tragédia, como sempre, foi produzida por uma sucessão de acasos. Barbosa chegou às 7 horas à sede do 2o Batalhão, quando foi dispensado do expediente: trabalharia apenas no dia seguinte, pois havia sido trocado de pelotão. Pediu carona ao seu colega Luiz Francisco de Macedo, 26 anos, que iria deixá-lo no parque Dom Pedro, onde ele pegaria uma condução para sua casa, na zona leste. No meio do caminho, Barbosa chamou a atenção de Macedo para um início de tumulto na avenida do Estado. Dezenas de pessoas começavam a se aglomerar as margens do Tamanduateí. “Eles pararam o carro no meio da avenida e foram ver o que tinha acontecido. Ao verem uma pessoa em perigo, não pensaram duas vezes e foram providenciar cordas para tentar salvar a mulher”, disse o major Marcos Cabral, comandante interino do 2o Batalhão. Ao arremessar uma corda de náilon para Salete, Barbosa se desequilibrou e caiu no rio.
Só que, como conseqüência das chuvas, a vazão do Tamanduateí havia aumentado de 15 para 120 metros cúbicos por segundo e a velocidade das águas, nessas condições, pode alcançar até dois metros por segundo, conforme disseram os técnicos do Centro Tecnológico de Hidráulica do Departamento de Águas e Energia Elétrica. Em águas tão violentas, mesmo um nadador treinado – e esse não era o caso de Barbosa – poderia facilmente naufragar. Foi o que aconteceu. Barbosa desapareceu, enquanto Macedo, amarrado a uma corda, descia pela margem canalizada do rio e puxava Salete, com a ajuda de bombeiros e de caminhoneiros que trabalham no Mercado Municipal (próximo ao local).
A família de Barbosa, cruel ironia, recebeu a notícia da tragédia pela televisão. “Estava vendo a televisão na hora em que mostraram as primeiras imagens e disseram que um policial havia caído no rio” disse Wesley. Depois disso, o garoto foi arrumar a gaiola do passarinho. A mãe, pressentindo a má notícia, ficou com os olhos grudados na televisão. É Wesley quem conta: “Falaram na televisão ‘o soldado Barbosa, da Rocam’. Eu não ouvi direito e perguntei: ‘Que foi, que foi?’ e ela me disse ‘é o seu pai, é o seu pai”. Sandra mandou o filho ir até a casa da vizinha para ligar para o batalhão. Os oficiais preferiram não confirmar imediatamente a informação: já haviam enviado uma equipe à casa do policial para dar a notícia à família, pessoalmente.
Depois disso, foi a sinistra busca do corpo desaparecido nas águas turbulentas do rio, com a participação angustiada de três irmãos de Barbosa. Foram horas infinitas de desespero, até encontrar o corpo, a escassos 400 metros do ponto onde tudo havia começado. Inconformada, frustrada e experimentando o conhecido sentimento de impotência face à tragédia, a sogra de Barbosa, Elizabete Ribeiro da Silva, 50 anos, descarregou o peso de sua ira sobre a pobre Salete: “Uma andarilha que encheu a cara de pinga foi brincar no meio do rio e levou embora um pai de família que precisava estar junto dos filhos”. Nada mais injusto, nada mais compreensível, nada mais humano. No hospital, Salete negou que tivesse bebido antes do acidente.
Visivelmente triste, consternada, purgando a culpa pela morte do soldado apenas repetia que tropeçou na beira do córrego e caiu, mas que não conseguia se lembrar do encadeamento dos fatos.
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Enquanto existirem Barbosas e Saletes – Parte 4
4 de Junho de 2015, 9:57Parte 4
José Arbex Júnior, in revista Caros Amigos, fevereiro de 1999
A aventura está com os pobres
No limite, o fechamento do mundo abole, ou reduz ao máximo, o acaso, o momento em que tudo pode acontecer na fração de segundo (o instante em que Barbosa sente a urgência de salvar Salete). Mas isso vale para as elites. Os pobres ficam fora das grandes “infovias”, dos sistemas digitais de comunicação, dos cárceres dourados que a burguesia construiu para si. Eles continuam mantendo um intenso contato físico, muitas vezes promíscuo, abarrotando bairros “populares” e favelas imensas, vivendo mais ou menos como no século 19. Quanto mais se desenvolve, tecnologicamente, o “telemundo” das elites, maior é o abismo entre a pequena parcela da população engolida pelas veias virtuais do sistema tecnológico e a imensa maioria que ainda sente na pela a presença do outro. É, precisamente, nessa contradição entre o mundo afetivo e fértil dos pobres e a solidão virtual e estéril do mundo dos ricos, diz o professor Milton Santos, que reside uma esperança de superação dos impasses construídos pela sociedade contemporânea. Pois, se o mundo é o mundo criado pelo contato linguageiro entre seres humanos, a grande aventura de viver, mais do que nunca, está nas ruas da cidade e não nos condomínios fechados, na sarjeta e não na infovia.
Ninguém pretende aqui – é mais do que óbvio – fazer uma apologia da pobreza. Ninguém pretende sustentar a máxima populista demagógica e cruel segundo a qual “é melhor ser pobre e feliz do que rico e triste”. Isso tudo é besteira. O que se discute é o fato de que, justamente quando o mundo tecnológico e neoliberal parece condenar ao esquecimento valores profundamente humanos, como a prática do heroísmo anônimo, da compaixão, da solidariedade, a tragédia de Salete e Barbosa mostra que nada disso está morto. Muitos trabalhos sérios já mostraram que, mesmo nas condições extremas dos campos de concentração nazistas e stalinistas, uma parcela importante dos internados manteve um comportamento ético e solidário, dividindo o pedaço do pão que não existia, mantendo o humor elevado, inspirando em outros seres um resto de esperança, mesmo quando todas as evidências mostravam que não poderia haver esperança alguma.
Fenômeno muito semelhante acontece nos campos de concentração e morte configurados pelas favelas e bairros periféricos das grandes cidades. As pessoas, apesar do medo, da insegurança, do desemprego, da completa falta de perspectivas, ainda se encontram e trocam emoções. Ainda realizam o gesto absurdo, incompreensível, implausível, mas diariamente renovado, de encontrar dentro de suas almas, muitas vezes dilaceradas, os recursos para dar de si aos outros. Nada pode ser menos narcísico, mais heróico e generoso do que colocar em risco a própria vida para salvar um desconhecido. E, no caso de Salete e Barbosa, isso tudo aconteceu, literalmente, à beira de um esgoto chamado Tamanduateí.
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4 de Junho de 2015, 9:56Parte 3
José Arbex Júnior, in revista Caros Amigos, fevereiro de 1999
Infovias, espaços virtuais e o narcisismo das elites
A tendência à fragmentação, ao estilhaçamento da metrópole chega, agora, a um limite, com a instalação das “infovias” e sistemas virtuais de comunicação, que tornam desnecessária a própria existência concreta de uma comunidade. Isolado em sua própria torre de marfim, o homem urbano de classe média contemporâneo tem tudo à sua disposição para dispensar o contato imediato com outros seres humanos. Pode trocar textos, imagens e sons pela Internet, pode movimentar a conta bancária a partir de seu escritório, pode fazer compras em livrarias e supermercados virtuais. As novas possibilidades tecnológicas permitem até mesmo a organização de teleconferências, reuniões que se realizam no não-espaço, em algum ponto virtual em que se entrecruzam vários sistemas de computadores interconectados (ou Intranet, na linguagem técnica). A contrapartida são os meios eletrônicos de policiamento dos espaços públicos, os radares, as câmaras ocultas, a vigilância das máquinas sobre os seres.
A grande questão política, já apontada por alguns críticos importantes do “mundo pós-moderno”, é que esse fechamento do mundo estimula e exacerba as tendências narcísicas dos indivíduos. Como podemos, em tese, criar nosso próprio mundo virtual, como podemos nos encerrar em nossas próprias fortalezas de marfim, dispensando ao máximo o contato humano, podemos imprimir a esse mundo fechado a nossa marca, só tolerando a “intrusão” daquilo que está de acordo com a imagem que fazemos de nós mesmos. É claro que essa tendência à exaltação narcísica sempre existiu, em todos os tempos (“Narciso acha feio o que não é espelho”, escreveu Caetano Veloso), mas o isolamento tecnológico permite sua potencialização máxima: coloca o mundo ao alcance do indivíduo, salvando o indivíduo do contato com o mundo. Trata-se, aqui, do encolhimento, o quase desaparecimento do espaço público, o local onde se desenvolve a atividade política.
Essa questão foi sintetizada em uma brilhante fórmula, enunciada por Roberto Mangabeira Unger em sua entrevista na última edição de Caros Amigos: “A política precisa se tornar pequena, para que as pessoas possam se tornar grandes”. De fato, no mundo neoliberal “política” se reduz a “administração pública”. Perde seu sentido transformador, sua ambição renovadora, sua força como instrumento de mobilização coletiva. Daí que o próprio conceito de cidadania, que só pode ser sustentado pela atividade política – pela noção de que fazemos, todos, parte de um espaço público que define nossos direitos e deveres -, desaparece e cede lugar à figura do consumidor, aquele que tem os direitos pelos quais pode pagar, incluindo educação, saúde, segurança, infra-estrutura sanitária adequada, etc.
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