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Saboreando o Festival de Cinema de Berlim

21 de Fevereiro de 2023, 9:09 , por Feed RSS do(a) News - | No one following this article yet.
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Não me lembro exatamente de quando contatei o editor do Estadão lhe propondo fazer a cobertura do Festival de Cinema de Berlim. Em todo caso, um ano antes da queda do Muro de Berlim, 1988, eu estava viajando para a capital dividida da Alemanha e, daí pra frente, durante alguns anos, fazia essa cobertura.

Por Rui Martins, de Berlim
Um pouco de minha história no Festival de Cinema de Berlim

Eu cobria com regularidade, desde os anos 80, o Festival de Locarno, mas ir a Berlim, que eu ainda não conhecia, e garantir a cobertura dos dez dias, era um desafio que eu me propunha, mas principalmente uma enorme oportunidade para aumentar minha área de trabalho, além da chance de reforçar meu fim do mês de correspondente frila. Não falava alemão, mas francês e inglês, devia bastar, e bastou.

Cheguei a Berlim com a cara e a coragem com uma bagagem pesada, que incluía o computador, o gravador para entrevistas e um pesado microfone. E como fazer para, depois de inscrito, ter acesso aos filmes? Hotel já havia reservado de Berna, o Hotel Steiner, no qual ficava a cada ano até fechar e achar a UFA Fabrik. Fazendo minhas perguntas aqui e ali, nos meus primeiros dias de Berlim, encontrei um jovem alemão assíduo na Berlinale, que falava francês, Peter Schuster, que me ensinou os primeiros passos.

Ficamos amigos, todos os anos nos encontrávamos no Festival, perdi depois seus traços, mas tentarei encontrá-lo depois de terminar este texto. Logo nesses primeiros anos, minha companheira Hanna, depois esposa, começou a me acompanhar e acabamos formando uma dupla, na qual ela passou a cuidar da parte básica, programas, horários e agora das reservas online nos cinemas. Depois de alguns anos, entrei na lista dos jornalistas convidados, me livrando das despesas de hotel e facilitando assim vender meus frilas.

Como contei minha condição de correspondente frila, naquela época e durante tantos anos, vale lembrar en passant, que os chamados freelancers do jornalismo foram os precursores dos taxistas uber de hoje: ganhavam sem descontos e sem contribuição para o INPS, sem juntar a proteção para os dias futuros. Minha imprevidência de não prever vida longa, se repercutiu na minha aposentadoria! Mas não é esse o tema, antes de tudo seria preciso saber como funciona no Brasil a condição de frila hoje no jornalismo. Se for a mesma, vai ser preciso contatar os sindicatos e os legisladores!

Berlim foi para mim uma grande experiência em termos de cinema, de contatos e entrevistas com atores, cineastas e produtores e o prosseguimento dessa abertura veio, quando colaborando com a OMS e ONU, outras viagens mais longas para a África e Ásia e mesmo a oportunidade de conhecer a Praça Vermelha em Moscou.

Por essa recordação nostálgica? Porque esta é minha última Berlinale, como também se chama o Festival Internacional de Cinema de Berlim. Os jornais mudaram, os editores também, a mídia mudou no seu todo, surgiram novas maneiras de fazer uma cobertura de festival e já não tenho mais a chance de reunir diversas coberturas de Berlim seja para jornais, rádios, brasileiros e portugueses. Mesmo com minha teimosia, tenho também de aceitar minha idade!

Por isso, nestes dias de Festival em Berlim, estou sem a preocupação de fazer a cobertura diária, com sua exigência de pressa e correria na elaboração dos textos críticos. Vou me permitir dar mais tempo a certas reflexões sobre os filmes vistos, destacando alguns em particular, acentuando alguns pormenores e deixando para mais tarde comentários mais amplos sobre filmes na competição.

Não me lembro de ter havido, nos festivais passados, tantos filmes românticos lembrando romances de fotonovela ou telenovela como este ano, até o momento em que escrevo, depois de ter visto uma dezena de filme. Como já afirmei, não faço hoje críticas de filme por filme, isso farei depois com calma, mas vou tentar me lembrar de detalhes ou reflexões, talvez, como é de meu hábito, com certa ironia.

O primeiro filme da competição era alemão com um longo título, cuja tradução é mais ou menos esta – “Ainda se contará tudo um ao outro” ou mais simples e de outra maneira, “tudo acabará se sabendo”. E eu acrescentaria: ainda mais em questão sexo (quem trepou com quem?) ou de amor. Esse filme tem direção feminina (temo escrever realizadora ou diretora, porque o Festival de Berlim acabou com as distinções de gênero em termos de intérpretes, não existindo mais os prêmios de melhor ator e melhor atriz).

Continuemos: a realizadora alemã do filme Irgendwann werden wir uns alles erzählen citado, Emily Atef, de 50 anos, num belo filme com a excelente atriz principal Marlene Burow, constrói seu filme ao gosto do romantismo dos século XIX, digno de fotonovela, com uma história nada feminista. Vamos lá: a personagem principal do filme, de 19 anos, tem um namorado, com qual transa tomando os cuidados da época (logo depois da reunificação da Alemanha), bem jovem, atraído pela fotografia e que, viajando da fazenda onde vivem vai até uma grande cidade, descobre e compra uma Hasselblad, ali decidindo que estudará fotografia e será fotógrafo de profissão. Em síntese, um bom rapaz, com o qual iria se casar.

Isso se não aparecesse no seu caminho um sujeito machão de 40 anos, mal visto na região e que se mostra violento ao fazer sexo, tanto que a  jovem seduzida pelos traços do macho fica com manchas no pescoço, pois fora quase estrangulada pelo sedutor. Ela vai se queixar e mostra as manchas roxas? Não! Cobre o pescoço com cachecol, se apaixona e pede mais!!! E eu perguntaria, será que Emily Atef não percebeu estar na mesma linha das crônicas de Nelson Rodrigues, na Vida como ela é, da Última Hora do Samuel Wainer, na qual se falava justamente isso, que mulher gosta de apanhar? Hoje, sabemos que isso leva ao feminicídio? Será que todas as mulheres gostam de homem violento e machão?

Margaretha von Trotta, atriz e depois realizadora de renome, nascida em Berlim em 1942, fez um filme sobre a poetisa e escritora austríaca Ingeborg Bachmann, de grande renome na língua alemã, e sobre seu casamento com o conhecido e famoso escritor suíço Max Frisch. Casamento tumultuoso do casal mais famoso da época no mundo literário de lingua alemã, que durou apenas cinco anos. Depois do divórcio, Ingeborg foi viver em Roma, onde viveu só mais dez anos. Austríaca de nascimento, Ingelborg detestava Viena, Berlim e Zurique e adorava Roma, onde havia luz e calor. Ingeborg não era nenhuma santa, depois de Max Frisch, realizou seu sonho de trepar com diversos homens.

Como Ingeborg queimou o diário de Frisch no qual ele falava da relação da esposa também respeitada intelectual, devem ter ficado para Maragarethe von Trota utilizar no filme, imagina-se, as impressões de Ingeborg sobre o marido, no casamento. O filme mostra Max Frisch autoritário, possessivo e ciumento, una crítica justa ou injusta, capaz de deformar ou fazer uma reavaliação da imagem do grande intelectual suíço, sem direito de defesa e debate, pois ambos já morreram, embora tenham sido contemporâneos da realizadora.

Agora não vem uma crítica, mas uma simples observação sobre o importante filme na competição Sobrevivência na Bondade, no qual a personagem principal sobrevive no deserto sem água e sem alimentação. Imagina-se que a preocupação principal do realizador australiano Rolf de Heer não era mostrar um manual de sobrevivência, mas de fazer um filme de crítica à sociedade, no qual tomar água no deserto não entrava no roteiro, era coisa tácita e figurativa.

Outra chamada um tanto engraçada, no filme  mexicano Tótem, de Lila Avilés, é o momento em que a família com doente em casa e pouco dinheiro chama uma bruxa para espantar demônios e mau astral, o que ela faz de maneira evientemente enganosa com baldes e vassoura, numa cena, que reproduz a realidade, mostrando até onde vai a tolice ou a crendice humana.

Tive também a possibilidade de ver o filme de Daniel Bandeira, Propriedade, e lamentei não fazer parte da competição, pois teria qualidade para ganhar um prêmio, pelo tema e pela maneira como descreve uma revolta numa fazenda contra o dono e seu capataz.

Temos ainda mais alguns dias de filmes para ver e comentar com mais vagar.

Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro sujo da corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A rebelião romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.


Fonte: http://blogoosfero.cc/news/blog/saboreando-o-festival-de-cinema-de-berlim

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